Por Guilherme Boneto
É muito provável que, retornando ou não ao cargo de presidenta após o afastamento imposto pelo Senado, Dilma nunca mais se candidate a nenhum cargo público. Caso o golpe se confirme, as “leis” – entre aspas mesmo, porque são seguidas apenas nos momentos de conveniência – determinam que ela fique inelegível por oito anos, período após o qual a presidenta terá 76 anos de idade. Conta-se que, ao final do último debate do segundo turno de 2014, contra um Aécio Neves que jamais aceitaria a derrota nas eleições, Dilma confidenciou a auxiliares seu alívio por nunca mais precisar passar por um debate político na televisão.
De todas as pessoas públicas que poderiam estar passando por uma cassação, Dilma Rousseff é decerto a que menos merece uma punição como esta. A História se escreve diante dos nossos olhos, e as circunstâncias nos mostram as entranhas não apenas da real composição do Congresso Nacional e sua ópera bufa, mas do próprio Brasil: não temos vocação para um regime político avançado, como se pretendeu constituir em 1988. Somos um país em grande parte racista, machista e elitista, parecido com a criança mimada que quando perde o jogo de tabuleiro, espalha as peças todas pela mesa encerrando a partida. A presidenta foi reeleita com nada menos que 54.501.118 votos. Se essas pessoas constituíssem um país, este seria o 25º maior do mundo em termos populacionais, comparável à África do Sul. Não é um número desprezível para se jogar no lixo assim.
O PT não satisfez a esquerda brasileira, especialmente neste segundo mandato prematuramente interrompido da presidenta Dilma, mas quando se compreende a esquerda como a luta pela igualdade, o partido pode ser tomado como um exemplo mundial. O Bolsa Família é um modelo de luta contra a pobreza – hoje não há mais pessoas morrendo de fome neste país antes tão conhecido pela miséria, e a mim isso parece uma conquista formidável. As políticas de cotas mostrarão sua cara num futuro breve: haverá uma quantidade muito maior de negros médicos, engenheiros, advogados, jornalistas. Aos nossos negros não será mais reservado um papel secundário de prestação de serviços desvalorizados: eles estarão no centro da sociedade, e mesmo diante deste golpe, trata-se de um movimento irreversível, um legado extremamente positivo do PT à sociedade brasileira.
Convenci-me neste processo de impeachment que argumentos lúcidos não são acatados pelos defensores do golpe. Uma pessoa que de fato conhece a democracia e compreende a importância desse tipo de regime político para a manutenção de um país não acha razoável o Brasil depor dois de seus quatro presidentes eleitos no pós-1988 por impeachment. Contra o presidente Collor havia um consenso nacional, e a punição, conforme as acusações e provas que se tinha à época, era esperada e desejada pela esquerda e pela direita. Mas não há contra Dilma nenhum crime provado.
Ela está sendo afastada por manobras contábeis chamadas de “pedaladas fiscais”, que embora sejam irregulares, não são nem de longe motivo para afastar um presidente eleito por um dos maiores eleitorados do mundo. Aliás, poucos dos acusadores na sociedade sabem de fato o que são as “pedaladas fiscais”, mas têm na ponta da língua o argumento básico para acusar. A punição é desproporcional, injusta e gravíssima, além de ter sido cometida por governadores e prefeitos Brasil afora sem que sequer os parlamentos locais iniciem processos parecidos com o que está ocorrendo com a presidenta.
Não adianta, porém, argumentar. A defesa do impeachment não está ligada ao senso de justiça, mas apenas ao desejo de vingança: querem a todo custo ver o PT desligado do poder, simplesmente porque odeiam o partido e seus símbolos, em especial Luiz Inácio Lula da Silva, o nordestino pobre que chegou, pelo voto, à Presidência da República. Todo esse processo está baseado no medo de que Lula se candidate de novo. Parecem desconhecer a força descomunal que o ex-presidente exerce sobre as pessoas que já não passam mais fome no Brasil – e elas são muitas. Lula irá à luta, não nos enganemos por seu abatimento momentâneo e compreensível.
A despeito da tragédia a que se resume toda esta situação, é didático ver o Brasil mostrar ao mundo sua verdadeira face. Mais um golpe de Estado se consolida, e é triste constatar que é apenas mais um de muitos que vieram e de outros tantos que virão – nossa história é maculada por interrupções ilegítimas de mandatos. Mas ao contrário do que fizeram alguns de seus antecessores, injustiçados ou não, Dilma Rousseff não cometeu suicídio, não solicitou exílio, nem sequer deixou os jardins do Palácio do Planalto na segurança de um helicóptero. Ela se pronunciou à nação acusando mais uma vez o golpe, e saiu pela porta da frente do palácio acompanhada de aliados, para ser recebida por manifestantes que lhe traziam flores e presentes.
Após ser torturada quando lutou contra a ditadura militar, talvez a presidenta pensasse que o Planalto seria um fim glorioso para sua carreira política, apesar dos inúmeros erros que cometeu ao administrar o país, e que merecem uma análise mais aprofundada. Dilma não deve ter imaginado, ao vencer as eleições por duas vezes, que seria ela própria vítima de mais um golpe. Durante todos esses anos tentaram deslegitimar sua imagem, associá-la a crimes horríveis, torná-la uma pessoa incompetente e tola, mas sua resistência diante do golpe nos mostra quem de fato é Dilma Rousseff. Sua força é impressionante. A firmeza nos mostra que o Brasil teve em sua Presidência uma mulher de caráter, disposta a lutar até o fim por aquilo que acredita.
É possível, embora improvável, que a presidenta retorne ao cargo, diante das imensas manifestações populares que fatalmente se abaterão contra o governo ilegítimo que vai ocupando os gabinetes em Brasília. Mas enquanto luta para retornar à Presidência delegada a ela por mais de 54 milhões de brasileiros, Dilma talvez se aperceba que o destino lhe reservou um papel ainda maior do que ela imaginava. A presidenta fará viagens para denunciar o golpe, um golpe que a mídia internacional já notou e vem denunciando há semanas – e que a nossa imprensa considera, escandalosamente, um processo “legítimo”.
Ela poderia simplesmente ir para casa, retornar ao Rio Grande do Sul e aproveitar a infância dos netos Gabriel e Guilherme, ficar próxima da única filha, Paula, e de amigos e parentes. Mas conforme anuncia o título de sua biografia escrita por Ricardo Amaral, que eu já tive o prazer de ler em momentos mais tranquilos da vida política deste país, “A vida quer é coragem”. E a brava presidenta luta com a tranquilidade de quem sabe que a História lhe fará justiça. Até breve, querida. E até sempre.