Por Luís Fernando Praga

nãoOs dois homens estavam frente a frente, em defesa de suas posições quanto à redução da maioridade penal, assistidos por uma grande plateia.

Sr. Cunha fez questão de abrir os trabalhos:

_ Alguma coisa precisa ser feita! Do jeito que está não da mais, não se tem mais segurança! A resposta é simples, minha gente, cometeu delito, vai pra cadeia! Vai virar exemplo e todo menor vai pensar duas vezes antes de virar marginal! Quem não deve não teme!

A fala ganhou a aprovação de boa parte da plateia e os olhinhos do Sr. Cunha brilharam, iluminando um estranho sorriso no canto da boca.

Martha tentou resistir, mas se ergueu no meio do público e soltou a voz:

_Eu não quero ninguém impune ou que ninguém se torne um irresponsável, mas estou longe de desejar trancafiar pessoas, ainda no começo de suas vidas, em celas com criminosos profissionais…

Sr. Cunha bradou inflamado:

_ É um absurdo passar a mão na cabeça de um jovem delinquente e deixar que ele continue “aprontando” e matando, amparado pela lei.  Precisamos de mais segurança! Vivemos o caos social e, se nada for feito, em pouco tempo estaremos nas mãos de criminosos!! NÓS TEMOS QUE PARAR DE PROTEGER BANDIDO, GENTE!!!

Elpídio pronunciou-se pela primeira vez e perguntou:

_Onde a Martha falou em proteger bandidos? Ela disse claramente que não quer impunidade e nem irresponsabilidade, não se recorda, Sr. Cunha? Ninguém é idiota de desejar o aumento da criminalidade, alguns sim, são espertalhões e desejam isso, mas não é o caso da Martha, que nada ganharia.

Estamos discutindo se a melhor opção à violência é depositar menores infratores na cadeia comum. Ninguém deseja que não se responsabilizem de alguma forma, que isso fique bem claro daqui pra frente.

O Sr. Cunha avermelhou o rosto, olhou no relógio e bufou:

_Estamos cansados desses defensores de direitos humanos que protegem bandidos ao invés de apoiar a polícia e a sociedade! Lá vem você defendendo infrator novamente, não é, Elpídio? Acha que Deus aprova sua atitude? Deixar criminosos nas ruas, ameaçando a segurança das famílias e o progresso da nação? Não vê que as pessoas de bem estão cansadas disso? Que tipo de ignorante é você, Elpídio?

_Sou o tipo de ignorante que não sabe ao certo sobre o que Deus pensa a respeito da minha atitude, mas sei que minha consciência a aprova. Sou também o tipo de ignorante que responde às perguntas, e é a última vez que digo que sou contrário à criminalidade e acho fundamental que os infratores sejam responsabilizados. Sou favorável a que todos se responsabilizem por seus atos, inclusive políticos e menores de idade, mas não queremos os menores caindo num sistema prisional que não funciona, este sim falido e incapaz de recuperar pessoas.

Alguém da plateia gritou:

_É… Funcionar não funciona… Mas vai deixar vagabundo solto na rua, matando, estuprando? Isso também não funciona!

_Existe um estatuto da criança e do adolescente que já prevê inúmeras medidas sócio educativas para menores infratores entre 12 e 18 anos de idade, se elas simplesmente fossem cumpridas, já serviriam de exemplo e diminuiriam a criminalidade e a reincidência.

Respondeu Elpídio.

Cunha gritou:

_De que adianta existir se não adianta de nada!? Tem que por o vagabundo na cadeia que aí ele aprende, bandido tem é que sofrer mesmo!!

Martha não se conteve novamente, ergueu a mão e questionou.

_Não será melhor entender por que não está adiantando e corrigir, ao invés de aumentar e dar mais crédito às estruturas que sabidamente não estão funcionando? Vocês estão felizes com o sistema carcerário vigente para os maiores de idade? Acreditam mesmo prender os jovens possa criar uma perspectiva diferente para a sociedade? Não enxergam que há grandes criminosos presos e controlando o tráfico, mandando matar e elegendo deputados e senadores, mesmo atrás das grades, de onde controlam comunidades inteiras? Isso é fato! Colocar jovens nas cadeias é, na melhor das hipóteses, empurrar a sujeira pra debaixo do tapete e acumular nosso prejuízo social! Eu não consigo enxergar de que forma isso possa ser uma saída.

Sr. Cunha bateu na mesa e esbravejou.

_Temos que agir já, antes que seja tarde demais. Não podemos tolerar esses defensores da criminalidade! Vocês não enxergam que esse pessoal que defende bandido levou nossa nação ao fundo do poço e vai afundar ainda mais? Lugar de criminoso é atrás das grades, não importa a idade que o criminoso tenha!

E bateu mais forte ainda quando Elpídio voltou a falar.

_A visão de que a violência se combate com violência, que é a visão do Sr. Cunha e de alguns aqui presentes, não se comprova eficaz em nenhum lugar do mundo e jamais se comprovou historicamente. Apesar disso é uma visão muito comum. Acredito que muitos de vocês procuram o melhor para a sociedade, só não compartilho dos seus métodos.

Por outro lado há uma tendência a deturpar a posição de quem é contrário à redução, agredindo e dizendo que queremos as ruas cheias de criminosos. Tudo bem, nós sabemos que não é isso que queremos. Sabemos que queremos uma alternativa à violência. Queremos menos ignorância nas ruas e nos lares a fim de chegar uma sociedade pacífica.

Nosso sistema carcerário é falido e fabrica cada vez mais criminosos perigosos. Gente que entrara na cadeia por cometer pequenos delitos e sai formado em assassino. Temos 600 mil encarcerados, maioria absoluta de pretos e pobres, espremidos em menos de 380 mil vagas. Mais de 200 mil ainda nem foram julgados e já estão jogados lá. Essa população cresce em 7% ao ano.

Criar presídios e gente pra prender se tornou um negócio muito lucrativo, não uma solução. Como a Martha acabou de lembrar, as piores organizações criminosas nascem dentro das cadeias e criam braços fortes e cruéis na sociedade.

Por outro lado, nosso sistema judicial é tendencioso e infelizmente, fácil de comprar. Não consegue promover a justiça de redistribuir e converter em boa saúde, educação e segurança pública, os bilhões de reais desviados e, não é de agora, por poderosos, maioria absoluta de brancos, milionários e imunes a tudo, dos poderes executivo e legislativo e judiciário. Esses desvios são responsáveis por um número infinitamente maior de mortes do que a violência praticada por criminosos comuns e é aí onde começa a pior das impunidades.

A partir daí é possível traçar o perfil do menor de idade que irá para a cadeia e do que não irá, independente do delito que cometa.

É interesse das classes dominantes que essa dinâmica se perpetue, porque elas adoram dinheiro e poder e não respeitam pessoas. Então, desviam o foco e apontam outros vilões. É assim que nós, que defendemos uma visão de esperança e paz, passamos a ser vistos como vilões e inimigos. É assim que o Sr. Cunha gosta que nós sejamos vistos.

Já houve momentos na história da humanidade em que os poderosos criaram leis que permitiam enjaular crianças, porque os poderosos podem fazer isso. Depois criaram novos crimes, como o de ser judeu na Alemanha Nazista ou negro na África do Sul do apartheid.  Depois criaram novas penas, como a morte por fome ou na câmara de gás, também interesse de quem não queria ter seu poder ameaçado.

A história da humanidade não se orgulha desse capítulo.

Sr. Cunha, com o rosto em brasa, lavou a mesa de perdigotos falsos puritanos e esbravejou:

_Mas isso é um absurdo!!! Você é um louco, Elpídio!!

Eu quero estar do seu lado para ver quando um trombadinha adolescente, um maníaco delinquente que você tanto protege, entrar na sua casa com sua gang, colocar uma arma na cabeça da sua esposa enquanto os amiguinhos estupram suas filhas, sua mulher e depois matam a todas!! Aí eu quero ver você defender criminoso!!

_É sadismo querer estar ao meu lado numa hora dessas, Sr. Cunha. Até meio doentio. É muito triste que essas coisas aconteçam, mas elas estão acontecendo agora mesmo em algum lugar do Brasil. Isso não é menos dolorido na família dos outros do que na minha. Como eu disse, não tenho a intenção de defender criminosos, por isso não defendo seu ponto de vista nem acho que ele seja um bom argumento. Caso isso aconteça, eu sofrerei demais. Talvez sinta ódio e vontade de morrer, é uma possibilidade. Mas a vida me alimenta de esperança, não de ódio. O que eu quero é um mundo menos violento. Não vejo de que forma o mundo poderá ser menos violento se eu me tornar violento e vingativo como meu algoz.

Quero uma sociedade que busque entender os mecanismos que levaram esse jovem a matar ou estuprar e, no futuro, crie ferramentas para evitar que isso continue acontecendo.

Nunca se mata ou estupra mais do que nas guerras, fomentadas pela ganância humana e pelas bancadas da bala que existem mundo afora. Os mais fracos expõe suas fraquezas e a sociedade da testosterona incita ao estupro e à violência como forma de dominar e demonstrar poder.

Eu quero justiça social, não que a família do infeliz que fez minha família sofrer venha a sofrer da mesma forma, criando uma bola de neve de sofrimento e vingança.

As medidas socioeducativas já existentes só precisam ser colocadas em prática e aprimoradas.

Caso o menor seja absolutamente desajustado, revele grave defeito de personalidade, inconciliável com a convivência social, e isso deverá ser analisado criteriosamente, já está previsto em lei (não cumprida, porque não é o interesse de poderosos e porque somos ignorantes e não cobramos o que deve ser cobrado) a internação, para tratamento especializado, para sua recuperação e para a segurança da sociedade. Isso já é prisão, é privação de liberdade, mas não junto de criminosos de carteirinha.

Privar uma pessoa da liberdade ou matar são as maiores violências, quem preza pela sua liberdade deveria saber disso. Além do mais, é o que estamos fazendo há séculos e se fosse funcional, a violência no mundo estaria diminuindo, e não aumentando como está.

A verdadeira justiça não existe num mundo onde as pessoas se vendem por mesquinharias, como defender a redução da maioridade com o interesse escuso de que se construam mais presídios, para aprisionar crianças e lucrar com propinas ou algum benefício futuro.

Eu já errei muitas vezes e aprendi muito com meus erros. Estou certo de que ainda tomarei atitudes que me prejudicarão e que prejudicarão outras pessoas de uma forma ou de outra, mas aprendi que o que chamam de erros, são etapas que os seres humanos devem superar para evoluir em suas vidas. Meus erros e minha consciência me ensinaram a ter mais cuidado com cada decisão que tomo, com cada palavra que digo e com cada pensamento que tenho.

Privar um ser humano, em tenra idade, da capacidade e do direito de aprender com seus próprios erros é privar a nós mesmos de aprender com os aprendizados daquela pessoa. É brincar de ser Deus, é aniquilar liberdades, é um enorme desrespeito à vida e um tiro pela culatra na questão da segurança.

Desejar segurança e justiça social querendo que pessoas apodreçam na cadeia me parece tão hediondo, vingativo e sem sentido por parte da sociedade, quanto a atitude do delinquente.

E quem desejou se vingar primeiro?

A vida não deve ser uma competição entre os perfeitos e a escória, mas uma cooperação entre ignorantes. O que nos distancia de seres humanos que cometem crimes é muito menor do que o que nos assemelha a eles.

Vocês tem o direito de pensar como pensam, mas analisem o passado e notem que atitudes punitivas costumam ser apenas a voz da vingança, não trazem a paz de volta. Não sei por quantas gerações a sociedade precisará ser cruel, autoritária e intolerante, sem colher nenhum tipo de benefício, para que um dia aprenda com esse erro.

Pessoas como o senhor, Sr. Cunha, um dia entenderão que o que parece ser o benefício pessoal de levar vantagens ludibriando aqueles a quem chama secretamente de ovelhinhas, na verdade é um terrível vício que te traz um prazer doente e efêmero e te prende numa existência amarga, negativa e incompleta, depende da necessidade de gerar inimigos, sofrimento e desunião.

Então, reduzam a maioridade, se é de mais essa dolorida lição que precisamos para entender que isso é um erro e, finalmente, deixar de repeti-lo um dia. Ou deem uma chance à paz, à tolerância e ao entendimento. Essa chance jamais foi dada.

Pessoas com vontade de matar e de estuprar sempre existiram e existirão, mas seu número só reduzirá e a sociedade será um lugar mais seguro, quando começar a entendê-las ao invés de fabricá-las. Quando o ser humano for alimentado de dignidade e compreensão, e não de ódio, medo e ignorância.

Reduzam a maioridade penal e teremos ampliada, por mais alguns séculos, a pena que já pagamos por nossa prepotência.

Seis que meus argumentos não podem tocar em quem não esteja disposto a mudar, tudo bem, mas eu não posso ser a favor da redução da maioridade penal! Obrigado.

A plateia ouviu silenciosa e assim se manteve até que Sr. Cunha esbravejou e as veias de seu pescoço saltaram furiosas.

_ Mas isso é um absurdo!!! Só estamos nessa merda porque gente como você defende assassinos e …

Algumas pessoas olharam, com pena, para o Sr. Cunha e partiram pensando. Outras ficaram com ele e gritaram que Elpídio só mudaria quando fosse vitimado pela violência, sem ter noção da violência dessas palavras.