Por Luis Fernando Praga

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Ganhei anteontem, da filha pequena, uma caneca preta de beber. Ela disse que eu precisava tomar chá para testar e eu obedeci. Entornei a chaleira e conforme o ar fugia pra não se queimar na água fumegante, o exterior escuro da caneca, com o calor, ganhou cores vibrantes e uma linda foto da menininha sorridente com os dizeres “Para o Melhor Pai do Mundo” apareceu por mágica.

Era meu presentinho do dia dos pais e magicamente, como na caneca, minha memória, já escurecida, ganhou cores vibrantes. Um tempo em que eu era só o filho caçula, sem a menor perspectiva de vir a ser um pai, ocupou todo aquele momento.

Primeiro vi uma botininha amarela feita em papel camurça e contornada de canetinha marrom. Dentro da botininha havia um pente de cabelo, simples, de plástico. Num dos lados da botina eu escrevi, com letras inseguras, “Para o Melhor Pai do Mundo”.

Era o primeiro presente que me lembro de ter dado para o meu pai e me orgulhei muito de ter eu mesmo feito, com auxílio da professora, a tia, mas pouco importa, achei que ficou o máximo.

Não consigo me lembrar a reação do meu pai ao receber o mimo, mas o conhecendo como conheço, deve ter ficado feliz, talvez tenha me abraçado, bagunçado meu cabelo e agradecido.

As letras eram inseguras, mas eu tinha total segurança de que ele era mesmo o melhor pai do mundo, naquela época…

Depois vieram lembranças de viagens, meu pai gostava muito de viajar e o fazíamos duas vezes por ano.

Momentos antes das partidas meu pai sempre se estressava, às vezes ficava furioso mesmo, com algum atraso ou uma bagagem que não cabia no porta malas do opala, e só voltava ao normal depois do primeiro quilômetro percorrido.

Hoje eu entendo meu pai. Era a expectativa de sair rápido para uma experiência maravilhosa que estava sendo protelada.

As viagens, nenhuma foi ruim. Tínhamos um toca fitas no carro e um equalizador que eu não sabia pra que servia mas gostava de ver suas luzes subindo e descendo. Ouvíamos M.P.B., “Ray Conniff”, “Poly e seu Conjunto” e as trilhas sonoras das novelas.

Brincávamos de “stop” e eu ganhava sempre, sempre que deixavam eu ganhar, mas desde então fui aprendendo os pontos fundamentais da cultura inútil, que ainda hoje guardo para usar numa ocasião de emergência.

Meu pai era sério, tinha cara de bravo, mas um humor que nos fazia rir a todos e às vezes dava risadas engraçadas.

Meu pai dirigia devagar, era prudente, não tinha pressa de chegar, não se arriscava em ultrapassagens e não brincava ao volante e eu aprendi todos esses ensinamentos, mas só pela metade de cada um deles.

Eu olhava do banco de trás e via que a paisagem, a estrada e o interior do carro eram um complemento de meu pai segurando o volante.

Sempre chegávamos antes de anoitecer porque meu pai achava perigoso dirigir à noite.

Viajando no banco de trás, só não conheci a região Norte do Brasil. Fazíamos viagens bem longas em que dava saudade de casa, e outras bem curtas em que dava saudade de ficar mais tempo. Todas as viagens foram maravilhosas.

Me lembro de hotéis com piscinas e de praias com mar bom de nadar. Eu abraçava meu pai na água e ele dizia “desgruda”, mas eu não desgrudava. Meu pai nadava com a cabeça pra fora d’água e eu nunca disse a ele que isso diminui o rendimento.

Meus irmãos foram crescendo e se emancipando antes de mim, até que nas penúltimas viagens éramos apenas eu, meu pai e minha mãe. Já nas últimas, éramos eu, minha namorada que casou-se comigo, meu pai e minha mãe. Uma vez chegamos a ir ao Pantanal com minha filhinha maior, quando ela era a pequenininha.

Quando não viajávamos, estávamos em casa e também era bom. Minha mãe cozinhava sempre e eu gostava, mas meu pai cozinhava de vez em quando e eu gostava mais, porque eram ocasiões.

Meu pai sempre tomava cerveja no jantar e eu nunca o vi transar as pernas, trocar as letras ou rir à toa, porque era só uma latinha. Ele me deixava dar uma “bicadinha” a partir dos meus 16 anos, ou 14, ou 7, não me lembro.

Meu pai era o mais velho de… acho que eram sete irmãos. Filho de um agricultor humilde e genialmente simples e gentil. Meu pai trabalhou desde os 13 ano e foi o único filho que estudou e se formou na faculdade.

Acho que meu pai era muito grato aos pais dele, pois visitava e cuidava do casal todos os dias da sua vida em que estava lá em Franca, nunca falhou. Minha avó morreu e meu pai continuou visitando e cuidando do meu gentil avô até ele completar 103 anos, depois meu pai parou porque o vô morreu.

Meu pai deve ter me ensinado muito mais coisas do que eu sou capaz de perceber e eu não me lembro de ter apanhado. Ele deve ter me dado algumas broncas, mas só me lembro e dou risada de uma ou outra vez em que ele me chamou de “seu banana!”.

Aí eu voltei pra foto da minha filhinha pequena na caneca preta que deixava de ser preta com o calor. Notei que os presentinhos de dia dos pais tinham evoluído.

Fiquei feliz de ter tido o pai que tive e ainda mais feliz porque ainda o tenho. Ele vai completar 80 anos em dezembro e já tem os cabelos quase tão brancos quanto os meus, mas duvido ele ganhar de mim na cerveja.

Não faz muito tempo ainda vi, guardada no guarda roupas de meu pai, aquela botininha de papel camurça amarelo com as minhas primeiras e inseguras letras.

Meu pai ainda gosta de viajar e dirigir e ainda é um complemento da paisagem. Ele é bom porque me visita mais do que eu o visito e sempre traz a minha mãe junto.

Eu não gosto que ele pague a conta do restaurante, mas ele gosta de pagar e eu fico um pouco chateado, mas só dura no máximo 1 quilômetro.

Não sei dizer tudo o que meu pai me ensinou, mas sou muito grato por ele ter deixado que eu me transformasse no que me transformei.

Tenho duas filhas e em breve a maior talvez deixe de viajar comigo, ou talvez (isola!) resolva levar o namorado.

Quero deixar que minhas filhas se transformem naturalmente naquilo que elas devem ser e já estou gostando muito de como elas estão se saindo.

Quero estar presente sem parecer uma sombra. Quero ser amigo íntimo, do tipo que aprende, ensina, ampara e da risada. Quero que elas não sintam medos, muito menos de mim, como nunca tive medo de meu pai, mas sempre procurei respeitá-lo.

Quero que minhas filhas sejam prudentes e cautelosas, pero no mucho. Quero que sejam gentis, simples e humildes.

Quero que ouçam MPB, evitem o Ray Conniff e que façam suas próprias escolhas. Quero que relevem e riam quando alguém chamar o Chico Buarque de “esquerda caviar”. Quero que amem Vinícius de Moraes, os horizontes e as curvas em que não se sabe o que vem depois.

Quero que elas amem o Brasil e as pessoas dele, e que estendessem esse amor ao mundo e às pessoas dele.

Quero que sejam mulheres livres, corajosas e que venerem a liberdade de todos.

Quero que elas percebam meus equívocos, minhas limitações e meus deslizes e apesar deles me queiram bem. Quero que elas achem graça das minhas falhas, para não aprenderem a odiar quem erra, pois todos erram e quero que elas vejam a naturalidade disso.

Quero que elas sonhem, utopizem e, de se incomodarem com a inércia, jamais fujam das mudanças.

Quero que elas amem a Natureza, que amem viajar e que não se limitem por fronteiras que algum careta prepotente riscou num mapa.

Quero que elas sejam uma extensão da paisagem e que sejam muito amáveis e carinhosas com meu pai, porque ele ainda é o melhor pai do mundo!