Esta havia sido a invenção daquele ano de um dos sócios da empresa, o Dr. Empédocles (estranhamente, o outro sócio, Dr. Sebastião nunca aparecia, jamais deixava a sala em cuja porta se ostentava a placa com o seu nome). Já no ano anterior ele havia surpreendido a todos, ao aparecer vestido de Papai Noel, porém com um par de chifres na testa e armado de um tridente, com o qual espetava a virilha dos homens e as ancas das mulheres.
Ao criar a nova instituição, que denominou “Inimizade Secreta”, a facção Empédocles da dupla de advogados (seria mesmo uma dupla? O invisível Sebastião não seria senão mera identidade oculta do próprio e esquizofrênico Empédocles?) anunciou que se tratava de mais uma forma eficaz para que advogados, estagiários e funcionários dessem ênfase ainda maior ao clima de ódio, inveja, rancor e ganância que imperava no ambiente de trabalho, e que ele próprio fomentava por todos os meios, por acreditar que uma atmosfera de permanente e feroz disputa entre todos nós, cada qual tentando sobrepor-se aos outros, ridicularizar e destruir os outros, seria salutar e produtiva para a prosperidade do escritório.
Ali, os advogados pisoteavam os estagiários, os estagiários bolinavam as recepcionistas, as recepcionistas infernizavam a vida da moça da copa e a moça da copa cuspia no café dos advogados.
Após anunciar a novidade, o Dr. Empédocles promoveu o sorteio de inimigo secreto, mediante a distribuição de papeizinhos cuidadosamente dobrados para esconder o nome do infeliz sorteado.
Mal apanhou o seu, Nicolau, enojado e sem mesmo consultar o nome escrito na papeleta, saiu às pressas do escritório, decidido a se desfazer o quanto antes da odiosa incumbência.
Ao invés de entrar nalguma loja convencional, encaminhou-se para uma rua do centro comercial onde se concentravam centenas de barracas e quiosques de vendedores ambulantes, que expunham as mercadorias mais exóticas.
Foi quando, ao abrir a papeleta, constatou com aborrecimento que nela não se continha nenhum nome escrito. Teria sido mais uma perversidade do Dr. Empédocles? Por essa forma ele tornaria ainda mais tormentosa a escolha do presente ideal, uma vez destinado a um inimigo não identificado e, por isso, mais que nunca secreto? A tanto chegaria o maquiavelismo do Dr. Empédocles (ou, em verdade, quem assim em tudo agia, não seria em verdade o Dr. Sebastião, ao passo que o Dr. Empédocles não seria senão uma contrafação ou até mesmo uma sórdida simulação, maquinada por algum deles com o objetivo de se locupletar ilicitamente, apoderando-se em dobro da parte que caberia aos sócios na distribuição das receitas?)?
Logo em seguida, Nicolau deu de ombros, pois o que importava o desconhecimento do destinatário do presente a ser adquirido? Quem quer que fosse, dentre os desprezíveis habitantes do escritório, seria merecedor do mais degradante dos prêmios.
Consultando as barracas, ficou indeciso entre várias opções: entre os livros expostos num sebo, o best-seller “Punhalada nas Costas”, ou, pelo contrário, o encalhado “Manual de Iniciação ao Suicídio”? Pastilhas de arsênico, uma gaiola com filhotes de cascavel, uma caixa de ferramentas para autoimolação, um porta-retratos, com a foto do próprio Nicolau, onde ele se exibiria insolentemente nu e de cócoras?
Percorreu toda a extensão da rua sem identificar nada adequado, até sair noutra via pública onde de ambos os lados se enfileiravam lojas de departamentos, com mercadorias que, miseravelmente, só fariam a alegria de quem fosse agraciado.
Nicolau sentiu-se decepcionado, soturno, sombrio, acabrunhado. Suspeitava, obscuramente, que traíra as recomendações e conselhos de Empédocles & Sebastião, que, quando de sua admissão, em uníssono o alertaram de que a existência humana era uma guerra na qual só os combatentes mais cínicos e intimoratos sobreviviam e que por isso o escritório equivalia a uma verdadeira escola de gladiadores.
Eis que o assaltou a sensação de que, desde o outro lado da rua, algo, que ardia ou palpitava, mas ainda permanecia indistinto, o atraía vigorosamente, o convidava, o desafiava. Seu olhar cruzou celeremente a rua, voou para a calçada oposta onde se concentrava a massa multiforme de criaturas de carne e osso e de objetos de vidro, concreto, plástico e aço, até identificar aquilo que o seduzira: o fulgor de um sorriso.
Após um instante de incredulidade, reconheceu Angélica, sua colega de faculdade, em cujo sorriso cintilavam estrelas, pedras preciosas e girassóis, iluminando e fazendo resplandecer a tarde crepuscular e sombria.
Nem por um momento lhe passaram pela mente as advertências dos sábios em torno da ambiguidade e da simulação do sorriso feminino, sobre as traições que nele porventura se ocultem. Muito menos cogitou de que a traição, que então se encenava, seria das circunstâncias: Angélica sorriria para outrem, às suas costas; ou o sorriso não o era, mas o banal reflexo dos derradeiros raios do sol poente.
Só o que lhe importava, naquele instante em que as sombras se desvaneciam, era, mesmo se ilusório, o esplendor do sorriso, que o convocava a prostrar-se de joelhos no asfalto, em atitude de veneração, como se os dentes diamantinos de Angélica fossem os portadores de alguma inapreensível mensagem, anunciadores de alguma absurda salvação.
Através de seu olhar atônito e cheio de graça, Nicolau exibia a Angélica, em oferenda, buquês de rosas vermelhas, frascos de perfumes orientais, caixas de bombons de licor importados da Bélgica e até mesmo cartões coloridos, com figuras de sinos, neves e trenós.
(Por Luiz Carlos R. Borges, Campinas/SP)
Foto: Frederico Leal