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Polícia ataca foliões em Campinas como se estivesse sedenta por terroristas

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel/Do GGN

Tomo a liberdade de escrever em primeira pessoa, algo que não faço nem nos meus relatos etnográficos, onde esse tipo de registro tem um considerável significado metodológico.

Eu havia acabado de postar uma matéria no meu espaço de blog, hoje, sábado, 30 de janeiro de 2016, e, vislumbrando pela janela do meu apartamento a movimentação das pessoas na rua, senti-me aguçado pela curiosidade de ver in loco o acontecimento social do dia em Campinas.

Apenas ver, dedicar-me a um breve flaneurismo etnográfico, como curioso observador que sou das paisagens humanas. Tratava-se de um evento pré-carnavalesco que, ao que parece, reuniria blocos e foliões precoces em torno do Centro de Convivência Cultural (CCC), uma praça localizada a apenas três quarteirões de onde moro.

Meu relato sobre o evento em si é deliberadamente impreciso, porque tudo o que pude saber a respeito dele foi o que vi, antes dele acontecer, por volta das duas da tarde, quando fui até o supermercado que fica junto ao CCC, e observei uma infra-estrutura de toldos e espaços seccionados notavelmente produzida, como eu nunca havia visto antes naquele local. Ao redor dela e ao longo de alguns quarteirões do entorno já se agrupavam os tais foliões precoces, com camisetas de blocos, além de vendedores de bebida e uma espécie de arremedo de praça de alimentação espalhada, com pontos no estilo food-truck. Pensei comigo: carnaval de campineiro parece que tem um quê de shopping-center.

De fato, essa região está longe de ser considerada “popular”. Trata-se de um bairro que qualquer observador taxaria de “classe média alta”. E não apenas isso. Início do circuito dos bares, restaurantes e casas noturnas pelos quais ainda se entra pela calçada da rua, essa região específica mereceria em algum outro lugar mais espirituoso que Campinas o epíteto de “baixo Cambuí”.

Às duas da tarde o mais notável ainda era a excitação pré-carnavelesca no ar, mauricinhos e patricinhas (ou, para quem não gostar dessa terminologia, garotões e mocinhas produzidas) se abastecendo de bebidas no supermercado, ruas cuidadosamente bloqueadas para o acesso de carros e o ensaio da disposição de um impressionante dispositivo policial.

De uns anos para cá, os encontros pré-carnavalescos ocorrem nessa região de forma quase espontânea, por conta de um bloco que se criou em um dos bares ancestrais e icônicos do local. Com o afluxo crescente de gente e o consumo massivo de bebida alcoólica, a coisa passou a guardar um irremediável potencial selvagem, que algumas vezes obrigou o grande supermercado a fechar suas portas, já que seu magnífico estoque de bebidas se tornava um imã imediato para ébrios insaciáveis.

Exatamente na calçada frente a ele existe um posto da Polícia Militar, grande e equipado. À diferença de outros postos policiais, protegidos como fortes, esse parece uma vitrine: é quase todo recoberto por larguíssimas lâminas de vidro; parece um aquário, onde as mesas de registrar ocorrências são exibidas como aqueles apetrechos por onde os peixes nadam. Até então, no entanto, eventuais efervescências carnavalescas tinham sido resolvidas simplesmente em termos de deixar a poeira (ou o teor etílico) abaixar.

Talvez pelo potencial, tanto de evento social como de instabilidade selvagem da pacata ordem urbana, a infra-estrutura deste ano parecia sugerir um enorme esforço para civilizar e até mesmo de “gentrificar” a reunião daquela malta ansiosamente carnavalesca. Confesso que, depois do supermercado, preferi passar a tarde em casa ouvindo jazz. Nada daquilo, nem o carnaval, nem o campineirismo, nem a (quase sempre exasperante) ebriedade juvenil, nem a gentrificação dos food-trucks me seduzia.

No entanto, próximo às nove da noite, já depois da minha postagem aqui, decidi fazer um passeio etnográfico em meio aos nativos selvagens, ou seja, ver exatamente, por mera curiosidade, o que já devia ser o fim de festa, quem sabe não mais que para reforçar minhas péssimas impressões sobre campineiros, mauricinhos, patricinhas, gentrificação do carnaval e a irremediável ação do álcool como combustível (cada vez mais obsessivo) da sociabilidade juvenil.

O cenário era previsível, como nos anos anteriores, mas com mais gente. Muitos jovens, alguns mais animados, outros mais pacatos, tomando os últimos tragos ou buscando pela última paquera, garotões musculosos sem camisa, mocinhas altaneiras com shorts miúdos, alguns rapazes e moças que pareciam vindos dos subúrbios, todos razoavelmente tranquilos, razoavelmente excitados, muitos, muitos mesmo, desbragadamente ébrios, e bastante contentes com isso.

Seguramente eles manejavam entre si seus códigos de diferenciação social, mas uma tal massa de gente não se resolve como massa apenas por fissão estratificadora. Afinal, o que é o carnaval, mesmo em um lugar como Campinas, senão um breve interlúdio de communitas, essa comunhão insondável (até mesmo para os antropólogos) onde a diferença tende a entrar em suspensão?

A uma quadra do CCC o asfalto da Avenida Júlio de Mesquita, a principal do bairro, estava completamente molhado. Não sei se algum tempo antes haviam esguichado água para refrescar os foliões ou se simplesmente seria o rescaldo de uma maré etílica que banhara uma multidão de goelas. De qualquer maneira, conversações ébrias tendem a se prolongar de forma bastante indefinida, e as pessoas que por ali estavam simplesmente se encontravam nesse estágio, que Buñuel definira como aquele não-arredar-pé diante das últimas miragens de um paraíso intangível, quase sempre patrocinadas pelo éter de algum “ángel exterminador”.

Às nove da noite, o maciço contingente policial parecia impaciente, diante de ébrios que eram a paciência em estado absoluto, já beirando aquela solidariedade característica dos bêbados, e que só eles são capazes de compreender.

Já vi movimentações selvagens de torcidas de futebol nesse bairro, quando Ponte Preta e Guarani ainda traziam os grandes clubes da capital e suas grandes torcidas para jogos decisivos. Já cheguei a ver uma mulher ser executada a tiros na frente das filhas, debaixo da minha janela, por ocasião de um desses arrastões que as torcidas dos grandes times patrocinavam ao sair dos estádios, numa quase longa caminhada até a rodoviária, mas ainda mais curta que a espera por um transporte urbano inexistente.

Dessa vez, no entanto, apesar da massa de gente e da ebriedade, os ânimos estavam apenas festeiros e minha breve caminhada não notou, impressionantemente, nenhuma exasperação belicosa… senão a da Polícia Militar, a mesma que nunca esteve no bairro na época dos arrastões das torcidas.

Cerrando fileiras para decretar o fim daquela solidariedade infinitamente prorrogável, a impaciência do contingente policial parecia escalar uma graduação proporcional à graduação alcoólica daquela meninada errabunda. Parecia tratar-se da emergência de uma incompatibilidade existencial: a communitas etílica de fim de festa, de um lado, e, do outro, a restauração da ordem que só responde pelo imperativo de si mesma: a ordem porque sim, aquela que resvala, sem o dizer, a simples tentação autoritária, o exorcismo absoluto de qualquer anjo exterminador em nome… ora pois!… em nome da autoridade!

É provável que os policiais tenham lembrado das suas famílias que deixaram em casa numa noite de sábado que poderia ser de descanso. É provável que o supermercado voltasse a reclamar do inconveniente da festa para o seu expediente de vendas. É provável que algum burocrata que tenha traçado os planos da gentrificação do carnaval tenha estabelecido uma meta a alcançar sobre a restauração do trânsito e da ordem urbana. É possível muita coisa, mas o que eu não vi foi uma rusga sequer entre os contingentes presentes. Até, pelo menos, o momento da noite em que a força policial parece ter sido fustigada por uma espécie de eletricidade que a fez cerrar fileiras inusitadamente, como se as hostes dos anjos exterminadores se postassem diante dela, o momento em que ela intempestivamente se viu energizada pelo frenesi da restauração da ordem… ou quem sabe apenas, a vontade de encerrar logo o expediente daquela maçada.

Foi exatamente ali ― e em nenhum outro lugar! ― exatamente ali, na linha vermelha entre os policiais insolitamente enfileirados e a multidão, que algo aconteceu. E aconteceu de forma explosiva, como se multidão e força policial fossem compostos químicos que não pudessem, sob hipótese alguma, ser postos em contato. Multidões sempre foram multidões. Força policial, cada sociedade tem a sua. Portanto, a particularidade química dessa reação explosiva parece caber, de uma forma muito singelamente lógica, à composição mental e material da polícia.

O resultado concreto é que, em curtíssimo espaço de tempo o ar estava tomado por gás lacrimogêneo. Sentindo a investida maciçamente despropositada e desproporcional, alguns cidadãos, exasperados com o exercício de uma autoridade ofensiva, inepta, irresponsável e incompetente, reagiram como ébrios reagem: com o fígado. Algumas garrafas voaram e… pronto! esse era o álibi tático que a “autoridade” precisava para arreganhar sua dentição afiada e bem nutrida por um contexto institucional fortemente autoritário.

Em pouco tempo os arredores do Centro de Convivência Cultural (centro do quê, mesmo?…) tornou-se uma praça de guerra. Conceitualmente, guerra é o confronto entre duas forças militares. Para a autoridade elevada à condição autoritária de absoluto, uma meia dúzia de garrafas de alguns bêbados é um artefato bélico ao qual se responde com sucessivas cargas de lacrimogêneo, spray de pimenta, cassetetes silvando e o que mais estiver à mão… afinal, o Outro é apenas o Inimigo.

O conflito escalou com uma rapidez impressionante, que talvez só consiga ser suficientemente explicado por aquela química particular a que antes me referia. Várias fileiras policiais, como que saídas do nada, rapidamente se formaram e eu me vi entre uma e outra. Como a mais interna parecia ser a mais relaxada em termos de ânimos guerreiros, tentei me aproximar de um dos policiais e, aparvalhado com a magnitude instantânea do fenômeno (como se tivesse sido cuidadosamente planejado), perguntei-lhe o quê, no fundo, estava acontecendo. Sinceramente, não me parecia apenas uma refrega pontual que uma intervenção igualmente pontual pudesse dar conta. Tinha que ser algo mais!… simplesmente porque não havia um ânimo geral na multidão que assegurasse que aquele conflito assumisse aquela magnitude em uma escala tão explosiva. A resposta me veio na forma de uma hostilidade inusitada: eu não era mais um cidadão interpelando um agente policial, eu havia sido transformado no Inimigo… assim, de forma singelamente absoluta.

E, claro, as forças inimigas foram logo destroçadas. Rapidamente dezenas de adolescentes, com seus shorts miúdos, sem importar se eram patricinhas ou suburbanas, estavam estendidas pelas calçadas, chorando e tossindo convulsivamente, pessoas corriam, crianças escorregavam nos entulhos e iam ao chão. Tendo conseguido contornar o olho do furacão, socorri um estudante da Unicamp que, sem o saber, chegara perto demais da Avenida Júlio de Mesquita e, portador de asma alérgica, estava estirado na calçada, simplesmente sufocando até a morte se alguém não o tirasse dali.

O espetáculo que se sucedeu teve alguma coisa de surreal. Em breve, forças policiais em automóveis e motocicletas começavam a se mover pelo bairro de forma frenética, como se estivessem combatendo um atentado terrorista. Um helicóptero começou a sobrevoar o bairro. Os policiais estavam tomados por um frenesi histérico, em que pareciam movidos a captagon, a droga que deixa os jihadistas do Estado Islâmico pilhados para as batalhas e para cortar cabeças.

Instantaneamente, todos se tornaram suspeitos potenciais. Um senhor de meia idade da minha vizinhança, que costuma sair à noite para distribuir ração às nossas duas comunidades felinas dos arredores, foi grosseiramente abordado por um policial de uma viatura: “O que você está fazendo aí?” Esse suspeito-antes-que-provasse-o-contrário teve que mostrar seu saquinho de ração para gatos, para que fosse… dispensado. Os demais moradores do bairro saíam à rua e olhavam para aquele frenesi doentio e perguntavam uns aos outros de forma um tanto melancólica: “Pra que isso???…” Parece que a classe média alta campineira, que não perde uma oportunidade para fazer soar suas panelas Le Creuset, finalmente apreciava ali, a domicílio, o espetáculo de uma autoridade cevada nos intestinos do autoritarismo, um espetáculo surreal, quase zoológico.

Terminada a batalha, meu inquieto passeio etnográfico voltou agora para a retaguarda do terreno dos homens de cinza, as proximidades do posto policial onde tudo começou. Diante do show que presenciara, eu esperava encontrar ao menos uma daquelas lâminas de vidro do aquário policial completamente estilhaçada. Mas não. Intactas. Todas. E mais incrível ainda: por ali ainda havia alguns bêbados. Um deles, bem ali junto dos policiais, me convidou para um trago e me confidenciou: “Agora eu acredito naquelas pessoas que dizem que policial e bandido é tudo a mesma coisa”. (Por Ricardo Cavalcanti-Schiel/Do GGN)

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