Por Luís Fernando Praga
Num desses contrastes brasileiros, ela morava na favela ao lado. A mãe era diarista naquele bairro rico. O pai, ela jamais conheceu.
Quando era o dia das bruxas, sempre aparecia pra pedir doces. Desde os 6 aninhos, roupas péssimas e pés descalços que pareciam não sentir o chão quente, ela não ligava para humilhação que sofria das crianças limpas e bem educadas dali. Não se incomodava de ficar no fim da fila, de ter portas fechadas na cara, de ver expressões de nojo e ódio de alguns moradores e nem de ficar só com as sobras. Agradecia com um sorriso inibido e baixava os olhos.
Voltava pra casa à noite, sacolinha meio cheia, que para ela parecia um tesouro. Comia doces como nunca e levava um bom tanto para repartir com a mãe, que sempre chegava cansada.
Para a inocência de Cristina, o dia das bruxas representava uma das poucas lembranças boas da infância.
A mãe era jovem, 23 anos e trabalhava desde os 15 em casas de família no bairro nobre que avizinhava a favela. Não teve tempo nem vontade de concluir os estudos. Um dia voltou pra casa chorando. Havia sido estuprada no emprego. A mãe da mãe, muito religiosa, a colocou pra fora de casa. Ela se virou como pode, arranjou um barraco onde pariu Cristina sozinha.
Iuri morava com os pais numa mansão suntuosa e não via com bons olhos a favelada que invadia as ruas de seu bairro para “roubar” os doces que, por mérito, deveriam ser dele e de seus amigos.
A mãe de Iuri recomendava cuidado e distância da favelada, que podia transmitir doenças, roubar, ou andar junto de algum adulto que o sequestrasse ou apresentasse drogas.
Cristina também evitava Iuri por medo.
Passada aquela data festiva, se viam novamente apenas no ano seguinte.
Naqueles intervalos de 365 dias, as duas crianças levavam suas vidas de formas diferentes.
Iuri sofria com a presença de gente como Cris, que se amontoava nas favelas da cidade. Gente violenta que, segundo seus pais, matava, roubava e sequestrava pessoas de bem o tempo todo.
Cris sofria com a falta de água, de saneamento básico e com as balas perdidas.
Iuri sofria por ter passado apenas 10 dias na Disney aquele ano, chorava, batia os pés e exigia algum bônus dos pais.
Cris sofria com o transporte público precário. Muitas vezes o ônibus não passava e ela perdia aula. Ela adorava sua escola simplesinha. Lá aprendera a ler precocemente. Era tímida, mas questionadora. Quando não podia ir, ficava triste e frustrada. Voltava para casa e aguardava algum carinho da mãe, que sempre chegava cansada, triste, frustrada e logo dormia, sem carinhos.
Iuri tinha um motorista particular e frequentava a melhor escola da cidade. Gostava de ser o centro das atenções, como seus pais o criaram para ser. Fazia bullying com meninas, com negros, com gordos e com gays e ficava muito indignado e infeliz quando algum professor chamava sua atenção.
Iuri sofria a vida toda, assim como seus pais e seus avós, com a ameaça comunista, que planejava dividir todas as suas posses com pessoas como Cris. Isso fez Iuri crescer com medo e ódio, assistindo televisão e pedindo a Deus que livrasse o seu amado Brasil daquele tipo de gente.
Cris também sofria algumas privações, passava frio, fome e adoecia facilmente. Nunca encontrara ninguém com a disposição de ajuda-la, muito menos de repartir as coisas dos ricos com ela. Não via ninguém na favela melhorar de vida graças à ajuda de quem quer que fosse. Nunca ela, sua mãe ou sua avó receberam qualquer tipo de benefício trazido por algum comunista e jamais vira um comunista na vida.
Iuri sofria e culpava o governo quando ocasionalmente a energia de seu bairro acabava. Era difícil receber os amigos sem videogame e ar condicionado. “País de merda!”, bradava Iuri. Fazia birra para os pais e exigia outro bônus. Os pais faziam a vontade de Iuri, não sem antes dizerem “país de merda!”.
A vida também não era um mar de rosas para Cris, mas ela nunca teve vontade de chamar o Brasil de “país de merda”. Para ela, mais do que refletir a condição do país, essa frase refletia o estado emocional de alguém descontrolado pelo estresse.
Aos 13 anos Cristina ainda foi ao dia das bruxas coletar doces naquele bairro de ricos onde a luz só acabava de vez em quando. Já ia voltar pra casa quando foi surpreendida por um grupo de meninos que roubou seus doces, cuspiu em seu rosto e a espancou. No final Iuri disse que ela nunca mais voltasse, a não ser para limpar as privadas.
Cristina chegou em casa profundamente ferida. A mãe perguntou dos doces e Cris contou, chorando, que não havia conseguido nenhum aquele dia. A mãe sorriu com olhos mareados pela tristeza da filha, disse que tudo bem e logo dormiu.
Naquela noite Cris sentiu que o mundo a odiava. Ela era preta num país onde a mídia exaltava que o bonito era ser branco. Ela era pobre num mundo que matava e prendia os pobres e onde ter sucesso na vida era ser rico. Ela era mulher num mundo machista de valores deturpados.
Deitou-se no colchonete precário e chorou muito. Tapou os ouvidos pra não ouvir seu choro, nem a briga e nem o amor dos vizinhos, nem cachorros latindo, nem a roda de samba e nem o tiroteio. Continuou chorando pelo desamor do mundo. Chorou mais, porque apesar disso tudo, ela não sabia o motivo, mas ainda desejava viver e isso tronava tudo mais difícil.
O sono não veio, o choro não passou e naquela madrugada mágica, naquele triste barraco, ficaram apenas Cris e ela mesma.
A mão que tapava a orelha sem garantir o silêncio e começou a enrolar um dedo nos cabelos enrolados. Ela tentou se dar carinho. Recebeu, de si própria, seu primeiro cafuné. Ela amou acariciar seus cabelos e seu rosto e o fez com uma vontade libertadora. Acompanhou, delicadamente, com a ponta dos dedos, as lágrimas que corriam do canto do olho até o canto da boca. Ela amou se tocar, amou o fato de existir algum amor. Ela se amou profundamente e amou experimentar o prazer. Foi feliz naquele instante que tingiu pra sempre o mundo de outras cores.
A partir daquela madrugada Cristina aprendeu que podia fazer bem a si própria, por mais que Iuri e seus amigos a ofendessem e que dissessem de suas limitações. Por mais que nunca aparecesse nenhum comunista para torná-la menos pobre. Por mais que nenhum governo pudesse resolver seus problemas ou sequer soubesse de sua existência. Ela sentiu que era capaz de amar e ser feliz e sentiu a importância disso em sua vida. Desejou sofrer menos e entendeu que isso estava muito em suas mãos.
Passou a ler ainda mais, descobriu que havia gente que não cultivava ódios ou preconceitos e que ela era esse tipo de gente.
Conversou mais com a mãe, contava tudo o que aprendia na escola, na vida e dentro de si mesma. Fizeram uma horta no quintal. Criaram uma cooperativa de costureiras na favela e passaram a produzir as próprias roupas e se vestir com dignidade. Faziam escambo das coisas que necessitavam e a mãe de Cristina deixou de ser explorada, passou a ter mais tempo com a filha para trocarem afetos e conselhos.
Cristina aprendeu que nem todo rico era cruel, mas a riqueza mal distribuída era sempre crueldade.
Aprendeu que nem todo pobre era bondoso e correto.
Aprendeu que havia muitos pobres no mundo, porque só esse tipo de gente se prestaria ao papel de manter os ricos ainda mais ricos, trabalhando por migalhas antes de uma morte precoce.
Entendeu que a miséria era o combustível da fortuna.
Aprendeu que havia pobres armados que assaltavam, matavam e faziam arrastões. Havia ricos que desviavam dinheiro público, queimavam mendigos que dormiam, estupravam e matavam travestis, mulheres e homossexuais.
Aprendeu que os ricos, e não os pobres, fomentavam a indústria armamentista e as guerras. Que as guerras matavam muito mais pobres do que ricos, e que das guerras vinham as armas que perpetuavam a violência no mundo.
Aprendeu que o ódio era uma droga legal e de efeito devastador sobre o cérebro humano, aceita e consumida livremente pela sociedade, e que bastava respirá-lo um pouco para o ódio viciar. Viu que a mídia fazia apologia constante a essa droga, polarizando opiniões, acirrando rivalidades, marginalizando diferenças, distorcendo a verdade e manipulando informações. Era um povo desunido que mantinha o sistema vigente.
Ela não quis aquilo para seu cérebro nem para seu coração. Preferiu explorar os limites daquele amor que ela sabia ser poderoso e possível.
Aprendeu que amor e ódio não escolhiam classes sociais.
Aprendeu sobre liberdade, sustentabilidade e solidariedade. Sobre as diferenças e a tolerância.
Estudou a justiça, a meritocracia e a hipocrisia.
Aprendeu sobre a luta das mulheres, e que a origem do dia das bruxas vinha de uma festa pagã, criada para louvar a uma Deusa Mãe, a Terra, em gratidão por uma colheita farta.
Aprendeu que houve um tempo em que bruxas eram mulheres livres e pensantes, que ameaçaram os desmandos de uma igreja e de uma sociedade machistas e gananciosas. Que elas foram queimadas em fogueiras de forma covarde e estúpida, por gente ignorante e cheia de medos, a fim de criar gerações de mulheres temerosas e submissas.
Aprendeu que gente com medo vivia uma vida limitada, atrelada a seu medo. Que o medo se convertia em submissão ou em agressividade. Que, percebendo isso, algumas pessoas e instituições se especializaram em semear e explorar o medo.
Lembrou-se de Iuri e seus amigos.
Envergonhou-se de mendigar doces por tanto tempo, mas depois riu da criança que fora.
Passados alguns anos, voltaram a se encontrar numa sala de aula de uma escola pública. Iuri não a reconheceu, com toda aquela nova auto estima e segurança, mas encantou-se por ela quando a viu chegando para o Exame Nacional do Ensino Médio.
Embora tivessem a mesma idade, morassem perto um do outro, tivessem cruzado seus caminhos várias vezes e além até de não saberem, mas serem filhos do mesmo pai, dali pra frente a vida os separou definitivamente.
Cristina continuou acreditando no amor, no conhecimento e nas mágicas surpresas da vida. Passou em uma boa faculdade e se torna uma mulher mais livre e plena a cada dia.
Iuri zerou na redação, administra as empresas do pai e continua viciado em ódio, cultivando a ignorância e sofrendo de medo.