Por Luís Fernando Praga

O sonho secreto de Bile DradeChovia e já era madrugada alta quando tudo começou.

Drade viu de relance, pelo espelho do salão, a família de elefantes com roupas coloridas passando na rua estreita e foi pra calçada acompanhar a cena.

No outro lado uma velha seguia na contramão dos elefantes carregando, nas costas encurvadas, 5 enormes sacos com vasilhas descartáveis. A velha não deu bola para os elefantes ou seus olhos baixos não a permitiram atentar.

Uma multidão se aglomerava animada para ver a triste manada e ninguém notou a velha e nem a tristeza dos paquidermes. Os olhos lacrimosos dos bichos mostravam angústia e medo.

O domador ferroava o elefante pai a cada vez que ele se lembrava de seu passado livre na amplitude da savana.

Um menino negro e franzino surgiu na esquina e passou como um raio à frente do salão. A corporação o perseguia e logo 5 homens ansiosos perguntavam a Bile para onde fora o menino. Bile ele deu de ombros. Sabia, de alguma forma, que o menino franzino era ele próprio.

A igreja em frente, inspirada num personagem que pregava o amor, a paz e a liberdade, estava repleta de gente de todas as idades pedindo a esse personagem coisas que ele jamais possuíra.

O elefantinho bebê soltou, por um instante, a cauda da aliá mãe ao se distrair, curioso, com as crianças que brincavam na esquina. A mãe logo se desgarrou do elefante chefe para chamar a atenção do filhote e o domador a ferrou com força. A fêmea urrou e o filhote correu para se aproximar. O macho alfa virou-se enfurecido contra o tratador, mas levou uma profunda ferroada no pescoço e ao ver que a manada já estava unida e obediente, relutou, bufou e continuou a marcha ferido.

O domador acenava orgulhoso para a multidão entretida. Era preciso ter submissos e controlados todos os membros da família para manter domínio sobre aqueles mamíferos poderosos.

Na igreja algumas pessoas também oravam para que seus desafetos tivessem uma amarga lição e para que o personagem que pregava o amor, a paz e a liberdade, voltasse logo de sua viagem para varrer da face da terra as pessoas cujos hábitos não condiziam com os padrões instituídos pela igreja.

Uma moça orava com uma rosa vermelha entre as mãos. Seu namorado partira para a guerra e ela era a única naquele templo que pedia paz, amor e liberdade dentro de seu coração, e que se espalhassem pelo planeta todo.

O namorado estava longe e submetia-se a condições extremas porque seus generais julgaram conveniente que ele representasse os interesses de seu país, matando pessoas que também defendiam os interesses de seus países a mando de outros generais.

Os generais não eram juízes, mas eram homens que julgavam, assim como um homem um dia julgou que o personagem que inspirava a igreja em frente deveria ter sido morto sob tortura, e seu veredito era prontamente cumprido, muitas vezes com apoio popular.

Um homem gordo usando cartola sorria e contava dinheiro, enquanto orientava pelo telefone o presidente do país representado na guerra pelo namorado da moça que orava, a investir em mais armas e enviar mais exércitos ao front.

O Bile Drade jovem e negro cruzou a rua correndo, deu um tabefe no traseiro do elefantinho que sorriu pra ele e tentou acompanhá-lo.

Os homens de cinza da corporação passaram em fila e tiraram Bile do campo de visão do filhote, que voltou a acompanhar os pais sem nenhum ânimo.

O homem de cartola mal desligou o celular e já falava com o presidente da outra nação envolvida na guerra, dando exatamente as mesmas instruções e contando dinheiro.

Os presidentes de ambas as nações premiaram seus generais e suas instituições midiáticas e estes foram muito eficientes em convencer a população e seus guerreiros de que os adversários eram cruéis e deveriam morrer.

Na igreja muitos fieis também oravam pela morte dos inimigos da nação.

Uma mulher piscou para o domador que espetou o elefante grandão e piscou de volta.

Bile reapareceu e juntou-se às crianças da esquina numa brincadeira divertida.

Os 5 homens da corporação, que julgaram que o pivete Bile Drade oferecia risco à sociedade, assim como algum homem um dia julgou que fosse bom trazer elefantes da África e trancafiá-los no circo, apareceram afoitos com seus cassetetes e Bile pôs-se a correr novamente.

O namorado da moça que rezava amparou o corpo estilhaçado de um companheiro que caia morto e que tinha mãe, pai, filhos, esposa e uma vida toda pela frente. Também tinha um bom carro e uma boa casa, mas isso sequer passou pela cabeça do namorado da moça.

O homem com a cartola gritou impaciente ao telefone que prendessem logo o jovem Bile Drade.

O elefantinho viu quando Bile entrou na igreja despistando os homens de cinza e quis segui-lo novamente.

O padre se irritou e tratou de enxotar o guri, com a ajuda de muitos fiéis exaltados que ofendiam e tentavam agarrar e agredir Bile, mas em vão, pois o menino era ligeiro e logo saiu junto com um pé de vento que fez a moça da rosa sorrir.

Longe, seu namorado chorava por também já ter estilhaçado seres humanos, tirado vidas, destruído famílias e sonhos.

Bile ziguezagueou pela calçada e esbarrou na velha que carregava as garrafas. Ela se ergueu um pouco, sorriu, passou a perna sem querer em um dos guardas que estavam no encalço do garoto e os 5 acabaram tropeçando.

O elefantinho, as crianças da esquina e toda a multidão riram muito com a cena.

O domador preparou-se para lancetar o filhotinho quando o homem gordo de cartola bloqueou o caminho de Bile Drade. Um dos guardas veio por trás, o segurou fortemente o menino e tentou torcer seu braço.

Naquele exato momento, um momento só dele, o homem gordo olhou os olhos do menino e sorriu como nunca havia sorrido antes, uma felicidade pura pela primeira vez na vida, mas era seu último momento e ele teve um infarto fulminante.

Tudo que o homem gordo de cartola acumulara, julgara possuir e que todos acreditavam que era dele, naquele exato momento… continuou pertencendo a quem sempre pertencera, àquele pequeno planeta onde um sonho estava acontecendo. O homem gordo apenas colocara uma fronteira ao redor das coisas e dizia ingenuamente que eram dele, privando muita gente de usufrui-las e a si mesmo de ter sido feliz por momentos maiores.

Então, no seu momento, o elefante pai arrancou com a tromba o ferro das mãos do domador. Poderia tê-lo pisoteado, mas como não queria vingança, apenas exercitar sua forte liberdade, atirou a arma para longe e em sua fuga atravessou a igreja inteira com sua pequena mamada, passou por cima do altar, destruiu a parede do fundo e seguiu tranquilo com sua família, sem ferir ninguém. Logo os paquidermes já corriam e barriam felizes na savana.

O guarda que segurava o braço de Bile caiu aos prantos, um choro bom e diferente como nunca havia chorado antes, tirou sua farda cinza, no que foi acompanhado por seus colegas de corporação e viu o menino correr, tocando de leve com suas mãozinhas em todas as pessoas por quem passava.

Um misto de choro e riso tomou conta da multidão que se abraçava.

A velha largou seu pesado fardo e pôs-se a cantar, dançar e brincar com as crianças da esquina.

O namorado da moça largou seu fuzil e se deixou morrer, mas ninguém o matou, pois no outro lado do front todos largaram seus fuzis, deixaram de obedecer aos generais e também se abraçaram.

Os generais, muito severos, não suportaram tamanha insubordinação de seus exércitos. Alguns despiram-se de suas fardas e correram nus pelo planeta, que agora não tinha mais fronteiras e era acolhedor a todos. Outros tiveram, coincidentemente, infartos fulminantes, por que algum dia todos morrem mesmo.

Os presidentes, percebendo que ninguém mais estava disposto a matar e morrer por mentiras midiáticas, deixaram seus cargos e tudo funcionou melhor sem eles.

Nos escombros da igreja apenas a moça com a rosa permanecia de joelhos, em agradecimento silencioso. O padre tentou erguê-la, esbaforido, dizendo “corre, minha filha, é o fim do mundo!”, mas ao ouvi-la dizer “acalme-se padre, é o começo do mundo…”, ele olhou ao redor, tirou sua batina e se juntou a seus irmãos que festejavam o fim das opressões.

Naquele momento único o jovem Bile Drade segurou na mão do Bile Drade maduro. Eles tinham a cor da pele diferente, mas eram a mesma pessoa e se entreolharam e sorriram. Bile deixou o salão de barbeiro com cabelo e barba por fazer e caminhou sentindo no rosto o vento do novo mundo, até que estranhamente acordou no mundo antigo.

Ah, como seria bom se todos tivessem tido o mesmo sonho, pensou Bile. “Talvez alguns tenham tido”, disse de dentro dele o jovem Bile Drade.

Então Bile saiu de casa carregando tudo o que possuíam, um desejo de paz, amor no coração, uma poderosa liberdade a ser exercitada e uma encantadora esperança em cada momento que tinha para ser vivido, e mesmo acordado deixou o sonho acontecendo…