
Não, não é um erro de grafia; é caso de semelhança onomástica.
Arthur Rimbaud e Raimbaut d’Aurenga têm em comum, além da semelhança de nomes, terem sido ambos poetas e franceses. Com a ressalva de que, ao tempo de Raimbaut, século XII, a sua Provença natal não se situava em território propriamente francês, sob o domínio da coroa da França. Para os provençais, assim como para os povos dos dilatados territórios do Ducado da Aquitânia, com sede em Poitiers, os súditos do reino da França eram então os outros, os franceses, estrangeiros. Distinguiam-se deles inclusive pelas diferenças linguísticas: os habitantes das regiões mais ao sul dos domínios do Rex Francorum falavam um idioma próprio, a língua d’oc, o occitânico, com suas variantes e dialetos (gascão, lemusino etc.).
Guilherme IX, duque da Aquitânia, escolhera a lengua lemusina, ainda no século XI, para escrever os primeiros versos da lírica trovadoresca de que se tem notícia, sendo por isso considerado o fundador da escola. Por essa forma, a língua falada pelos povos da Aquitânia alçou-se a um patamar de linguagem erudita, contrapondo-se ao latim dos documentos oficiais, dos escritos da Igreja Romana e de seus cantos litúrgicos. No século seguinte, a arte dos trovadores expandiu-se por todo o sul e o sudoeste da França atual (são dezenas os trovadores que mereceram o reconhecimento da posteridade), e rapidamente se sofisticou, ganhando o refinamento das vertentes do trobar clus e do trobar ric.
É a esta última linhagem que se filia a poesia de Raimbaut d’Aurenga, senhor de Orange, identificada pelos cuidados com a construção formal, o refinamento do vocabulário, as rimas raras (ricas), a atitude, enfim, aristocrática. É dele o poema Er resplan la flors enversa (Eis que resplandece a flor inversa), do qual há pelo menos duas traduções em português, uma, mais direta e literal, de Segismundo Spina, incluída no clássico “A Lírica Trovadoresca”, e outra, transcriativa, de Augusto de Campos (“Mais Provençais”, em bela edição com cuidados artesanais da memorável “Noa Noa”, de Florianópolis).
No poema, como esclarece Spina, o poeta joga com os vários sentidos da palavra enversa, desde o significado mais óbvio de invertida, inversa, passando pelas noções de transfiguração, derrubar etc..
Er resplan la flors enversa / pels trencans rancx e pels tertres, proclama o poeta (Já resplende a flor inversa por troncos, barrancos, pedras, na versão de A. de Campos). Qual flors? pergunta. E ele mesmo responde: neus, gels e conglapis (neve, granizo e gelo – antiflores, portanto).
Trata-se, assim, de uma reflexão sobre a palavra poética, através de variações sobre o vocábulo-tema. O mesmo Spina observa, com razão, que Paul Valéry subscreveria a poética de Raimbaut – e bem porque esse poeta francês, que viveu entre o final do século XIX e o início do século XX, privilegiava o pensar em sua composições.
Como outro cultor do trobar ric (o maior deles), Arnaut Daniel, que dizia nadar contra a maré, Raimbaut d’Aurenga procura, no poema, na contramão das convenções da lírica trovadoresca, o inverso da flor, o avesso da flor.
Há um outro Raimbaut (e o melhor título para este texto seria, portanto, Raimbauts), talvez menos renomado que o de Orange. Raimbaut de Vaqueiras também era provençal e também viveu no século XII, tendo passado na Itália grande parte de sua existência.
Pois, folheando uma antologia da poesia italiana desde as suas origens (“Antologia della Poesia Italiana”, de Alfredo Giuliani), tomei conhecimento de que Raimbaut de Vaqueiras é o autor de um dos textos considerados fundadores da poética em língua italiana. Consiste num poema cômico e bilíngue (outro poema de sua autoria, a propósito, Eras quan vey verdeyar, foi escrito em nada menos que cinco idiomas ou dialetos diferentes), em forma de diálogo, onde o trovador, falando na língua occitânica, procura cortejar uma dama genovesa, que responde e rejeita a corte em seu dialeto próprio. A fala do sedutor é marcada pelas convenções da poesia cortês (o fin’amor), em que o amante se faz submisso e suplicante, na expectativa de obter os favores da amada. Mas esta, a dama requestada, repudia o sedutor, em termos drásticos e peremptórios, ainda mais acentuados pela espontaneidade e frescor do linguajar genovês, nos quais a própria expressão provençal ganha tons pejorativos:
Andai via, frar’, eu temp’ò / meill aurà (Vá embora, irmão, tenho mais o que fazer);
Credí voi qu’è sia mossa? Mia fè, non m’averei (Você acha que sou tola? Por minha fé, você não me terá);
Proenzal, va, mal vestí, largai me star (Vá, provençal malvestido, deixa-me ficar na minha).
É um diálogo tão vivaz e atual que, especialmente na resposta desabrida e debochada da dama genovesa, é possível imaginá-la sendo dita pela voz e o gestual de uma Anna Magnani…
(Luiz Carlos R. Borges, especial para o Carta de Crônicas)