babasPor Mateus Yuri Passos

Na segunda-feira compartilhei um post de Jacques Barcia sobre a foto do casal que foi ao protesto de domingo com uma babá negra empurrando um carrinho de bebê. O trecho que destaquei foi: “O que o fato diz, nas entrelinhas, na metáfora, é que você está pedindo um mundo melhor pra você, patrão branco, e sua família de comercial de margarina, desfrutarem enquanto a babá negra continua sua empregada, com carteira assinada e recebendo pela jornada dobrada no domingo, permanecendo irremediavelmente, perpetuamente, inescapavelmente sua empregada.”

Dentre outras reações, recebi duas fotografias que oferecidas como contra-argumento de se ver a fotografia como símbolo da orientação classista da passeata: uma imagem traz Dilma, a filha e a neta acompanhadas por seguranças que seguram guarda-chuvas para protegê-las do sol, a outra traz “uma mulher negra” com duas babás brancas para acompanhar as filhas (na praia? não ficou claro).

Gostaria de apresentar um argumento aqui a respeito disso. Não posso considerar as fotografias como refutação da metáfora porque elas não apresentam um contraponto à primeira. As três expressam o mesmo fenômeno, são sintomas do mesmo problema.

No caso de Dilma, há em primeiro lugar desvio de função. Para além disso, após assumir o Executivo federal o PT também quis brincar de elite – como a classe média “alta” aspirante – e por isso o tratamento dos funcionários como serviçais. Essa é uma das grandes falhas que fizeram o partido abandonar o projeto original.
Já a segunda imagem não traz “uma mulher negra”. É GLÓRIA MARIA, caramba! Glória. Maria.
Glória Maria é apresentadora da Globo e ganha altos salários. Com altos salários, teve posses para inverter o papel subalterno em que enclausuramos a população negra do Brasil ao contratar as babás brancas. Mas é apenas isso: INVERSÃO. Isso não significa que o racismo tenha sido superado e que haja igualdade social. Mudam-se os papéis porque ela partilhou do delírio burguês em vez de questioná-lo (talvez para se sentir socialmente aceita?).

As fotos não fazem nada para alterar a leitura de que o protesto defende os interesses de quem se ressente do empoderamento (ainda que limitado ao consumo) de parte das classes populares. O reforço das estruturas de opressão simbolizadas pelas três fotos permanecem a pauta principal, acredito.

Hoje, após a nomeação do Lula como ministro da Casa Civil, muita gente retomou o uso da bandeira do Brasil com um sinal de luto. Mas no fundo a luto não é sinal de indignação contra a corrupção, a impunidade, não é um luto pela saúde, pela educação. Não é um luto pelo Brasil.
Essas pessoas não são contra a corrupção. Ninguém entrou em luto quando as várias denúncias contra Cunha, Aécio, Alckmin e Serra (dentre tantos outros) apareceram.

Essas pessoas não são contra a impunidade. Ninguém entrou em luto quando se denunciou as compras de voto de deputados e senadores pelo PSDB para que a emenda da reeleição (de FHC) fosse aprovada, nem quando os vários processos contra Aécio (o mais recente esta semana, na investigação da Lava Jato) foram prontamente arquivados.
Essas pessoas não estão preocupadas com educação. Ninguém entrou em luto quando as universidade paulistas entraram em crise (por redução de seu orçamento pela gestão Alckmin), quando Beto Richa espancou os professores paranaenses, quando Alckmin quis fechar escolas e inchar ainda mais salas de aula em seu projeto de “reorganização escolar” – e ninguém se solidarizou com os estudantes que ocuparam as escolas e lutaram por sua preservação. Ninguém entrou em luto quando o PSDB se opôs em massa à destinação dos lucros da exploração do petróleo do pré-sal para a educação.

Essas pessoas não estão preocupadas com saúde. Ninguém entrou em luto quando o governo Alckmin reduziu drasticamente as verbas da Santa Casa. Ninguém entrou em luto pela precarização de contratos de enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais. Ninguém entrou em luto quando a classe médica se opôs à vinda de estrangeiros para atender a comunidades e alcançar lugares onde os médicos não estavam dispostos a trabalhar. Ninguém entrou em luto quando se denunciou os atos também corruptos de médicos que batem cartão no serviço público e abandonam o posto para fazerem dinheiro em clínicas particulares – deixando a carga de trabalho para residentes sobrecarregados e mal pagos.

Essas pessoas não lutam pelo Brasil. Ninguém entrou em luto quando o patrimônio nacional – ou estadual – foi saqueado, empacotado e vendido a preços baixos – a Vale do Rio Doce que ano passado destruiu o rio de mesmo nome, o Banespa, a Nossa Caixa, o pré-sal que acabou de ser entregue de mãos beijadas à exploração estrangeira. Ninguém entrou em luto quando Aécio pressionou no Congresso um aumento irresponsável de gastos públicos para aprofundar a crise no orçamento federal com o único objetivo de enfraquecer ainda mais o Executivo, sem preocupar-se com o impacto que isso trará para TODA a população.

Não adianta dizer que os protestos contestam tudo isso. Não é essa a pauta, não são essas as palavras de ordem. Essas pessoas lutam contra o PT porque é apenas esse o discurso que a passeata como um todo vocifera.
A fotografia da babá com o carrinho pode não ser representativa dos manifestantes individualmente, mas é simbólica, sim, do pensamento que convocou e sustenta os protestos. São coisas distintas: o motivo do inchaço da passeata no domingo e a retórica geral do protesto não coincidem. Tenho certeza de que muita gente estava ali realmente indignada, na esperança de construir um país melhor, mas após um eventual impeachment nem 5% desses que estiveram nas ruas se indignarão contra Alckmin, contra Aécio, contra Cunha — essa luta continuará sendo exclusiva da esquerda real que ainda sobrevive nos movimentos sociais e em um punhado de partidos e é continuamente desprezada e ironizada por boa parte dos que pedem a cabeça do PT.

O que motivou as primeiras passeatas pelo impeachment de Dilma – anteriores à Lava Jato, inclusive – foi a insattisfação do PSDB (nominalmente o candidato derrotado, Aécio Neves) com o resultado das eleições de 2014. Antidemocrático naquele momento, portanto, pois motivado exclusivamente pelo revisionismo da votação. Quando as pessoas foram às ruas, a tecla em que mais se bateu não foi corrupção, mas o medo do “comunismo” (é…) e a revolta com o programa Bolsa Família.

Mais passeatas aconteceram ao longo de 2015. Falava-se de Petrobrás, corrupção, mas o tópico recorrente e expressado com mais rancor era o Bolsa Família.

Os Jornalistas Livres fizeram alguns vídeos sobre a passeata de domingo. O que reaparece na boca do cidadão de bem, honesto, preocupado com a probidade administrativa? Bolsa Família.
Justamente uma das poucas iniciativas decentes da gestão petista. E criticada com pressupostos bastante equivocados. “Os pobres no Brasil são vagabundos e fazem filhos para ganhar mais Bolsa Família.”. Não. O programa possui um teto bastante baixo: R$306. TREZENTOS E SEIS REAIS. Isso não sustenta uma casa e nem alimenta 10 filhos. (http://www.cartacapital.com.br/…/entenda-como-funciona-o-bo…)
O objetivo do programa é combater a pobreza extrema. A fome. Conseguiu: http://brasil.elpais.com/…/…/politica/1429790575_591974.html

Se opor a isso é pior do que mesquinho. É desumano. Aí está parte do fascismo.
O Bolsa Família certamente tem suas limitações e problemas. Tenta remediar um mal com assistencialismo em vez de combater as origens econômicas da desigualdade e da miséria – está em oposição ao comunismo, portanto, em vez de ser uma expressão dele.

E o Bolsa Família é confundido com outro fenômeno contemporâneo a ele que desperta a outra parte do fascismo: a famosa “ascensão da classe C” por meio da redução de juros e facilitamento do crédito, muitas vezes sintetizada – corretamente – como uma política de inclusão pelo consumo – novamente, não combatendo as origens das desigualdades e enriquecendo banqueiros, fatores opostos a qualquer definição de comunismo. Uma das piores consequências dessa política é a geração de endividamento, mas não é esse o ponto contestado nas ruas.
O problema está nessa questão: inclusão pelo CONSUMO.

Há outro segmento da população que busca desesperadamente uma inclusão pelo consumo: a classe média “alta”. Essa eu conheço bem. Faço parte dela, convivo com ela em ambientes familiares, conheço seu pensamento. O problema da classe média “alta” (como o do PT pós-2003, como Glória Maria e tantos outros jornalistas que ocupam altos cargos) é o seguinte: ela delira. A classe média “alta” apontada pelo Datafolha como maioria nos protestos de domingo (http://congressoemfoco.uol.com.br/…/datafolha-perfil-dos-m…/) pensa que faz parte da elite. Até o Datafolha pensa.
Mas. Não. Faz.

Ganhar entre 4 mil e 18 mil reais não torna ninguém parte da elite. Ou 30 mil reais.
Receber altos salários, ter muito dinheiro não transforma ninguém em elite.
Ser médico ou advogado, professor universitário, piloto de avião, diretor de escola não torna ninguém elite.
Todos esses ainda são assalariados. Ou autônomos. Mas igualmente vendem sua força de trabalho. Uma demissão e – BAM! – despencam do pedestal.

Pequenos comerciantes e pequenos e médios empresários, idem. Dependem – desesperadamente – de sua clientela. Mesmo que ela seja da elite. Principalmente se for. Porque o que define a elite é a posse dos meios de produção e exploração do trabalho alheio. A pessoa que ganha seus R$ 20 mil por mês de salário certamente gera um rendimento muito superior a isso a seu patrão. Não há distribuição de benesses. Classes trabalhadoras – e a classe média “alta” não está à parte delas – ganham seu dinheiro com o suor de seu trabalho. A elite ganha seu dinheiro com o suor do trabalho alheio.

Mas o sonho da classe média “alta” é ser elite. Sentir-se elite. Como?
Inclusão pelo consumo. Viagens internacionais, carros luxuosos, roupas de grife, brinquedinhos tecnológicos – gosto muito por sua utilidade, mas abomino seu uso para exibir “status”. Frequentar a sala VIP do cinema, usar estacionamento VIP, pagar por ingressos em exposições de arquitetura e decoração cobrados principalmente para barrar quem não pode pagar por eles. Ter serviçais uniformizados. Sentir-se integrante do clubinho dos ricos e endividar-se até a tampa para sustentar essa ilusão.

Não é à toa que a frase “aeroporto virou rodoviária” começou a circular tanto. O maior ressentimento da classe média “alta” é que o empoderamento econômico (superficial) da classe média “baixa” abriu fendas nesse exclusivismo – pôs em xeque justamente o elemento que a fazia se identificar com a elite. A demanda dela é por exclusão social – o pobre precisa continuar a aparentar sua pobreza para que ela possa aparentar sua riqueza. Isso vale também para as cotas – o acesso dos subalternos à universidade pública, e possivelmente aos altos salários, é inadmissível.
Isso, acima de tudo, é o que configura a passeata como gesto autoritário, fascista. Um rancor classista alienado (alineado porque a classe média “alta” não é e nunca será elite; seus interesses não são e nunca serão defendidos e protegidos pela elite).

Não sou favorável ao governo do PT que se apresenta hoje. Mas não tenho como concordar – ou deixar de questionar – a multidão que vê nele a grande besta que ameaça o país, e na sua punição a cura para todos os males.
O protesto foi, sim, a passeata da hipocrisia.
(será que alguém vai ler? hah)