Ícone do site Wordpress Site

Somos todxs ‘a vizinha’ de alguém

Por Michele da Costa

“A menina que ficava com todos os garotos do colégio era chamada de biscate”, me exemplifica um dicionário informal quanto ao uso da palavra “biscate”. O significado é “mulher fácil, que fica com vários homens, vadia”. Outro dicionário online me dá duas definições: “prostituta” (antigo) e “pessoa com comportamento sexual considerado liberal ou promíscuo (atual)”, mas sabemos que na prática essa pessoa é estritamente do gênero feminino, claro, já que para o homem cis e heterossexual que fica com várias mulheres os adjetivos costumam expressar qualidade (“macho”, “viril”, “garanhão”, “o cara”).

Fiz essa pesquisa e me debruço a refletir sobre isso porque recentemente ouvi mais de uma vez essa palavra, que já considerava praticamente extinta do vocabulário deste século. SQN… Foram conversas informais com homens cis heterossexuais, que usaram o xingamento para se referir a vizinhas deles. Frases como: “é biscate, tem vários filhos, um de cada pai” e “é que ela nunca se casou, não se dá o valor, sabe?”, surgem com uma naturalidade tão aterrorizante que chegam ao ponto de esperar por minha concordância.

Imediatamente, penso que eles também deveriam me achar uma “biscate”, já que tenho dois filhos (um de cada pai) e nunca fui casada formalmente. Penso em minha mãe, que nunca se casou, trabalhou duro para me criar sozinha e enfrentou todo o tipo de machismo e sexismo. Em minha avó, igualmente lutadora e mãe de quatro filhas com dois pais diferentes, que também nunca se casou no papel nem em igreja.

Volto a pensar nessas “vizinhas”, que nunca vi e não sei nem os nomes, na vida difícil que devem levar para cuidar dos filhos (muito provavelmente sem a devida participação dos pais), sem abrir mão do direito de exercer suas sexualidades, se relacionarem com tantos quantos e quais pessoas elas desejarem. Penso nos olhares e comentários preconceituosos que tiveram e infelizmente ainda têm que enfrentar, mesmo sem terem cometido crime algum. Lembro-me de situações que vivi, mesmo as mais sutis, como filha e mãe, de coisas que ouço desde a infância e de como sempre achei tudo isso tão errado, injusto e cruel!

Mas por que, afinal, a liberdade sexual feminina ainda incomoda tanto os homens e também muitas mulheres cis heterossexuais? Penso que atualmente o maior preconceito está ligado à maternidade e fico ainda mais boquiaberta do quanto essa sociedade ainda é hipócrita e injusta, quase um tribunal da “Santa Inquisição”. Pune sumariamente a mulher que engravida fora de um casamento: se faz um aborto (ilegal no Brasil), é criminosa e pecadora; se tem o filho também é pecadora, além de “biscate”, “vadia”, “perdida” ou, na melhor das hipóteses, “uma pobre coitada”. Nenhuma “punição” moral recai sobre o homem que engravidou, pelo contrário.

Ao mesmo tempo, tudo que já vi e ouvi de pessoas próximas me indicam que muitas vezes o casamento se mostra como mera formalidade, uma convenção social com claro objetivo de demonstrar o exercício sacramental do patriarcalismo, a dominação do homem sobre a mulher sob o manto da “sagrada família”. Esse mesmo conceito único de “família” que fundamentalistas religiosos e políticos oportunistas têm usado para promover ideias retrógradas e, de certo modo, até criminosas, na medida em que pregam o machismo, que alimenta a violência contra as mulheres (no Brasil, registra-se um feminicídio a cada 90 minutos- Ipea 2013).

Concluo que a cultura machista ainda é um forte instrumento dessa sociedade capitalista-patriarcal ao fazer de nós, mulheres, suas reféns. E qualquer coisa que destoe dessa “fórmula perfeita” (da qual também se excluem LGBTTs) não se aplica e ameaça o sistema. E a que preço, se esse assédio moral que sofremos cotidianamente, mesmo se coletivo e generalizado, é tão agressivo e avassalador quanto a violência física!

É, a opressão cotidiana também mata.. mata a mulher enquanto ser humano: esmurra sua autoestima, estupra seu prazer e condena sua alma a vagar sem rumo, à sombra da “fêmea perfeita” que ela deveria ser. E isso diz respeito não só a mim ou às mulheres mencionadas nesse texto, mas a todXs nós, à sociedade de maneira geral, porque no fim das contas somos todXs “a vizinha” de alguém.

Michele da Costa é jornalista

Sair da versão mobile