João

João corria pelo beco escuro como jamais correra antes, nem atrás de uma bola, ou pipa e nem nas aulas de educação física do colégio. João cursava o primeiro ano do ensino médio, estudava à noite e havia reprovado na 8ª série. Tinha dificuldades com a matemática.

Ainda assim, era um bom aluno que vivia e estudava numa periferia humilde como tantas no país.

Era feliz a maior parte do tempo. Acabara de completar 16 anos e via a vida como um daqueles jogos gostosos de jogar, cheios de imprevistos e surpresas que, em regra, eram mais agradáveis do que tristes.

Claro, nem tudo era um mar de rosas. Órfão de mãe aos 10 anos de idade, não se lembrava mais do pai, que abandonara o lar quando João era bebê. Tinha um irmão mais velho que vivia no presídio aguardando julgamento há dois anos, com o qual se comunicava por cartas e abraçava nos dias de visita, mas, há um ano, desde que a ditadura militar se instaurara novamente, as visitas foram proibidas.

João era pobre, mas não chegava a passar fome. Frio passava às vezes.

Morava com uma tia que o amava muito e um cachorro grande chamado Bonaparte que fazia festa quando João chegava do trabalho e da escola.

Trabalhava, havia 4 anos, como ajudante geral, terceirizado, num posto de combustíveis, das 9:00 às 17:00 horas, mas apenas de segunda a sábado. Lavava carros, encerava, abastecia, completava o óleo e via muita gente de todo tipo.

Não se queixava da vida, pois entendia que ninguém o obrigava a fazer o que fazia, mas sabia que contingências econômicas e sociais reduziam suas opções de prosperar, então, aproveitando o exemplo do irmão, decidiu se dedicar muito aos estudos a fim de não parar na cadeia, ser estuprado e ficar definitivamente perigoso para a sociedade e rancoroso com a vida.

Paulo, o irmão presidiário de João (porque não importava mais que Paulo tivesse sido um rapaz trabalhador que, ao voltar para casa, resolveu parar em uma padaria que resolveu ser assaltada bem naquele momento, não importava que ele não fosse o assaltante. Paulo era um bom homem, bom mecânico, negro e usuário de maconha, mas hoje só lhe cabia o rótulo social de “preto, presidiário e maconheiro”), despejava todas as esperanças de que a vida não fosse tão cruel e injusta no sucesso e felicidade do irmão caçula.

João corria como jamais correra antes. João tinha dificuldades em matemática. João era negro, pobre e favelado. João era o orgulho do irmão e da tia. Tirava nota dez em história, pensava a sociedade, o mundo e os fatos. Não tinha preconceitos e não generalizava a estupidez humana, por isso tinha esperança nas pessoas, mas sabia da existência dos estúpidos.

Tinha total consciência de sua condição de excluído e de elo mais fraco da corrente. Sabia que de nada adiantava ser inocente. Ele era negro, pobre e favelado e se fosse pego estaria perdido. Conhecia as estatísticas que justificavam sua preocupação.

Precisava fugir. Tinha a exata noção de que a maioria absoluta da população carcerária do país era pobre, que 60% dela era composta por negros e seus descendentes e que 40% deles aguardavam julgamento.

João entendia que era mais fácil prender os mais fracos e com menores recursos para pagar um bom advogado. Há poucos anos, com a redução da maioridade penal, vinha crescendo exponencialmente o número de crianças negras e pobres nas cadeias, pois elas eram ainda mais fracas do que os adultos pretos e pobres.

Ele sabia que brancos e ricos podiam frequentar padarias com mais tranquilidade. Sabia que brancos e ricos podiam ser usuários de drogas com maior tranquilidade. João sabia que, ironicamente, o criador da frase “bandido bom é bandido preso” era um político branco e rico com mandato de prisão em 186 países, mas não no Brasil.

Ele sabia que eram os brancos e ricos os principais envolvidos em escândalos de desvio de dinheiro público e que eles rarissimamente eram presos.

João notava que ninguém dizia “viu só, tinha que ser branco!” quando se descobria alguma dessas falcatruas. Ninguém disse “viu só, tinha que ser branco!” quando um ex-milionário branco e falido disparou seu revolver matando seu sócio, um advogado e um juiz num tribunal de Milão, anos atrás.

Mas João não queria transferir a culpa de nada para os brancos. Ele não achava correto que relacionassem as falhas humanas à cor das pessoas, pois sabia que pessoas de todas as cores cometem falhas.

João corria como nunca, enquanto pensava que se o dinheiro público que os ricos desviavam fosse simplesmente destinado àquilo a que se propunha, como saúde, educação e segurança, seu país seria muito menos violento e haveria muito menos presos e menos preconceito, porque preconceito é ignorância e falta de instrução adequada.

João sabia que toda essa situação era o reflexo de falhas no sistema judiciário do país e que falha na justiça significava injustiça. Sabia que a dor dessa injustiça era sentida com mais força na pele negra do que na pele branca.

João via explicações históricas, econômicas e políticas para que sua sociedade tivesse chegado a esse ponto. Não via explicações étnicas.

João não odiava a polícia e nem os brancos. Ele entendia que o ódio bloqueava o pensamento livre, coerente e como tinha esperança na espécie humana, se disciplinava a tolerar e raciocinar sobre as causas mais profundas dessa situação injusta.

João entendia que todos, os pretos, os brancos, os ricos e os pobres, eram igualmente vítimas de um sistema equivocado que levava os seres humanos a devotar suas vidas a conquistas materiais. Acreditava que as pessoas seriam mais equilibradas se devotassem suas vidas à vida, à existência, a deixar existir e ao aprendizado. Ele via racionalidade no amor e estupidez no ódio, então amava e tolerava inclusive os que odiavam.

Ele entendia que prender pretos e pobres, nem sempre infratores, servia convenientemente para desviar a atenção dos grandes crimes e dos grandes criminosos que dilapidavam a nação.

Enquanto corria, João lembrou-se que esse desvio de foco fora responsável pela redução da maioridade penal em seu país. Pessoas que, sem perceber, foram sendo alimentadas pelo ódio, passaram a pedir o encarceramento de menores, visto que naquela sociedade injusta, menores também cometiam crimes.

Enquanto corria, João lembrou-se que a gana por justiça misturada ao ódio, à hipocrisia e a uma visão curta e limitada dos problemas sociais, recolocou aquele seu país novamente nas mãos de uma cruel e intolerante ditadura militar, ainda mais corrupta e hipócrita que todos os governos anteriores.

Enquanto corria, João lembrou-se que ainda não conhecia o mar, que não conhecia a África, que nunca tinha visto um elefante e nem uma cachoeira. Pensou que jamais havia recebido um abraço ou abraçado uma pessoa branca e que tinha muita vontade de poder fazer tudo isso.

Enquanto corria como nunca, porque seu ônibus não havia passado no horário habitual e fora instituído um toque de recolher muito rigoroso para pretos e pobres, João, que quase sentiu prazer com vento no rosto, foi baleado pelas costas por um policial negro e pobre, subordinado a um tenente pardo e remediado, que prestava contas a um coronel branco e bem de vida, que lambia as botas do secretário de segurança pública, branco e rico, subalterno ao governador negro e rico que prestava contas ao general presidente da república, muito branco e muito milionário e que era pau mandado de grandes corporações.

Por sorte João não morreu. O rapaz de 16 anos foi apenas encarcerado sem julgamento e estuprado muitas vezes. Nunca mais viu sua tia e nem o Bonaparte. Passou 30 anos aprisionado sob as mais desumanas condições. Pensou que de nada havia adiantado ter sido um ser humano correto, estudioso, esperançoso, não ter se entregue ao crime ou às drogas. Aprendeu a se defender e a odiar, mas, talvez por alguma condição genética, talvez por achar mais racional, não tenha se tornado uma pessoa odiosa.

Foram cerca de 10.900 dias carregados de sofrimento e muito escassos de felicidade. João derramou algumas lágrimas nos primeiros dias e depois não chorou mais, precisava se mostrar forte.

Até que, numa manhã de inverno, João amanheceu gravemente enfermo. Tossia, expectorava sangue e as dores pelo corpo eram lancinantes. Morreria de tuberculose como tantos outros morreram ao seu lado naquele período.

Antes de morrer, João percebeu que não se considerava mais vítima do que os outros. Todos sofriam, todos morriam e alguns sofriam até mais. Ele não se considerava um escolhido pelo sofrimento e entendia que a dor do sofrimento não dependia de cor ou de classe social, dependia de se estar ou não preparado e tolerante para como a vida se apresentasse. Alguma razão inexplicável dizia que enquanto ele estivesse vivo, coisas continuariam acontecendo e nada impedia que alguma coisa boa pudesse ocorrer.

Naquela manhã, Paulo veio ver o João na cadeia. Paulo parecia muito bem, abraçou o irmão e ambos choraram muito. Paulo disse que fugira do presídio havia 10 anos com o intuito de encontrar João. Disse que, como estava certo de que não desejava o mal a ninguém, confiou em si, mais do que nos rótulos que a sociedade o impusera. Trabalhou como pode e se protegeu como pode. Mudava-se regularmente e lia, sempre que possível, coisas sobre a liberdade. Conheceu pessoas que acreditavam em sua essência boa e se estabeleceu em uma comunidade. Lá, todos tinham suas limitações, mas se respeitavam e davam mais valor a cada vida humana do que a qualquer dinheiro ou bem material. Lá as pessoas que não gostavam de fazer sexo homossexual conviviam harmonicamente com as que gostavam. Lá as pessoas que não gostavam de bebidas alcoólicas conviviam harmonicamente com as que gostavam. Lá os negros e brancos se amavam e respeitavam harmonicamente. Lá todos produziam pelo bem comum e as liberdades individuais eram respeitadas. Lá ninguém acreditava em enriquecimento financeiro ou que ter mais coisas que o vizinho fosse algo positivo. Lá se sabia que recursos materiais são escassos e efêmeros e que a paz e o conhecimento são as maiores conquistas.

Paulo disse que no mundo todo, pessoas de todas as cores e classes sociais passaram a se organizar em comunidades que simplesmente priorizavam a vida e as experiências contidas nela. Eles apenas passaram a boicotar a violência, a intolerância, o ódio, a hipocrisia e a guerra. Mais pessoas ao redor sentiam-se atraídas por aquela paz, aquele respeito e aquele equilíbrio. Então, o sistema que idolatrava o dinheiro e a guerra foi fraquejando até não mais se sustentar.

Naquela manhã a humanidade ganhava uma nova chance e Paulo vinha trazer o irmão caçula de volta a uma vida verdadeiramente livre.

João saiu do cárcere de mãos dadas com Paulo e sentiu profundamente o dia brilhante de céu azul e as nuvens brancas com vento fresco no rosto. Este sentimento fez João chorar muito. Amigos de Paulo, brancos, negros e miscigenados abraçaram João que chorou muito. João chorou ao saber que Bonaparte vivera pouco, pois parara de se alimentar desde que ele fora preso. João chorou quando se sentiu são, forte e produtivo novamente. João chorou quando conheceu a cachoeira, o mar e a África, com seus elefantes, num mundo que já não acreditava em fronteiras. João chorou quando se sentiu amado, quando fez sexo, quando correu na praia. João chorou muito, por sentir gratidão e uma estranha felicidade, oriunda da necessidade de se aceitar fraco, pequeno e a mercê de uma natureza poderosa e inexplicável, na qual ele sempre confiara.