Por Luís Fernando Praga
“A fé (segundo o dicionário Aurélio: estado ou atitude de quem acredita ou tem esperança em algo) remove montanhas” é a frase da vez, pois representa nossa verdade em suas faces mais opostas e irônicas.
O povo foi às ruas, munido da fé na transformação do país, da fé no fim da corrupção e da fé em que podemos e devemos evoluir. Também creio que essa montanha de lixo possa ser removida, caso consigamos unir forças e ações no caminho dessa transformação. Pressionar as altas esferas do governo a fim de acabar com privilégios políticos, injustiças sociais, por uma educação de qualidade e por uma saúde digna. Parece total e humanamente possível, e até quando parece impossível, tenho fé e sigo tentando!
Entretanto, nosso sistema socioeconômico, que envolve uma grande mídia poderosa e manipuladora e uma política partidária que sobrevive de rivalizar o povo, nos confunde e acabamos acumulando mais lixo sobre essa montanha, quando alguns são convencidos de que devem direcionar sua fé no sentido da desagregação, da polarização e do ódio.
A fé é muito boa sim, pois é o combustível para não desistirmos nos momentos em que temos vontade de desistir. Mas como não existe apenas uma verdade, a fé também tem sua outra face. Ela tem a capacidade de cegar, criando extremistas e fundamentalistas que defendem com intransigência e rigidez a determinados princípios.
Ela também tem a capacidade de criar líderes inescrupulosos e oportunistas que têm se aproveitado, a muitos séculos, da face cega da fé para gerar benefícios pessoais, enriquecimento e poder, criando e controlando exércitos de fundamentalistas, com medo de pensar, fiéis às suas regras e intransigentes com as diferenças.
Mas, queiram ou não os intransigentes, as pessoas são diferentes e cada qual tem o direito de colocar as regras que queira em sua própria vida, desde que não interfira com a liberdade alheia. Viu, fundamentalista? Desde que não interfira!
Logo, em minha casa, tenho algumas regras que são frutos de minhas vivências, preferências e influências sociais, religiosas e familiares. Por exemplo: Cerveja às quartas-feiras para acompanhar o futebol na TV. Viajar sempre que possível. Respeitar os seres humanos e os outros animais e… respeitar a Natureza resume essa parte do respeito. Sempre considerar opiniões diferentes das minhas. São regras que procuro seguir e ainda assim, algumas vezes não consigo.
Minhas filhas, educadas nesse meio, tendem a absorver parte desses conceitos e levar, para o resto de suas vidas, características transferidas por mim.
Já o meu amigo não gosta de viajar e sempre que pode se recolhe ao aconchego do lar com sua família. Ele acha que beber não é bom e não bebe. Seus descendentes por certo carregarão alguns de seus ensinamentos por toda a vida.
O fato de eu viajar e tomar a minha cerveja às quartas-feiras não me torna inimigo do meu amigo.
Caso minha filha se torne uma fundamentalista, ela tomará cerveja às quartas-feiras, ela viajará sempre que possível, ela jamais curtirá o aconchego do lar num feriado chuvoso, ela jamais beberá em nenhum outro dia da semana, e o pior, ela não entenderá como algumas pessoas podem ser tão imbecis a ponto de não beberem às quartas-feiras. Ela não absorverá as informações quanto ao respeito ao próximo, pois não cabem muitas informações na cabeça de quem se contenta logo com a primeira verdade que se lhe apresenta. Ela empreenderá uma cruzada de ódio e sangue contra os que bebem aos domingos e ela não será feliz enquanto não transformar as pessoas em seguidores fiéis de sua lógica precária. Logicamente viverá e morrerá infeliz e causando infelicidade por onde passar.
O fundamentalista, além de levar ao pé da letra, é o que leva às últimas consequências, é o que não tolera os diferentes, é o que fecha seu mundo e seus horizontes dentro de uma verdade da qual alguém o convenceu muito bem.
É aquele que, antes de pensar se há algo mais producente para fazer em sua vida, grita “MORTE AO ISLÃ!” ou “CHEGA DE LÉSBICA!” ou “VAI PRA CUBA, COMUNISTA FILHO DA PUTA!”, “MORTE AO OCIDENTE!”, “QUEREMOS O DIA DO ORGULHO HÉTERO!”, “BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO!”, “DITADURA JÁ!”, “LUGAR DE VIADO É NO ZOOLÓGICO!”, “VAI PRO INFERNO, PRETO!”, “O PT É O DEMONIO E TEM QUE SAIR” ou “O PT É A SALVAÇÃO E TEM QUE FICAR”, “QUEM NÃO ACEITAR JESUS TEM MAIS É QUE SE FODER!” entre outros belos exemplos.
E o fundamentalista continua sua vida toda sem enxergar além do pé da letra, pensando pouco, pensando pequeno e imbuído de fazer os outros pensarem pouco e pequeno como ele.
O fundamentalista tenta manipular e modificar os outros, mas não se enxerga como o maior dos manipulados, pois há quem se utilize de sua fé (segundo o dicionário Aurélio: adesão absoluta do espírito àquilo que se considera verdadeiro. Sentimento de quem acredita em determinados ideias ou princípios religiosos) para criar exércitos de fanáticos. Há quem se utilize, a séculos, da força dos que pensam pouco e pequeno para ir às ruas defender seus interesses pessoais, com a prerrogativa de lutarem por Deus (há muitas definições d’Ele no dicionário e não há consenso sobre estas definições entre nós, seres humanos) ou por um país melhor.
O fundamentalista não percebe que enquanto ele grita palavras de “ordem” nas ruas, seus líderes trabalham à surdina para lucrar ainda mais com a corrupção, com falta de cultura e educação, com a falta de saúde e com privilégios dignos dos deuses.
Ele não percebe que ovelhas são alimentadas apenas para enriquecer seus pastores.
Ele não entende que prosperar não significa ficar podre de rico como seu pastor. Ele não entende que esse pensamento é que perpetua uma sociedade corrupta. Ele não entende que prosperar é viver feliz, num mundo justo e que o mundo nunca será justo enquanto houver podres de rico convencendo podres de pobre a darem a eles (sim, porque Deus até hoje não recebeu um tostão) 10% do pouco que recebem e os convencendo de que se deve sofrer em vida para ser feliz em morte.
Ele não percebe que há uma bancada religiosa cada vez maior no congresso que luta para produzir um país cada vez mais rico em pessoas facilmente enganáveis. Uma bancada que desfruta de todas as regalias políticas contra as quais o país deveria lutar para evoluir, além das regalias religiosas.
Ele não percebe que enquanto vai às ruas se exaltar contra os homossexuais, segurando a bandeira da moralidade, seus líderes hipócritas (sem generalizações, apenas os hipócritas) se lambuzam de poder, dinheiro, sexo inclusive homossexual e de pedofilia.
Ele não percebe que, cultivando o ódio às diferenças, está sendo jogado contra seus semelhantes. Que, se simplesmente tolerasse o que não lhe agrada, encontraria muitas causas mais dignas para defender do que transformar os outros naquilo que os outros não querem ser.
Ele não percebe a ação política camuflada de caridade religiosa que há na isenção tributária para igrejas e templos. Ele não percebe que o Brasil é um dos pouquíssimos países do mundo que oferece tão generosa regalia. Ele não percebe que aquele político que não quer largar o osso, deseja um país lotado de igrejas e templos cada vez maiores e mais suntuosos. Ele não percebe que quanto maior a parcela da população que espera e confia (tem fé) que Deus vá aliviar suas dores e resolver os seus problemas, menor a parcela dos que terão fé (esperança) no ser humano, menos gente cobrará o que deve ser cobrado dos políticos e menos gente cobrará de si próprio, aquilo que depende de nós e de nossa união como espécie.
Que a fé em um mundo melhor consiga remover as montanhas do preconceito, do fanatismo, da injustiça e da enganação. Que a fé dos hipócritas não consiga remover as montanhas de aprendizado, bom senso e indignação acumulados pelos séculos de nossa curta e promissora história.