A Jandira

Hoje acordei decidido a abrir o jogo e revelar por que eu não votei na Dilma, mas ponderei e acabei vendo que isso deixaria meu irmão petista e mais 54 milhões de brasileiros um pouco desapontados. Por outro lado, também queria comentar que não votei no Aécio, pois não vejo nele nada de novo, mas creio que isso aborreceria minha irmã e seus 51 milhões de colegas de voto aecista, ou antipetista. Então, já que me dispus a escrever, admito que apesar de não ter votado nela nem nele, estou feliz e esperançoso com o país e o povo! Interessante que também não votei nulo ou branco, nem me abstive de votar e não contei até aqui, nenhuma mentira, o que é muito raro nos meus textos. Então isso se tornou uma charada? Como é possível?

Enfim, pra não ofender ninguém e nem sofrer bullying político, vou mudar o enfoque contar como foi meu dia quente de meio de primavera.

Acordei bem cedinho (1ª mentira) e bem disposto (mentira), troquei de roupa (mentira), lavei o rosto (mentira), penteei os cabelos (mentira), esCIRC muito dentes (isso eu faço mesmo) e me dirigi ao trono para um xixizinho (meia verdade). Como sou um caboclo contemplativo, fiquei ali, sentado, cotovelos nos joelhos, mãos no queixo, olhando pras paredes. Foi então que notei a Jandira de olhos em mim, no vértice superior direito da parede à frente.

Jandira é a aranha de pernas longas e finas que vive no meu banheiro, coitada, ambiente poluído. Lembrei-me de ter salvado sua vida uma vez, ao impedir que a diarista destruísse sua delicada teia com o espanador. A mulher quis brigar comigo, disse que era uma aranha, que o filho da prima da cunhada tinha morrido com a picada de uma igualzinha àquela, que era perigosa, que seu veneno derretia até os ossos da vítima, que eu tinha crianças pequenas e as estava expondo ao risco de uma picada fatal. Falei que podia deixar, que eu me responsabilizava caso a Jandira aplicasse um golpe fatal nas crianças, mas não era pra mata-la. E a Jandira foi ficando…

Um dia o Seu Eustáquio, eletricista, estava fazendo uns reparos na fiação e veio me perguntar se eu tinha reparado que havia uma aranha no banheiro. Contei que sim, sabia que ela vivia lá, inclusive já tinha uma prole considerável, nascida e criada no território do meu toalete. Seu Eustáquio me segurou nos ombros, me olhou emocionado dentro dos olhos e me chacoalhou dizendo, cheio de empolgação, que eu era um cara de sorte, que aranha comia o mosquito da dengue, que comia escorpião, filhote de anaconda e até funcionava como cão de guarda. Pediu que eu zelasse sempre por sua vida, porque estando com a aranha eu estaria seguro. Sou defensor dos animais e das pessoas empolgadas, mas só pude pensar “menos, Seu Eustáquio, menos…”.

Num esforço, cortei o pensamento para o presente e me senti fisiologicamente constrangido ao ver a inofensiva Jandira me espiando com seus oito olhinhos, enquanto soltava um fio delgado e branco por trás… (refiro-me à Jandira!)… Até onde sei, no Brasil há três ou quatro espécies de aranha que representam risco para o ser humano e a Jandira não é dessas, ela é uma Pholcus phalangioides, uma aranha comum nas residências do mundo todo. Peçonhenta, como todas as aranhas, mas só pode inocular seu veneno em pequenas presas, pernilongos, insetos miúdos, outras aranhas, sendo incapaz de fazer mal a alguém maior do que uma mosca.

Pensei que muitas vezes a nossa falta de conhecimento pode nos colocar em situação de alerta exagerado ou risco desnecessário, como a diarista que poderia ter tido um infarto fulminante do miocárdio se por acaso a Jandira desequilibrasse da teia e caísse sem querer na sua frente. Desnecessário o infarto, mas fulminante. Pensei que o Seu Eustáquio, por idolatrar as aranhas, um dia poderia se deparar com uma realmente perigosa, ser picado, sentir muita dor e pior, teria uma crise de falta de confiança, o que poderia deixa-lo em profunda depressão, sem vontade de viver, até que ele encontraria uma rede de alta tensão e fecharia o circuito, segurando forte com as duas mãos pra por fim a esse sofrimento de ter confiado na aranha errada.

Pensei que as pessoas chegam a conclusões rapidamente demais e com um embasamento questionável sobre o assunto, pois muitas vezes as informações chegam pela boca do filho da prima da cunhada do vizinho, ou pela rede Globo, ou pela revista Veja, ou pelo Facebook, ou pelo Carta Campinas e nem sempre nos damos ao trabalho de questionar. Por vezes temos experiências ruins com uma aranha e traumatizamo-nos com todas elas. Lembro que todas elas são peçonhentas e predadoras, mas, sem exceção, todas tem alguma utilidade na teia da vida.

Rotular de perniciosas e traiçoeiras todas as aranhas porque se ouviu dizer que ela é um bicho do mal, na maioria das vezes não é maldade é só ignorância. Não uso o termo “ignorância” de forma pejorativa, porque ignorância tem tratamento. Eu me trato e entendo como essencial à evolução da espécie que tenhamos consciência da nossa interminável ignorância. Acho que maldade é alguém saber que a Pholcus phalangioides é inofensiva e atribuir a ela o status de assassina de gente, ou saber que uma aranha marrom, do gênero Loxosceles, é perigosa e dizer para uma criança que é inofensiva e que pode brincar com ela.

Acho que as pessoas não são assim, sempre tão perigosas ou tão inofensivas. Todas podem nos ferir, todas podem mentir (menos eu) e todas podem ser úteis ao mostrar novos caminhos, ideias e possibilidades. Estar ciente do potencial e das limitações humanas é importante para que nos posicionemos de forma mais feliz e menos passional diante das opções que a vida nos dá. Acreditar que o mundo deve servir apenas à vontade dos que pensam como eu, também é só ignorância.

O sistema que demoniza a Dilma é o mesmo que demoniza o Aécio e o mesmo que endeusa a ambos. É um sistema que busca nos manter na ignorância. Gasta bilhões de dinheiros e vidas a fim de nos iludir por diferentes meios. Uns acreditam em umas fontes, outros acreditam em outras. Uns acreditam em umas mentiras, outros em outras. Uns têm certeza de uma verdade, outros de outra.

Enquanto isso, a verdade de que ninguém é santo e de que não ser santo não é pecado, a verdade de que muitos tentaram mas ninguém conseguiu destruir o sonho de justiça, o caminho da evolução e o chamado da liberdade incubados na humanidade e a verdade de que nunca uma única pessoa será capaz de nos salvar, vem sendo encoberta para que não despertemos e nem lutemos contra uma ameaça bem maior do que a Jandira, maior que uma Loxosceles, maior que o reino todo das aranhas. A ameaça de estagnar, por se considerar sabedor de toda a verdade.

Eu poderia ter debelado de vez a Jandira da face do meu banheiro e me sentir um herói por isso ou poderia ter construído um oratório para louvar a Jandira diariamente, mas conviver com uma aranha no banheiro tem se mostrado muito mais seguro do que supunha minha diarista e menos glorioso do que o Seu Eustáquio prometia.

Tolerar sem preconceitos é o pré requisito básico para desmistificarmos nossos medos e nos portarmos melhor diante das diferenças, entender a natureza dos nossos diferentes e a legitimidade de reivindicações que não sejam as minhas. Assim, pode-se optar, racionalmente, por confiar plenamente ou manter uma distância segura de um ou outro tipo de aranha e não correr o risco de ser injusto com a Jandira.

Quem conhece um pouco de aranhas sabe que nem a pior delas tem qualquer interesse em ferir um ser humano, não somos apetitosos para elas. Quando nos ferem é por acidente ou por se sentirem ameaçadas por nós, os maiores predadores do planeta. Se sentir ameaçado ou ofendido é algo relativo e pessoal e a reação a isso também. Sei que medo de aranha é um sentimento íntimo, quase um instinto primitivo, muito difícil de se controlar, então duvido que de uma hora pra outra, quem tem medo e/ou ódio da Dilma, do Aécio, do PT, do PSDB, de qualquer outra pessoa ou partido, consiga mudar de ideia, pois é uma emoção profundamente arraigada. Talvez seja prudente entender que historicamente, as atitudes motivadas pelo ódio e pelo medo irracional só geraram mais ódio e medo. Talvez seja o momento de encontrarmos prioridades humanas que contemplem tanto aos que temem quanto aos que idolatram as aranhas, sem ter que modificá-los antes. Talvez seja o momento de procurar melhores resultados a partir de atitudes motivadas pelo amor e pelo bom senso.

Pensando nisso, achei que era de bom senso, por motivos circulatórios, me levantar dali e seguir com a minha vida. Sem mais detalhes, lavei as minhas mãos, me despedi da Jandira, que piscou pra mim e fui trabalhar (meia verdade, quanto a lavar as minhas mãos). E assim foi meu dia, produtivo, graças à Jandira…

 

P.S. : Respondo a charada para cada um que se desvencilhar de um ódio e entregar um sorriso.