Cozinhar

Admito que muitas vezes escrevi nesta coluna sobre temas pesados e polêmicos, que geram certo atrito entre o cérebro, o coração e as palavras, mas hoje me encontro em estado de graça, pois tratarei de um tema que muito me agrada e faz as palavras escorrerem fácil feito manteiga derretida.

Confesso também que já menti num ou outro texto aqui na coluna, mas em se tratando de um texto culinário, hoje me comprometo a ser escravo da verdade.

Apesar da vida corrida, cozinho diária e disciplinadamente, sempre com prazer e modéstia à parte, cozinho muito bem… juro.

Hoje por exemplo já acordei maquinando o cardápio do almoço na cabeça. Legumes sauté, filé de frango grelhado, batata doce ao molho mascavo, arroz e salada de alface com tomatinhos cereja, o trivial.

Inicio o ritual sempre higienizando bem os ingredientes, lavo a vagem e a cenoura, corto as pontinhas de uma, descasco fino a outra, corto em dedinhos e reservo.

Descasco a cebola e o alho, pico tudo bem fininho, mas em separado, cebola lá, cá alho.

Descasco a batata doce, corto em rodelas e reservo.

Unto a frigideira de revestimento em cerâmica grega, com um tabletinho de manteiga.

Olho apaixonado para minha faca “Ginsu” que corta até concreto e para a tábua de carnes, nobre e espessa como o jacarandá de onde ela veio e sinto pena do frango. Com a rapidez e destreza de um ninja, despelo, removo o osso e fatio o peito da ave com uma precisão invejável e reservo.

Separo o azeite extra virgem.

Colho umas ramas de alecrim, um pouco de salsa e cebolinha frescas da horta sempre verdejante que cultivo há anos em meu quintal… juro por Deus.

Salpico sal, 6 gotas de suco de limão, junto o azeite e o alecrim picado, amalgamando maciamente aos filés de frango e deixo descansar.

Ligo o fogo da frigideira e como tenho tempo, vou dar uma olhadinha no Facebook enquanto o utensílio vai apanhando calor. Sem novidades, a culpa é da Dilma, do Aécio, do Lula e do FHC, sempre dos outros. Ouço o cheiro da manteiga estalando na panela, mas me atenho à internet mais dois minutinhos pra concluir a leitura uma piada política. Penso que essa coisa ainda vai feder.

Começa a feder e eu não posso mais protelar, jogo a cebola picada na panela e começo a caçar uma colher de pau, mas a campainha toca. É a diarista. Fico feliz que não vou ter que lavar a louça hoje, mas esqueço de que minha diarista não é como a diarista dos outros.

Tenho que mexer a cebola, mas ela gosta de conversar e precisa me contar da sua virose. Sou educado e vou ouvindo enquanto sinto o agradável odor do refogado (penso que tá na hora de juntar o alho) se transformando em cheiro de tostado, depois de queimadinho no fundo até atingir o inconfundível cheiro de carvão em brasa.

Deixo a diarista descrevendo o quanto transpira nas crises de diarreia e corro pra cozinha. Como ainda não tinha mexido a cebola, só queimou a parte de baixo, então aproveito o montinho de cima e desprezo na pia minha frigideira de cerâmica com uma placa de cebola preta grudada. Não sou eu quem vai lavar mesmo. Apelo para a boa e velha panelinha de alumínio e taco a cebola no óleo de soja, mesmo. Sinto que o tempo urge e apesar de não ser o protocolo correto, também enfio o alho na panela e misturo tudo junto.

Minha filha me chama no andar superior e eu subo as escadas correndo. Ela queria um abraço e pede para me ajudar a cozinhar. Sinto o cheiro do refogado gostoso, pego a criança no colo e me deparo com a diarista passando cera na escada que eu tenho que descer correndo. Agachada, de costas pra mim, uma senhora, com ligeiro déficit de audição, eu com uma criança no colo. Tento escapar pela direita, mas ela, num lance rápido, bloqueia a passagem com o jogo de quadril. Salto para a esquerda bem na hora em que ela resolve se levantar e atinjo violentamente o joelho nas costas da colaboradora que rola 8 degraus. Por sorte não caio com minha filha também. Corro pra cozinha pulando por cima da senhora que geme e pergunta “o que é que houve?”, mas é tarde demais. O refogado virou carvão de novo. Atiro a panelinha de alumínio na pia e lanço mão da panela de pressão para cozer os legumes sem refogar mesmo.

Volto para pegar a batata doce, vejo a diarista tentando se levantar, ainda meio zonza e finjo surpresa, “Por Deus, Dona Ivonete, caiu da escada? Tenha mais cuidado!”. Ela diz que não tá bem e senta-se no sofá.

Já que se acabaram as panelas, coloco a batata doce numa leiteira com água na qual acrescentarei o açúcar mascavo e algumas especiarias. Já que não tenho açúcar mascavo, coloco shoyo e adoçante que dá na mesma.

A outra panela começa a pegar pressão e percebo que tenho as coisas sob controle novamente. Preciso levar a criança para a van escolar às 12:30 e ainda são 11:30, meia hora pra deixar tudo pronto e mais meia para almoçar. Tranquilo.

Destampo o frango, vejo que já absorveu bem o tempero e está pronto para ir ao fogo, quando a campainha toca. Dona Ivonete diz “Atende aí pra mim que eu não tô legal!” enquanto assiste a um desenho animado deitada no sofá com a minha filha. Eu ameaço sentir ódio da pobre senhora, mas não o faço porque não é de meu feitio.

Vou atender a porta e é o síndico, querendo por a par sobre o problema da água em nosso condomínio. Sou educado e escuto o blábláblá pensando “que se dane o arroz! quem precisa de arroz?” até parar de ouvir o barulho da pressão. “Momentinho, por obséquio”, digo ao síndico e enfio a cabeça pra dentro de casa gritando “Dona Ivonete, desligue a panela de pressão, por caridade!” e sorrindo, volto a ter com o síndico. Ele diz que o problema é que o homem plantou muita coisa ruim e que agora está colhendo a ira divina na forma de escassez de água e eu penso em quando será a próxima eleição no condomínio.

Sinto o cheiro de queimado e a vontade de chorar. Digo “É mesmo, vou ter mais fé, apareça! Conversamos outra hora!” e bato a porta na cara do síndico.

Corro pra cozinha, mas me sinto na obrigação de antes, chamar de leve a atenção da diarista, “putaquepariu, Dona Ivonete, não desligou a porra da panela que eu pedi, carai?!!” e ela, deitadona, diz “ã, o que?”. Desisto e vou desligar a panela sabendo que já perdi os legumes. A batata doce cozinhou muito e virou um angu horrendo, “mas há de estar gostosa, se Deus quiser!” penso sem acreditar.

Deposito a panela de pressão com carvão na pia e vejo que teremos frango com batata doce. É bom, porque eu queria mesmo definir meu abdome. Vou pegar o frango sobre a mesa e encontro minhas duas gatas lambendo o fundo da vasilha onde os filés repousavam ainda há pouco. Mas não choro!

Penso em culpar e xingar a Dona Ivonete por não ter cuidado das gatas enquanto eu estava ocupado, mas só o faço mentalmente porque ela não escuta mesmo.

Meio dia…

Sento-me ao sofá ao lado das duas e penso nalguma solução.

Fodeu…

Coloco o uniforme na menina e saio para comermos alguma porcaria na padaria. Pra meu desespero, só tem coxinha. “Duas, por favor!”. Escovo os dentes da minha filha com um chiclete de boa qualidade e corro esbaforido pra van onde a deposito carinhosamente.

Pronto, agora é descansar um pouco e correr pro trabalho, mas chegando em casa encontro um recadinho da Dona Ivonete. “Não sisinti bem da coluna vortei pra casa. Semana quevem to devorta”.

Olho pra pia, mas não choro. Confiro meu estoque de palhas de aço e dou início aos trabalhos. Acho bom, porque queria mesmo definir os braços também e fico esfregando, sem dó as três panelas.

Finalmente saio a fim de exercer minha verdadeira profissão, cuidar dos animaizinhos. É quando me abstraio de todos os problemas matinais e fico renovado, fortalecido (nos braços) e com um cheirinho de queimado que os bichos adoram!