A advertência é do historiador Éder da Silveira, professor no Departamento de Educação e Humanidades, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Éder Silveira integra a Comissão de Ética Pública da UFCSPA que vem promovendo uma série de debates públicos sobre temas éticos.
Em 2016, já foram realizados três debates. O primeiro discutiu o direito de um profissional de saúde negar o atendimento a alguém, tendo como ponto de partida o caso da médica que se recusou a atender uma criança pelo fato da mãe desta ser filiada ao PT. O segundo tratou da violência contra a mulher no ambiente universitário e o terceiro foi sobre liberdade de cátedra e liberdade de expressão, um tema muito presente no debate hoje tanto na educação escolar quanto na universitária.
Em entrevista ao Sul21, Éder Silveira fala sobre as ameaças que pairam hoje sobre a liberdade de cátedra e a liberdade de expressão no ambiente escolar e acadêmico, em especial por projetos como o Escola Sem Partido que, supostamente, quer combater o que chama de “doutrinação de esquerda” dentro das salas de aula, apresentando-se como destituído de qualquer ideologia. No Rio Grande do Sul, esse projeto tem entre seus defensores o deputado estadual Marcel van Hattem (PP) e o vereador Valter Nagelstein (PMDB) que, recentemente, apresentou um projeto na Câmara de Vereadores de Porto Alegre querendo proibir que professores da rede municipal de ensino emitam opiniões dentro das salas de aula.
Para o historiador, esses projetos limitam a liberdade de escolha dos professores daquela que consideram a melhor abordagem sobre um determinado tema. “É um projeto tão genérico que a simples menção à teoria econômica marxista pode se transformar em justificativa para uma denúncia e um processo contra um professor” alerta Éder da Silveira.
Sul21: Quais são as ameaças que pairam hoje sobre a ideia de liberdade de cátedra e, de um modo mais geral, sobre a liberdade de expressão nos ambientes escolar e acadêmico?
Éder Silveira: Essa discussão ganhou força nos últimos anos, alimentada, entre outros fatores, pelas ideias dos defensores do projeto Escola Sem Partido. Mas, na verdade, é uma discussão mais antiga e vem se colocando desde os anos 90, quando se começou a questionar a qualidade dos livros didáticos. Em 2007, a revista Veja publicou uma reportagem sobre esse tema e, depois, o jornalista Ali Kamel (responsável pelo jornalismo da Rede Globo) escreveu um artigo denunciando o suposto caráter doutrinário dos livros didáticos. Essa conversa começou a ganhar corpo a partir daí. (Veja texto sobre o tema)
Hoje, nós temos uma disputa. O ambiente político brasileiro está muito polarizado e há um crescimento muito expressivo de um campo político conservador que saiu do armário. As pessoas não têm mais qualquer receio ou pudor de assumir posições políticas de direita. Esse fenômeno cresceu bastante na última década, o que é possível perceber inclusive no campo editorial. Algumas editoras passaram a publicar, em língua portuguesa, obras de autores conservadores como Roger Scruton, Thomas Sowell e Russell Kirk, entre outros. Autores conservadores brasileiros também começaram a ganhar notoriedade como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, Bruno Garschagen e Flávio Morgenstern.
Independentemente de eu concordar ou não com as ideias e posições políticas desses autores, elas são absolutamente legítimas, mas eles se colocam no debate público de uma forma bastante agressiva, utilizando um caminho jurídico para tentar constranger professores que, segundo eles, têm uma postura doutrinária. Se prevalecerem as ideias dos defensores de propostas como a da Escola sem Partido, ficaria muito difícil, por exemplo, um professor de Biologia trabalhar com o evolucionismo porque isso feriria valores familiares. Se os pais são cristãos, eles esperariam que o filho recebesse numa escola pública também uma explicação criacionista para a origem do mundo. Uma questão de fé é uma questão privada. Nós não podemos equivaler um discurso mítico, religioso e simbólico a uma discussão de natureza acadêmica. Não são coisas que podem ser equiparadas, ao meu ver.
Sul21: Na sua avaliação, quais são os principais problemas envolvidos neste projeto da Escola sem Partido?
Éder Silveira: O que incomoda muito neste projeto é a tentativa de criar um factoide afirmando que as escolas são fábricas de doutrinação. Um artigo publicado há alguns dias pelo deputado Marcel van Hattem é um exemplo de como esse tema funciona como uma cortina de fumaça. As escolas gaúchas estão ocupadas. Qual é a explicação dele? É culpa do PT, do PSOL, da esquerda, do comunismo bolivariano. Faça-me o favor… Na verdade, são escolas em situação precária, com baixo investimento, um problema histórico das escolas no Rio Grande do Sul. Eu fui aluno de escola pública nos anos 80 e conheço bem essa realidade. Naquela época, a situação das escolas já era precária e, pelo que sei, essa precarização não cessou. É por isso que os alunos estão ocupando as escolas. Os estudantes também se manifestaram duramente em 2013, durante o governo Tarso Genro. Não há base, portanto, para essa afirmação do deputado Van Hattem. Aliás, me parece que toda essa discussão proposta pelo projeto da Escola sem Partido é marcada pela falta de base. Os seus proponentes têm muita dificuldade de definir o que é doutrinação, o que é ideologia.
Em um livro chamado “Ideologia”, Terry Eagleton apresenta dezesseis definições diferentes de ideologia em dezesseis autores diferentes. Ideologia não é um conceito único. Um de seus pressupostos é que todo discurso, mesmo aquele que almeja neutralidade, é atravessado por uma ideologia, por uma forma de ver o mundo. É uma lente mediante a qual o indivíduo se coloca no mundo e o interpreta. Não há a menor possibilidade de imaginarmos que exista um tipo de discurso neutro. Essa neutralidade não existe na ciência e muito menos nas ciências humanas. Isso é absolutamente incompatível com todo o debate no campo das ciências humanas no século XX, seja qual for a escola de pensamento que escolhamos. Por outro lado, dizer que não há neutralidade não significa defender a partidarização ou algo do tipo.
Há um artigo muito bom de Contardo Calligaris sobre esse tema, publicado na Folha de S.Paulo. Calligaris é um crítico do PT, do governo Dilma e da esquerda. Ele não é um bolivariano, portanto, e apresenta uma crítica muito dura ao projeto da Escola sem Partido. Mesmo articulistas mais de centro ou centro-direita como o próprio Contardo Calligaris ou Hélio Schwartsman teceram críticas muito duras a esse projeto, que é muito genérico. Ora, toda e qualquer discussão sobre um tema que não seja consensual, e que aquilo que a escola ensina possa mexer com convicções familiares, fatalmente fará com que o professor ou professora sofram a acusação de um suposto crime de manipulação ideológica. Esse é um discurso desprovido de qualquer racionalidade que não condiz com a realidade das escolas. Aliás, é interessante observar que a maioria dos seus proponentes não são professores e não conhecem de perto o que acontece nas salas de aula. (Por Marco Weissheimer – Texto Integral no Sul21)