Desobediência (Licínio de Azevedo, 2002)

No mês de fevereiro, acontece no Museu da Imagem e do Som (MIS), de Campinas, o ciclo de “Cinema Africano”, com curadoria do crítico de cinema e jornalista Ricardo Pereira e de Gustavo Sousa. O ciclo exibirá diversas produções autorais de um continente cujas tradições e histórias, sufocadas depois de séculos de colonização europeia, ainda são desconhecidas pelo público.

Desde o nascimento do cinema, o continente africano foi representado na tela grande como um local exótico, uma espécie de refúgio paradisíaco para os europeus ante os conflitos existenciais de suas vidas monótonas – através dos filmes de safari, por exemplo. Essa tendência começa a se modificar no pós-guerra, no processo de descolonização da África. É quando surge um cinema, de fato, africano, resultado das lutas dos povos do continente pela independência.

Para o crítico de cinema francês Oliver Barlet, autor de diversos ensaios sobre o cinema africano, foi justamente da rejeição à visão ocidental de filmes sobre a África que se alimentou a produção cinematográfica regional, uma vez que a conjuntura de lutas pela independência reforçava as identidades locais. Fato é que o colonialismo fez com que surgisse uma compreensão de identidade muito especifica no continente africano. Esta identidade passa pela compreensão, por parte dos povos dominados, de um inimigo comum, ou seja, as potências europeias – responsáveis por todas as mazelas, todo o processo de exploração física e econômica, pelo acirramento das rivalidades étnicas, em função da manutenção das fronteiras coloniais, decididas na Conferência de Berlim, ocorrida entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885.

Esta conferência é geralmente apresentada como o momento em que as potências europeias teriam traçado o mapa da África unicamente de acordo com os seus interesses. Nos três meses de discussões nenhum africano foi ouvido. O colonialismo é, portanto, um legado importante para a compreensão da África, como também o processo de lutas de independência, o qual permitiu a construção de uma identidade.

O início da produção cinematográfica pós-independência, além de gerar desconfiança dos governos recém instalados e até mesmo algum nível de repressão, resultou em produções originais e autorais de cineastas com experiências de vida semelhantes. Jovens africanos que migravam para a Europa onde se apropriavam das ideias marxistas, através das quais refletiam sobre as condições de seus países de origem.

Utilizemos como o exemplo o senegalês Ousmane Sembène (1923-2007), cineasta pioneiro e um dos mais representativos do continente. Tendo participado como soldado do exército francês na guerra contra o nazismo, permaneceu em Marselha após o conflito onde trabalhou como estivador até tornar-se ativista sindical. Como resultado desta experiência na Europa assinou obras literárias importantes sobre a exploração social da França sobre o Senegal, e dos países africanos em geral no contexto do neo-colonialismo – dentre elas, o romance “Les bouts de bois de Dieu”, publicado em 1960. Mas enquanto seus livros repercutiam na Europa, em seu país devido ao grande nível de analfabetismo de seu povo pouco reverberava.

Em uma de suas entrevistas compiladas no volume “Ousmane Sembène Interviews”, o senegalês diz que um “povo que não consegue falar sobre si mesmo está condenado ao desaparecimento”. Foi para dar voz ao seu povo que Sembéne opta pelo cinema considerado por ele como uma linguagem universal, acessível tanto para letrados quanto iletrados.

A história do cinema africano é dominada por cineastas que fizeram, cada um a sua maneira, o mesmo caminho que Sembène – como os burquinenses Idrissa Ouedraogo e Gaston Kabore; o mauritânio Abderrahmane Sissako; os egípcios Youssef Chahine, Shadi Abdessalam e Henry Barakat; os argelinos Merzak Allouache e Mohammad Lakhdar-Hamina; o chadiano Mahamat Saleh Haroun; o etíope Haile Gerima; o malinês Souleymane Cissé; os tunisianos Nacer Khémir e Moufida Tlati; os camaroneses Jean-Pierre Dikongué-Pipa e Jean Marie Teno; e os nigerianos Oumarou Ganda e Ola Balogun.

Essa experiência comum a muitos cineastas dos mais diversos países do continente gerou uma uniformidade temática entre eles: os cineastas africanos acabaram por expressar questões prementes às sociedades locais que se reconstruíam, após séculos de exploração e domínio. Outra característica que merece ser registrada aqui é o resgate que fizeram da tradição oral de seus povos para resgatar histórias sufocadas pela colonização europeia, nunca antes registradas. O ciclo de “Cinema Africano” do Museu da Imagem e do Som de Campinas é uma oportunidade rara para conhecer um pouco mais da produção destes países – e do próprio continente.

Todas as exibições são gratuitas e seguidas de debate. Veja abaixo os detalhes da programação. (Carta Campinas com informações de divulgação)

PROGRAMAÇÃO DO CICLO

Sexta, 3 de Fevereiro, 20h
EMITAI
Direção de Ousmane Sembene
Em 1942, durante a Segunda Grande Guerra, em uma vila em Casamance no Senegal, os Diolas recusam a intervenção exterior. Uma parte dos homens da vila foi enviada à força para o front franco-alemão. O coronel Armand e seu exército colonial devem requisitar arroz para enviar às tropas. Na França, De Gaulle suscede Pétain, mas para a África nada mudou. Responsáveis pela colheita, as mulheres decidem resistir desta vez e esconder o arroz. Senegal, 1971. Colorido, 103 min.

Sábado, 4 de Fevereiro, 17h
A VIAGEM DA HIENA
Direção de Djibril Diop Mambéty
“Paris, Paris”, sussurra Joséphine Baker na trilha sonora. Através de um belo atalho, a canção introduz o assunto do filme, a estranha dupla atração/repulsa que exerce a “cidade das luzes” sobre a geração africana pós-independência: atração pela capital (as palavras), recusa da assimilação. Os dois protagonistas vivem à margem: em Dakar. Ao sabor da corrente tentam reunir por todos os meios (roubos, prostituição) o dinheiro que lhes permitirá chegar a Paris. Senegal, 1973. Colorido, 85 min.

Sábado, 4 de Fevereiro, 20h
A LUZ
Direção de Souleymane Cissé
Dotado de poderes mágicos, um jovem parte em busca de seu tio para pedir ajuda em uma luta contra seu pai, um feiticeiro. Mali, 1987. Colorido, 105 min.

Domingo, 5 de Fevereiro, 18h
YAABA
Direção de Idrissa Ouedraogo
Bila, um menino de dez anos, observa a vida de sua aldeia More, na África. Ele faz amizade com uma anciã que a comunidade acusa de feitiçaria. Pouco a pouco, nasce uma cumplicidade entre eles. Burkina Faso, 1989. Colorido, 90 min.

Sexta, 10 de Fevereiro, 20h
OS SILÊNCIOS DO PALÁCIO
Direção de Moufida Tlatli
Filha de empregada e pai desconhecido, Alia deixa o marido e volta ao palácio onde viveu sua adolescência, quando morre o príncipe. Em meio à decadência da mansão real, lembra-se do passado, da relação proibida com Sarra, filha do príncipe, e busca a identidade de seu pai. Tunísia, 1994. Colorido, 128 min.

Sábado, 11 de Fevereiro, 17h
ESPERANDO A FELICIDADE
Direção de Abderrahmane Sissako
Em Nouadhibou, aldeia de pescadores no litoral mauritano, Abdallah, um jovem malinês de 17 anos visita a mãe antes de partir para a Europa. Neste lugar de exílios e de falsas esperanças o jovem, que não entende a língua, tenta decodificar o universo à sua volta. Mauritânia, 2002. Colorido, 95 min.

Sábado, 11 de Fevereiro, 20h
O DESTINO
Direção de Youssef Chahine
No século 12, em Córdoba, o prestigiado filósofo Averroes criou uma escola de pensamento que vem refletindo em todo o Ocidente até os dias de hoje. O califa Al Mansur, no entanto, influenciado pelos fundamentalistas, ordenou que todos os livros do filósofo fossem queimados. Para manter o trabalho de Averroes vivo, seus familiares e discípulos fizeram cópias dos livros e, apesar da perseguição, resolveram levá-los para além das fronteiras do Islã. Egito, 1997. Colorido, 135 min.

Domingo, 12 de Fevereiro, 18h
DESOBEDIÊNCIA
Direção de Licinio Azevedo
Rosa, camponesa moçambicana, é acusada de ter causado o suicídio do marido. Dizem que ela tem um “marido-espírito” que a levava a desobedecer ao marido verdadeiro. Numa carta descoberta durante as cerimônias fúnebres, e que é lida diante de todos os presentes, o suicida determina que os cinco filhos que teve com Rosa sejam entregues ao seu irmão gêmeo, para não viverem com a mulher que arruinou a sua vida. Para provar a sua inocência, recuperar os filhos e os poucos bens que o casal possuía, Rosa submete-se a dois julgamentos: o primeiro num curandeiro, o segundo num tribunal. Moçambique, 2002. Colorido, 92 min.

Sexta, 17 de Fevereiro, 20h
CARMEN NA ÁFRICA
Direção de Mark Domford-May
Ambientado nos dias de hoje na cidade de Khayelitsha, na África do Sul. Carmen é uma cigana que seduz o soldado Don José. Ele se torna completamente obcecado pela mulher, que resolve abandoná-lo para ficar com um matador. O soldado então é tomado por um acesso de ira e ciúme. África do Sul, 2005. Colorido, 122 min.

Sábado, 18 de Fevereiro, 17h
HARRAGAS
Direção de Merzak Allouache
Harragas é nome que dão às pessoas do Norte da África, que queimam seus documentos, antes de, clandestinamente, partirem para a Europa. Quase como os retirantes brasileiros, só que estes fogem dentro do próprio pais. Sem documentos, pois não os têm. Aqui, vemos um grupo que se prepara para a travessia do Mediterrâneo, para chegar ao sul da Espanha. Argélia, 2009. Colorido, 95 min.

Sábado, 18 de Fevereiro, 20h
ESTAÇÃO SECA
Direção de Mahamet-Saleh Haroun
Chade, 2006: o governo concedeu anistia para todos os criminosos de guerra. Atim, de 16 anos, ganha um revólver de seu avô, com o qual pretende matar o homem que assassinou seu pai. O jovem deixa seu vilarejo com destino a N’djamena, à procura de um homem que não conhece. Atim logo o encontra: o ex-criminoso de guerra Nassara agora está casado e estabilizado como dono de uma pequena padaria. Chade, 2006. Colorido, 93 min.

Domingo, 19 de Fevereiro, 18h
OS CAVALOS DE DEUS
Direção de Nabil Ayouch
Yachine, 10 anos, vive com a família no bairro da lata de Sidi Moumen em Casablanca. A mãe, Yemma, comanda a família como pode. Há um pai depressivo, um irmão no exército, um outro quase autista e um terceiro, Hamid, 13 anos, pequeno malfeitor do bairro e protetor de Yachine. Quando Hamid é preso, Yachine faz então pequenos trabalhos para sair deste marasmo onde reinam a violência, a miséria e as drogas. Após sair da prisão, Hamid sofre uma grande mudança, tornando-se um islamita radical durante o seu encarceramento, e persuade Yachine e os amigos a juntarem-se aos seus “irmãos”. Este filme é livremente inspirados nos atentados terroristas de 16 de Maio de 2003 em Casablanca. Marrocos, 2012. Colorido, 115 min.

Local:
Museu da Imagem e do Som de Campinas
Palácio dos Azulejos
Rua Regente Feijó, 859
Centro, Campinas
Telefone: (19) 3733-8800