Por Alessandra Caneppele
De um lado vimos a repercussão do post de Neymar, dirigido aos jogadores brasileiros, que transcrevo abaixo:
“Ninguém sabe o que vocês sofrem para estar aí e defender a seleção, vestir essa camisa é um orgulho e vocês fazem isso com AMOR. Agora, vai aparecer um monte de babaca para falar merda, Foda-se. Faz parte, futebol é isso!!! Sou brasileiro e estou fechado com vocês”
Do outro lado, vimos a cena inclassificável do técnico alemão Joachim Löw, filmado no jogo de seu time contra a Ucrânia. Podemos revê-la por exemplo no link, em transmissão da televisão italiana, justamente aquela que “vazou” as imagens:
Não é a primeira vez que ambos os protagonistas dos ocorridos aparecem nesse tipo de polêmica. Talvez, então, valha a pena se estender um pouco nesses concomitantes fatos.
No primeiro caso, a chiadeira contra a postura do jogador-estrela face aos críticos do futebol apresentado pela seleção conduziu a uma rápida retratação por parte desse: “me excedi, pedi desculpas a todos os que se sentiram ofendidos é o mínimo que posso fazer”. Neymar pede perdão pelo seu excesso, mas não pela essência de sua posição: o futebol do “AMOR” brasileiro não merece as críticas que recebe.
Já na Alemanha, ao lado da tentativa de alguns jogadores naturalizarem o ocorrido, a Federação Alemã de Futebol indignou-se, criticando a UEFA por divulgar imagens que não acrescentariam nenhuma informação sobre a partida, objeto real da transmissão. Na França, país do iluminismo, alguns sites esportivos tentaram explicar os gestos e atos repetitivos do técnico alemão a partir de uma interpretação clínica: sob pressão, Löw apresentaria um comportamento regressivo, infantilizado – e, desse modo, distante do mundo, ele retornaria ao jogo com seus próprios orifícios, sem se dar conta de que está sendo observado. Em todos os casos, Löw foi poupado de uma crítica que o exporia ainda mais: bastava o grotesco de sua própria exposição. A blindagem funcionou e o assunto morreu.
Talvez fosse uma blindagem do tipo dessa que Löw recebeu que Neymar estaria reclamando aos críticos do nosso futebol? Ao invés da acusação e da guerra, Neymar pediria, em nome do futebol brasileiro, um pouco mais de amor e de compreensão – enfim, de proteção? Mas trata-se aqui de uma situação semelhante? De imediato podemos responder que não: a Alemanha ganha; o Brasil perde. Então, bastaria responder que premiamos os que vencem e punimos, com críticas e desafeto, os que fracassam – tal qual pais que beijam o filho quando esse chega da escola com uma boa nota e o punem, quando a nota é vermelha.
Mas será só isso? Não temos aqui uma oportunidade interessante para pensar sobre o que é ganhar e perder no mundo de hoje – tanto no caso dos jogadores quanto naquele dos filhos? Avancemos então um pouco mais sobre o enredo dos dois episódios.
O combatente Neymar, no mesmo dia em que guerreia contra os críticos do futebol brasileiro, mostra-se nas redes sociais em férias cercado de beldades “sem filtro”, expondo tanto o seu corpo sarado como aquele de suas companheiras. Por trás da luta de palavras, a vida segue aqui no eterno paraíso idílico dos corpos sexuados, bem cuidados. O que sustenta a sua crítica, solidária aos jogadores, é um corpo em férias e sob os holofotes – e é daí que chega a nós o pedido para que não façamos críticas ao fracasso da seleção…
O corpo exposto em férias de Neymar, que não acha certo ser criticado, nos leva imediatamente a pensar, por contraste, na valorização do trabalho transmitida pela nação alemã – povo que, em um tempo sombrio, chegou a escrever “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta) nas portas de um campo de extermínio. A Alemanha baniu o nazismo, mas não a cultura do trabalho – e no mundo da eficiência que governa hoje até a alegria futebolística, a Alemanha obtém seus resultados positivos. É no contexto de uma Alemanha que protege e valoriza seus trabalhadores que o técnico alemão também encontra refúgio. A Alemanha protege Löw porque ele, como um outro qualquer, é um trabalhador eficiente. Ela pede para que as mazelas de seu corpo – repugnantes indícios de um mal recalcado – sejam deixadas na sombra, fora dos holofotes: elas existem, mas não fazem parte do que está em jogo. O que seria a crítica a Löw pertence à esfera privada de sua vida, que não nos diz respeito enquanto espectadores do futebol. Seu uso do corpo pode não ser criticado porque esse não ocupa o centro das atenções que lhe são voltadas: não é seu corpo que está sendo julgado, mas sim o seu trabalho. A Alemanha olha o trabalho de Löw, não seu corpo; enquanto Neymar pede para que olhemos para seu corpo, em férias, não para seu trabalho.
No Brasil, o trabalho nunca foi um valor e o universo do futebol representa paradigmaticamente essa verdade: basta ter talento com a bola para o menino se dar bem na vida. Mas além de Neymar dizer que ele, tal como os demais jogadores, não pode ser criticado por não trabalhar direito, ele afirma isso exibindo seu corpo em férias! O “deitado em berço esplêndido” vigora ainda, muito mais do que imaginamos, como um ideal contrário àquele do trabalho – e, além disso, preso a um imaginário do corpo descansado do trabalho. Não digo que nosso povo não trabalhe; pelo contrário, e muito! Mas vivemos sob o domínio de uma cultura na qual o trabalho, principalmente aquele braçal, subalterno, do esforço, não é reconhecido como dignificante – melhor disfarçar, se, por exemplo, fizemos a faxina da casa. O descrédito brasileiro no trabalho encontra seu contraponto imagético no corpo em férias de Neymar.
Na última copa, um amigo afirmou categórico antes de um dos jogos do Brasil: eles vão perder. Perguntei por que. Ele respondeu: foram hoje todos ao salão do hotel fazer o cabelo, a barba e a unha; não foram treinar. O Brasil efetivamente perdeu. Ora, não se trata de propor a exclusão de qualquer cuidado – mas apenas de acompanhar a sofisticação de nosso Macunaíma de outrora no mercado atual das vaidades. Se antes uma mulher trazia consigo a prova distintiva das unhas pintadas, comprovando que ela não enfiava os dedos em qualquer trabalho serviçal subalterno, agora isso vale também para os homens! E assim nossos corpos continuam a propagandear uma política de exclusão do trabalho: bronzeados pelas horas de lagarto ao sol, estendemos os dedos para que outros trabalhem cortando nossas unhas! E que ninguém critique se o país não der certo: pois, afinal, somos tão lindos, até mesmo sem filtro! E, como escreve Neymar, fazemos tudo com “AMOR”… e não com trabalho…
Não se trata, portanto, apenas da diferença entre mais ou menos esforço de trabalho: esta diferença caminha junto ao elogio de um corpo que se exibe em descanso. Mas, então, basta propor a troca da cultura do descanso e do culto do seu correspondente corpo por uma cultura germânica do trabalho? Voltar ao episódio Löw nos ajuda a recusar essa solução simplista.
A palavra trabalho compartilha etimologicamente sua origem com a palavra tortura – tripalium, sua origem latina, era um instrumento de tortura. Nunca saberemos quanto dessa tortura corporal resta em todo trabalho. Não por acaso, o lema de Temer para salvar o Brasil retoma o “trabalhar” quase como um castigo imposto aos seus detratores! O trabalho é, por origem, um suplício do corpo e não concorda com a presença de um corpo deificado – os deuses, tropicais ou não, não trabalham. Assim, podemos entender não somente porque a cultura do trabalho alemã pede para que se coloque fora de cena o corpo castigado do técnico – mas também porque é de uma forma repugnante, baixa, que o corpo aparece nesse episódio. O corpo do final do trabalho de Löw não é um objeto admirável; pelo contrário: ele é o lado escuro do corpo eclipsado pelo trabalho!
A idolatria ao corpo sexuado de Neymar, deificado, alheio ao esforço do trabalho, é complementar à aparição súbita dos vestígios corporais repulsivos e degradados do técnico alemão, exaurido pelo regime tirânico de trabalho.
Ironicamente, o técnico alemão trabalhou muito, mas acabou justamente coçando o saco em público – expressão que, como sabemos, tem o sentido macunaímico de ficar fazendo nada. Independentemente da nação, parece que ainda não sabemos como combinar de um modo feliz a necessidade do trabalho e o desejo de descansar em berço esplendido. Culturalmente, ainda sobrevivemos pendendo nesse dilema, ora para um lado, ora para outro – nos limites entre o suplício ou a idolatria dos corpos. Incapazes de resolver a pendência, acompanhamos pela mídia as mazelas de Löw e Neymar.
texto: alessandra caneppele
ilustração: F. Ludovice