Por Alessandra Caneppele
Enquanto 0,01 % dos habitantes da Grande São Paulo aproveitam o domingo para desfilar pela Avenida Paulista empunhando o nome Bolsonaro, testemunhando que as minorias radicais sobrevivem também por nossas bandas, cá e lá encontramos na mídia e nas redes sociais pessoas se declarando a favor do não pronunciamento desse mesmo nome.
Circula por aí, por exemplo, um vídeo com uma jornalista conhecida no qual ela discorre sobre os horrores do dito e, ao mesmo tempo, reafirma sua recusa em nomear aquele que não mereceria sequer ter seu nome propagado em ondas sonoras.
A primeira explicação para essa recusa é simples e diz respeito ao funcionamento interno ao mundo virtual: não o nomear é um modo de frear um aumento exponencial de sua realidade virtual, na medida em que, quanto mais ele aparecer nos meios de comunicação e na internet, mais ele aparecerá, mesmo quando não o estivermos procurando. Pretende-se assim privar o deputado dos benefícios da versão moderna da velha fórmula “falem mal, mas falem de mim”.
Nada mais razoável do que lhe negar tal propaganda. Mas será apenas isso que está em jogo nessa recusa em dizer seu nome?
Escutando a jornalista, lembrei-me de uma senhora do começo do século já passado, que morreu de câncer sem nunca sequer ter pronunciado o nome da doença que a matou. Para ela, dizer “câncer” significaria trazê-lo já como presente em seu corpo e ela evitou a palavra até o fim. Todos nós conhecemos pessoas assim. Não o dizer não foi suficiente para a doença não chegar até ela; talvez, pelo contrário…
Lembrei também do velho modo de educar evitando falar “nomes feios” e outras palavras perto das crianças – para evitar a costumeira pergunta infantil “o que quer dizer isso?”, ou a repetição dos mesmos em situações constrangedoras.
Enfim, não é desconhecido nem novo o artifício de afastar um mal apenas negando-lhe nomeação; pelo contrário. Que o digam os tabus dos povos antigos, ou a proibição da enunciação do nome de Deus. Afinal, “é só falar no diabo que aparece o rabo”, diz o provérbio. A palavra, essa “feiticeira”, como escreveu Freud antes mesmo de inventar a psicanálise, parece estar sempre aí, pronta para exercer seus poderes sobrenaturais, e devemos respeitar seu poder evocativo.
Além da questão da propaganda, quanto desse poder atribuído à palavra permaneceria ainda atuando na recusa em dizer o nome Bolsonaro? Não subjaz à sua não nomeação uma semelhante crença de que, se não dissermos o seu nome, o fulano mesmo vai não vai aparecer?
Não creio que os defensores do não dizer “Bolsonaro” acreditem nesse método de eliminação – esclarecidos, eles não professam mais esse credo supersticioso na palavra. Mas, em certa medida, os defensores do não dizer não manteriam, em um outro lugar, uma semelhante crença no poder primitivo do nome?
Quando uma elite esclarecida brasileira escolhe não pronunciar o nome “Bolsonaro” ela não o faria por medo de que a repetição desse nome nas orelhas incultas da massa dos eleitores, supostamente incapazes de investigar o homem por trás do nome, se converteria imediatamente em voto e, consequentemente, na continuidade da presença desse sujeito no cenário político nacional? A elite não revelaria assim a sua crença de que devemos continuar a tutelar um povo primitivo, infantil e supostamente incapaz de pensar, por si só, com alguma razão? Enfim: não falemos “Bolsonaro”, pois senão as crianças/o povo sairão por aí repetindo e votando incautos, sem saber o que ele significa! Não é para que ele desapareça da vida da classe culta que se propõe não dizer seu nome – classe suficientemente “crescida” para saber que isso não funciona! Mas seria sim para que o tal sujeito desaparecesse da mente dos que não saberiam bem julgá-lo – e que, depois, perpetuariam sua presença confirmando nas urnas o nome meramente escutado …
Aceitar essa política do silêncio, compatível à crença da elite em um povo a ser tutelado, pode apenas perpetuar o “efeito tiririca” no cenário nacional. Felizmente na mídia e nas redes encontramos os benefícios de nossos anos democráticos, mostrando que avançamos para além da dicotomia entre uma elite supostamente iluminada e um povo supostamente ignorante. E foi justamente na força da palavra e da nomeação que muitos encontraram respaldo para a destruição do “perigo” Bolsonaro – que passou a ser desconstruído e reconstruído como Bolsoréu, Bolsonazi, Bostonaro e por aí afora.
Como aprendemos na talking cure freudiana, a palavra pode envenenar nossa alma, adoecendo-a, mas ela também é nosso único remédio para esses males. Não precisamos deixar de falar Bolsonaro; pelo contrário, devemos falar muito, à exaustão, para que o velho LOBO, de tanto repetir-se, vire o novo BOLO – como aprendemos com o conto infantil. Será apenas falando “Bolsonaro” que poderemos vencê-lo – pois aprendemos assim que somos nós, falantes, os responsáveis pelo peso e valor dado a qualquer nome. Não se trata, portanto, de silenciar e esconder embaixo do tapete o poder mágico da palavra, mas sim de desmistificá-lo, apontando para o lugar de poder daquele que pode modificá-la quando a pronuncia. Devemos colocar a palavra, essa velha bruxa, para trabalhar a nosso favor. Se não o fizermos, ela trabalhará contra nós, alimentando a monstruosidade de um inominável Bolsonaro em orelhas pueris …
Bolsonaro fascista ou nazista repetiria o horror inumano do que nem sequer pode ser dito e, justamente por isso, exige ser nomeado e renomeado. Procurando nos cartórios italianos, descobrimos uma mudança na grafia do sobrenome Bolsonaro no Brasil: na Itália ele é originalmente grafado Bolzonaro. O z de origem e sua correspondente pronúncia testemunham, em uma letra perdida, a recriação que corre na internet agora: BO(l)ZO-naro. Na origem esquecida do nome do temível facínora encontramos escondida uma prova textual da ligação desse com o palhaço BOZO!
Associando-o ao decrépito comediante, reconhecemos então, alardeados pelo tal deputado no picadeiro de nossa cena política atual, apenas os estertores patéticos de uma comédia que nem sequer mais faz rir. Seu nome conta sobre uma história que se repetiria agora em nosso nazista tropical como farsa!
Não é fácil viver sob o desgoverno de palhaços sacanas, temendo que a comédia termine em tragédia, equilibrados entre Bolsonaro presi…diário/dente. Na Itália, o sobrenome Bolzonaro, com z, é hoje raro, quase extinto. A extinção por aqui da versão tropical de nosso inominável pede que todos, como nação, acreditemos sermos igualmente capazes de nomeá-lo, sem medo. Afinal, se ninguém o pegar, ele sabe, sozinho, se atirar no vazio … que palhaçada!
Nesse momento em que o mundo chora mais uma vez com a França do Charlie Hebdo, mais uma vez constatamos que o extremismo atroz e inumano guerreia contra a palavra livre e o humor – justamente porque conhece os poderes letais da bruxa.