Por Bruna Pereira Caixeta
A nostalgia é um sentimento inerente à experiência de distanciamento da terra natal – a “terra natal” em sentido coletivo, que abriga as pessoas, o próprio lar, os lugares, as comidas e hábitos que são familiares a uma pessoa. É ela, a falta dolorida da totalidade de uma vida em um lugar. Nesse sentido, todo exílio da pátria causará a experiência da falta do familiar, e gerará o sentimento de desejo de retorno ao conhecido.
Ao que parece lógico, a realização do desejo de retorno trará uma experiência de felicidade, e a irrealização, o seu contrário, a experiência de infelicidade. Como a maioria dos exílios costumam resultar de uma circunstância forçada, imposta, isto é, que vai contra a vontade primordial de toda pessoa de permanecer próxima ao que lhe é familiar, o exílio é, nesta acepção, uma experiência que provoca sofrimento e desperta o estado de tristeza.
De outro modo, no entanto, o escritor tcheco Milan Kundera, em sua novela “A ignorância” (Cia das Letras, 2015), o concebe. No enredo do recente livro, Kundera expõe o resultado da experiência do exílio não como infelicidade. Subvertendo o sentido lógico do efeito do exílio sobre as pessoas, em sua narrativa, Kundera deixa posto que somente, e por causa dessa experiência de distanciamento da terra natal, seus personagens têm a chance de construir e viver a própria vida por eles mesmos, e, a partir de então, experimentar o sentimento de liberdade e felicidade.
Kundera corrobora a ideia do exílio como melhor solução para a vida de seus personagens, desconstruindo ainda outra opinião comum: a de que a experiência do retorno à pátria é sempre acolhedora e convite a permanecer e viver novamente no país natal. Ele mostra como a experiência do retorno pode vir a produzir, de outro modo, uma experiência trágica, de desencaixe e expulsão da pátria. A experiência, por fim, leva os exilados a admitirem que a sua vida fora do país fora melhor, ou pelo menos, que viver fora do país natal é melhor.
Logo após o término do comunismo na Boêmia, Irena e Josef, então exilados há anos de seu país, por motivos diferentes, mas com a intenção comum do retorno à pátria, voltam a Praga. Irena, exilada na França, e Josef, na Dinamarca, se encontram no aeroporto de Paris em regresso à cidade boêmia. Anos antes da implementação do comunismo em seu país, tendo se conhecido rapidamente em um bar, se interessado um pelo outro, mas apenas trocado olhares, os dois tchecos se surpreendem pela coincidência do encontro no aeroporto, por se reconhecerem após passados muitos anos, e então, se acham convocados a combinar um novo encontro em Praga. Antes de se dar esse encontro entre os dois, no entanto, cada um vive a sua experiência particular de retorno à terra natal, passando por lugares conhecidos e reencontrando amigos e familiares. Finalmente, ambos, em experiência comum, têm, após esses encontros com o outrora familiar, uma experiência trágica de descoberta de sua inadaptabilidade perpétua ao seu lugar de origem.
Com uma vida infeliz antes de voltar a Praga, os dois tchecos se descobrirão mais infelizes em Praga, compartilhando a mais árdua, e a que então ficará como a mais marcante (e traumática) experiência do retorno: a ignorância das pessoas por eles – aqui a palavra “ignorância” é assumida no seu sentido de “não ter conhecimento da existência de alguém”, ou o mesmo: “de desinteresse pelo outro”; Irena e Josef sentirão a condição de ser uma incógnita perante os familiares e amigos de longa data. Eles se defrontarão com um profundo desinteresse dos compatriotas pela suas experiências do exílio, bem como pela pessoa que vieram a se tornar na vida fora de Praga. Ninguém terá a esperada e nem boa educada iniciativa de perguntar sobre a vida que levaram enquanto exilados, de pedir que contem algo: se casaram, se viveram tempos difíceis, como estão hoje, se moram no mesmo lugar. Nem mesmo uma pessoa demonstrará interesse pelas suas histórias! O desinteresse será insistente, repetido – e muito incômodo àqueles que estão lendo a novela-, durante toda a estadia dos tchecos em Praga.
A partir disso, algo se tornará perceptível: a novela de Kundera, intitulada sintomaticamente “A ignorância”, é um relato sobre o sentimento de ser ignorado pelos outros; ou ainda, como virá a assumir o desabafo de Josef em uma de suas falas, é uma novela sobre o desinteresse das pessoas umas pelas outras – Josef desabafa: “Só voltando ao país depois de uma longa ausência é que percebemos o que é evidente: as pessoas não se interessam umas pelas outras e isso é normal” (p.108).
Ao desinteresse pelo exilado, o narrador oferece uma explicação: “o comunismo extinguiu-se na Europa exatamente duzentos anos depois de acesa a chama da Revolução Francesa. […] A primeira data fez nascer um grande personagem europeu, o Exilado (o Grande Traidor ou o Grande Sofredor, como quisermos); a segunda fez com que o Exilado saísse de cena da história dos europeus” (p. 23-24). O exilado, para os europeus, após o comunismo, então se torna uma pessoa desconhecida, desinteressante, e, finalmente, com o passar dos anos, desaparecida do imaginário. Desta feita, tanto os patriotas que outrora demonstraram contrariedade àqueles que optaram pelo exílio, quanto os anfitriões dos expatriados de outras nacionalidades, ficaram desinteressados pela figura do exilado.
Sentindo muito fiel e dolorosamente esse fato, Irena tem uma descrição relevante sobre ele, tomando os seus anfitriões franceses como exemplo: “Os franceses, você sabe, não precisam de experiência. […] Não estavam interessados por aquilo que pensávamos, interessavam-se por nós como provas vivas daquilo que pensavam. É por isso que foram generosos conosco e se orgulhavam disso. Quando, um dia, o comunismo desmoronou, eles me olharam, com um olhar fixo e indagador. Nesse ponto alguma coisa deu errado. Não me comportei como eles esperavam. […] Eles viram em mim o sofrimento de uma exilada. Depois chegou o momento em que eu deveria confirmar esse sofrimento com a alegria do meu retorno. E essa confirmação não aconteceu. Sentiram-se enganados. E eu também, pois, nesse meio-tempo, havia pensado que eles me amavam não pelo meu sofrimento mas por mim mesma”.
Irena completa o relato, mencionando a relação com uma amiga, Sylvie: “Ela ficou decepcionada por eu não ter voltado correndo no primeiro dia para Praga, para as barricadas! […] ‘Vocês brigaram?’ [pergunta Josef.] ‘Não, absolutamente. Simplesmente eu não era mais uma exilada. Não era mais interessante. Portanto, pouco a pouco, gentilmente, com um sorriso, ela deixou de me procurar’. ‘Com quem então você pode conversar? Você se entende com quem?’ ‘Com ninguém’. Depois: ‘Com você’.” (p. 108-109).
Aparentemente Irena e Josef têm destinos comuns, tangíveis e dispostos a proporcionar um enlace entre os dois, dadas as experiências comuns, e, sobretudo, o que vem a sentir os dois reciprocamente no dia de seu reencontro em Praga: a compreensão do outro pela sua condição, o interesse do outro pelas suas histórias, o interesse de um pelo outro, enfim, a perda momentânea de seu estado de incógnita em Praga e no mundo.
Todavia, tendo rendido os dois à equivocada piscadela do acaso para a certeza de uma paixão, logo no momento do sexo – na sua capacidade própria de provocar uma absoluta intimidade -, os dois têm uma conversa que revela as intenções particulares de cada um ao participarem desse encontro, bem como as motivações pessoais que os levaram a querer sua realização; as diferentes intenções, por definitivo, abrem rotas paralelas em suas vidas e causam seu desencontro.
Irena ficara convencida demorados dias que finalmente se veria salva de seu casamento infeliz com um sueco, no entanto, descobre que se passava por uma desconhecida também a Josef: ela se lembrava de cada detalhe daquele encontro distante, enquanto a verdade é que Josef não se lembrava de nada, nem mesmo dela, fora apenas gentil a uma mulher igualmente gentil e cordial no aeroporto. A decepcionante descoberta rapidamente faz Irena querer se distanciar dele e esbravejar: “Fez amor com uma desconhecida que se ofereceu a você! Você abusou de um mal-entendido! Você me possuiu como uma puta” (p. 120).
Já Josef, ao ser muito calorosa e carinhosamente tratado por uma mulher, nutriu a esperança de finalmente encontrar o que viria a ser uma mulher-irmã, personagem dócil e companheira que desde então buscara nas mulheres, mas fadado ao insucesso das relações amorosas, nunca havia encontrado; com as mulheres, somente vivenciara relações fáceis, e, por isso, passageiras, e um casamento que o deixou viúvo.
Irena e Josef, ambos, não tiveram outro comportamento que aquele do náufrago sem porto que aposta em todas as alternativas para a sua sobrevivência: os dois apostaram um no outro aquilo que a vida inteira passaram buscando e não foram recompensados, bem como apostaram no outro o recomeço de uma nova vida após a amarga e decepcionante certeza de não terem lugar na cidade de origem: “ele nada sabia dela, mas uma coisa parecia clara: ela estava apaixonada por ele; pronta para ficar com ele, para deixar tudo, para recomeçar tudo. Sabia que ela pedia socorro. Ele tinha uma oportunidade, certamente a última, de ser útil, de ajudar alguém e, no meio daquela multidão de estrangeiros que povoa o planeta, encontrar uma irmã.” (p. 123). Irena e Josef, sem o conhecimento do outro, incluiu o personagem que faltava na casa natal que cada um construiu para si para habitar o entre-lugar provocado pelo deslocamento em país estrangeiro e o retorno frustrado ao país natal.
Ao fim de seu regresso e encontro, os dois descobrem que uma vida em Praga para ambos não era possível mais; isto posto, desde o início, um relacionamento entre eles em cena boêmia estava fadado a não existir. Ambos, em regresso a Praga, sentiram a certeza de que a terra natal não era mais seu lar. E a vida que os dois deixaram em seus países de exílio, estava ainda por conduzir e se realizar. Até então, uma vida imaginada fora da cidade natal era não imaginada e não levada à frente, pela barreira do sentimento de nostalgia, alimentado a cada instante pelas frustrações com a infeliz vida presente, e a expectativa de reviver vida melhor, ou pelo menos mais familiar, na pátria. Existia o mandato do retorno, pela nostalgia, e se não cumprido, impedia o surgimento de perspectivas para uma nova vida.
Após o retorno à pátria, e as revelações tidas em relação à vida no lugar de origem e fora dele, às frustrações e esperanças para cada espaço habitado pelos personagens, a dimensão espacial do exílio (de distanciamento do lugar natal), ganha uma dimensão psicológica, os personagens são deixados diante da casa natal que cada um traz dentro de si, convocados a se voltarem para a vida que levam e retraçar sua existência, pois, tanto Irena quanto Josef terminam a história nostálgicos de uma existência ainda não vivida, isto é, com o sofrimento de um retorno (à própria vida) não realizado, pois que ainda não definido. Agora estão exilados de si e sua experiência de exílio é introspectiva.
Aquele que deixou a pátria não mais encontra acolhida e visibilidade em nenhum lugar, resta perfazendo a que então torna-se uma infinita busca pelo (re)estabelecimento de uma vida normal em algum lugar. Diante do entre-lugar provocado pelo deslocamento em país estrangeiro – acompanhado da nostalgia da vida no exílio -, e o retorno frustrado ao país natal, o exilado é impelido a construir uma nova vida e reconsiderar a sua experiência de exílio e retorno sob outras perspectivas.
Irena “sempre havia considerado evidente que seu exílio fora uma infelicidade. Mas, ela se perguntava naquele momento, não seria mais uma ilusão de infelicidade, uma ilusão sugerida pelo modo como todo mundo enxerga um exilado? Não estaria fazendo uma leitura de sua vida baseada numa bula que outros haviam colocado em suas mãos? E lhe ocorria que seu exílio, apesar de imposto pelo exterior, contra sua vontade, talvez fora, sem querer, a melhor solução para sua vida. As forças implacáveis da História, que haviam atentado contra sua liberdade, a tinham tornado livre” (p.19).
Finalmente, “A ignorância” de Milan Kundera ao mesmo tempo em que descreve as dolorosas experiências da nostalgia e da ignorância dos outros – em posição de temas centrais e protagonistas no texto -, também se constitui uma novela em celebração da liberdade: palavra, ou estado de ser, que na novela não vem transvestida de outra forma que aquela da aptidão para se domar a própria vida, de fazer as próprias escolhas e tomar as próprias decisões, de forma a encontrar o caminho que leva à casa pessoal, onde exilados voluntários, cada um consiga experienciar o próprio acolhimento, conforto e receptividade de viver e estar no mundo.
A escrita de Kundera é instigante, profunda, inteligente, criativa, e sobretudo, eu a definiria pessoalmente por “subversiva”. Quase a cada frase de seu texto somos convidados a tomar por outra perspectiva noções instituídas sobre os mais diferentes assuntos e questões, ora a literatura, ora o ser humano, ora um termo, uma palavra ou expressão, ou mesmo um livro – a novela “A ignorância”, por exemplo, é, em muitos aspectos e passagens, uma releitura da Odisseia.
Milan Kundera é um dos grandes escritores vivos do século XXI (ele está com 86 anos). Sua obra é pouco extensa e tem recebido diversas publicações e republicações, todas saídas pela Companhia de Bolso/Companhia das Letras. Àqueles que ainda desconhecem a literatura do escritor tcheco, deixo aqui a minha viva recomendação para seu conhecimento, agora muito estimulado e facilitado neste privilegiado tempo para encontrar boas edições de sua obra.
Bruna Pereira Caixeta é estudante e mantém o blogue Brumas.
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