Por Guilherme Boneto
A jornalista Eliane Brum nos presenteou em novembro do ano passado com um artigo a respeito da onda de boçalidade e burrice que toma conta do Brasil. Ela crava já no início do texto uma frase marcante e irretocável: “Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país”. Brum trata também da vergonhosa “moção de repúdio” da Câmara de Vereadores de Campinas à filósofa Simone de Beauvoir, por conta de uma questão do ENEM de 2015 na qual ela foi abordada. Após a leitura da análise, tenho refletido muito a respeito das origens do pensamento burro e do quanto ele nos afeta, e embora eu esteja longe de chegar a qualquer conclusão e nem queira fazê-lo, o tema me deixa ao mesmo tempo assustado e fascinado.
Para termos um exemplo: há algumas semanas o ator Bruno Gagliasso, que demonstra sensibilidade à defesa das minorias em suas redes sociais, trocou um beijo com o também ator João Vicente de Castro durante uma cerimônia de premiação. “Amor de homem com H”, disse Gagliasso após o beijo. Encaro o ato corajoso dos dois homens como uma tentativa de provocar reflexão nas pessoas, como por exemplo o fato de que a sexualidade de um homem não diminui sua condição de homem em si mesma, independentemente da forma como venha a se manifestar, ou também a ideia de que, para beijar em público uma pessoa do mesmo sexo diante de uma sociedade tão hipócrita e preconceituosa, é preciso de fato ter a coragem de um “homem com H”.
Eis que cruzo com a análise de um cantor, cuja discografia desconheço, a nos brindar com a seguinte pérola: “Não sou machista, não sou hipócrita, não sou preconceituoso e não beijo outro homem na boca. Mesmo assim continuo sendo homem com H”. Perceba que, se a intenção do Bruno e do João Vicente era provocar um pensamento crítico, com esse rapaz sua missão falhou miseravelmente. Minha primeira reação foi a incredulidade: “Não é possível que ele não entendeu NADA”, pensei eu, perplexo. Mas não apenas era possível como o homem fez questão de nos externar seu pensamento tão minuciosamente trabalhado, profundo feito uma poça. Retorno aqui a Eliane Brum e concordo com ela quando classifica a onda de boçalidade como algo assustador. O homem em questão é um cantor, possui fãs, influencia pessoas, e ao que tudo indica, fala quando não tem nada construtivo a dizer, provocando a imediata concordância acrítica de centenas de pessoas. E eu me pergunto: para onde correr?
Em “A Multiplicação dos Bolsonaros”, dissertei sobre o quanto o “sucesso” do deputado fluminense se deve à sua repetição sistemática do que nos diz o senso comum. Armas para o que chamam de “cidadão de bem” – entidade não-definida que me provoca calafrios –, gays escondidos e marginalizados, apoio à truculência de alguns fardados, papel social secundário reservado à mulher. Impressiona o quanto suas frases bombásticas são desprovidas de saber científico, e isso agrada muito a galera que não gosta de pensar, que nunca leu um livro, que não detém amplo repertório cultural. “Concordar” com Bolsonaro é uma anomalia, porque não há ali uma reflexão para que as pessoas possam dizer “eu concordo”. O deputado nos dá o material bruto, que já existe aos montes na sociedade e que não sobrevive à mais breve reflexão sobre como funciona a estrutura de classes no Brasil ou como a sexualidade humana se manifesta, por exemplo. A desconstrução do “material bruto” é como lapidar e polir uma pedra – difícil, porém necessário caso se queira enxergar certa beleza. E para a maioria das pessoas, infelizmente, parece ser preferível deixar o material in natura do que depreender o esforço do raciocínio.
Você deve ter ouvido algumas barbaridades durante a ceia de Natal da semana passada. Pode ser difícil questioná-las. O tio cinquentão que lembra com saudades dos anos de chumbo provavelmente não será convencido dos benefícios da democracia, nem que o filho do Lula não é o dono da Friboi, que o governo Dilma não é comunista ou que a União Soviética já não existe há mais de vinte anos. Argumentando, contudo, podemos tentar reacender (ou acender) o pensamento crítico em outras pessoas à nossa volta, exceto, talvez, o tio que acampa na frente do quartel. Por mais que pareça tentador, não creio que seja razoável tentar diminuir com o confronto direto a forma ultraconservadora na qual muitas pessoas se baseiam para visualizar o mundo. Precisamos tentar, ainda que a custo de alguma indigestão nas refeições em família, simplesmente desconstruir esse raciocínio tão empobrecido. Perceba que não me interessa que as pessoas reflitam de modo a concordar comigo, mas apenas que reflitam.
Podemos iniciar 2016 tentando, portanto, segurar de alguma forma o hediondo tsunami da burrice – e peço perdão a Eliane Brum para aqui transformar a “onda” em algo ainda maior. Vislumbro com esperança uma geração, à qual pertenço, de pessoas com uma consciência social mais apurada e conhecedora da realidade do Brasil nos mais diversos aspectos. O ano novo pode ser de fato novo se tentarmos encampar lutas que não são necessariamente nossas, ou apenas refletir sobre elas com um olhar mais terno. O que faz, por exemplo, aquela travesti que você vê quando volta da balada se prostituir numa avenida qualquer, tarde da noite? Será que ela quer estar ali? Ou ainda, que perigo representa o grupo de jovens negros e pobres barrados na porta do shopping pelos seguranças, ou quando conseguem ali ingressar, censurados pelos olhares das pessoas que se creem detentoras daquele espaço? Vou além: como se sente a mulher que precisa caminhar sozinha à noite, no retorno do trabalho, da faculdade ou de outra atividade qualquer, e que se sente ameaçada e acuada pela simples condição de ser mulher?
A inteligência, o debate e a reflexão serão capazes, sim, de atenuar a boçalidade. Mas também a empatia, a capacidade de se colocar no lugar do ser humano diferente de nós, poderá gerar para o futuro uma sociedade mais justa e muito menos violenta. É um exercício que nós podemos iniciar ainda hoje, aproveitando o raiar do sol neste início de ano. Pense além em 2016. Vá além do senso comum. E faça o ano novo ser um pouco mais gentil para você e para todos os que o rodeiam.