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O dia do veterinário

O Pepe

.Por Luís Fernando Praga.

Chega ao trabalho cheio de amor pra dar, mas logo de cara, encontra uma caixa com cinco gatinhos filhotes, largados na véspera às portas da clínica. Imagina se algum pediatra já encontrou cinco bebês carentes na sua porta, para que providenciasse a adoção. Acomoda os gatinhos da melhor forma possível e já é chamado para atender o pitybú* Saddam.

Lembra-se que Saddam já o havia mordido ontem, quando foi vacinado sem focinheira, pois o proprietário bombadinho, Julião, garantira que era manso e só ficava bravo de focinheira. O bombadinho ostenta sua camiseta do jiu jitsu e dá folga na guia do Saddam, que rosna quando o veterinário se aproxima. “O Saddam ficou dolorido no local da vacina! E agora, como é que fica isso?” diz o bad boy, já prestes a finalizar o doutor. “Eu também fiquei bem dolorido depois da vacina do Saddam, Julião, às vezes acontece”, diz o médico e pede que entrem. Ignora as ameaças do cão e de seu dono e prepara a medicação, mas o rapaz diz “só vim tirar satisfação, o Saddam é muito forte e ficou bom ontem mesmo”. O veterinário faz cara de satisfeito, mas reconhece que o brutamontes tirou um pouco da sua satisfação.

Chega então o Freeway, um purdu * velhinho, há 6 meses sem banho e há 10 anos sem veterinário, puro nó e fedor. Após anamnese rigorosa e exame clínico completo o veterinário explica, de uma forma que a Da. Laurinda entenda, que o Freeway padece com uma severa periodontite (a boca podre, Da. Laurinda), insuficiência valvular mitral e tricúspide (sopro no coração, Da. Laurinda), mucosas hipocoradas (anemia, Sra.), desidratação e resíduos fecais nos pelos perianais, sugerindo enterite hemorrágica (tá obrando sangue, Da. Laurinda) e informa que serão necessários exames complementares e muito empenho para melhorar a situação do Freeway, que é grave, mas há esperanças. Da Laurinda faz cara feia e pergunta se o doutor não pode dar só um banho no Freeway, que já vai melhorar. Ele diz que infelizmente o Freeway não suportaria o estresse de um banho (vai pro beleléu, Da. Laurinda) e pensa em quantos geriatras ouvem da esposa do paciente ancião “O senhor não pode dar um banho no meu velho Onofre, doutor?”.

A próxima é Duquesa, a gatinha que por acidente, tomou os ansiolíticos da proprietária socialite na noite anterior e está intoxicada. O veterinário acessa a veia, reidrata, medica a fim de amenizar os sintomas e se sente um profissional completo ao ver a gata sair miando, feliz e faceira. Volta a se sentir um pouco incompleto ao ouvir a perua (humana) gritando pra secretária que saiu de casa tão aflita que esqueceu a bolsa com todas as formas de pagamento na cristaleira e sai cantando os pneus de sua Mercedes zero km.

Aproxima-se o almoço e o veterinário, que também sente fome, olha a agenda que ainda reserva o lavrador* Feijoada, o cheetos* Costelinha, o gato Caramelo e o papagaio Cafezinho, todos antes da hora da boia.

Cumpre sua agenda e come correndo, pois chega um parto de emergência. Auxilia a micropiter* Princesa a dar à luz seis filhotes. Percebe que poderia passar a tarde toda vendo os bebês descobrindo o lado de fora da mãe… depois viria o mundo. Reforça-se o prazer e respeito que sente por sua profissão. Orienta a proprietária e libera a Princesa com seus principezinhos.

Agora era o Pepe, um vira latas que ele também trouxera ao mundo, ajudando no momento do parto. Pepe crescera bastante, ficara um cachorro bonito, muito simpático e educado. Tomara todas as vacinas com aquele veterinário. Assim como Saddam era dos poucos animais que o veterinário não ficava feliz ao ver entrando pela clínica, Pepe era dos poucos pacientes que ficavam felizes vendo o veterinário. Vinha ligeiro, balançando a cauda, com a língua pendurada no sorriso aberto, alegrando a todos. Sempre teve muito boa saúde, mas já aos catorze anos, recebeu do tempo um câncer hepático muito agressivo que rapidamente espalhava suas raízes por toda a cavidade abdominal.  Nesse dia Pepe entrou carregado pelo dono, que chorava. Pepe ainda abanou o rabo e sorriu sofrido ao ver o amigo veterinário. O dono de Pepe estava decidido pela eutanásia e o veterinário precisaria tirar a vida de um animal adorável a quem tinha visto nascer. Não seria a primeira vez que caminharia pela paisagem mais triste e desagradável da sua profissão. Mas era “o dia do veterinário” e enquanto o cão aguardava, em seu estado terminal, o término da conversa entre seu dono e seu médico, tocou, com a pata, a mão do veterinário e como que dizendo “não precisa fazer isso, amigo, eu já vou indo”, o corpo de Pepe, num último suspiro, libertou a vida que ele não era mais capaz de conter. O veterinário e o cliente olharam gratos para Pepe, por um tempo fora do tempo que durou pra sempre, até o próximo atendimento.

Antes de atender Chinoca, a calopsítera* , seu pensamento agradeceu a Pepe pelos muitos bens que o cão havia provido àquele veterinário e que nada tinham a ver com posse. Chinoca veio apenas cortar as penas. Só da asa esquerda, para que não tivesse equilíbrio no voo e … não pudesse voar e … perdesse a consciência da liberdade e aceitasse docemente a selvageria que é um cativeiro. Ele o fez, mas questionou seu ato, pois veterinário tem dúvidas, conflitos internos e erra. Sentiu tristeza e teve vontade de abraçar sua família, pois veterinário tem família. Sentiu vontade de rever amigos, que veterinário tem amigos. E sentiu vontade de ajudar mais animais, que veterinários gostam disso também.

Liberou a Chinoca, já sem sua liberdade e foi atender Elvis Pélvis, um inhoque charle* que há cinco dias caíra do colo da dona e fraturara o quadril. Elvis, que já estava melhor nesse retorno, mordia regularmente a proprietária e toda sua família. Após a fratura, não podiam nem chegar perto que o Elvis atacava, mas desde o dia em que fora medicado, se sentia mais calmo e lambia as pessoas ao invés de mordê-las. Elvis abanou o rabo e sorriu ao ver o veterinário, que agradeceu a quem inventou os sorrisos, fez um cafuné no Elvis e se lembrou do Pepe. Elvis precisava de mais repouso e medicamentos para reduzir a inflamação e aliviar a dor, mas logo estaria bem, correndo e mordendo novamente.

Chegando a noite e a hora do jantar, ainda faltavam o hot-vale* Macarrão, o sarsicha* Sarsicha, o retorno do jaboti Escondidinho, que voltara a enxergar, depois ficar cego por um mês. Também o hamster  Gorgonzola, a gatinha Coalhada e o alcapone* Picolé. De passagem pelo espaço da tosa e ouve o tosador sabiamente dizer que preferia tosar um iasa lapso* a dar banho em um hulk simeriano*.

Depois ainda de vacinar, suturar, consultar e fazer curativos, acabaram os pacientes. Era hora de falar com gente, ligar para proprietários informando o resultado de exames, marcar retornos, adequar doses, etc.

Fim de expediente, finalmente, mas não… Da. Cacilda aguardava com sua coqui* Cevada, para que o médico “desse uma olhadinha” no enorme tumor, “surgido de ontem pra hoje” que pendia de uma das mamas da cadela. Ele ouviu dizer que alguns médicos humanos trabalham apenas no método da olhadinha, mas custa crer. Esclarece que o veterinário que dá olhadinha no paciente não está sendo bom nem para o paciente e nem para sua classe. Indica um colega plantonista e alerta que ele também não dá olhadinhas, mas consulta muito bem.

Vai pra casa e poucos pensamentos ousam caber na cabeça cheia de um dia cheio. Mas se lembra do Pepe, do Elvis, do Escondidinho e rapidamente sente leve o final do seu dia, a ponto de, numa noite de calor intenso de um nove de setembro, encontrar um espacinho pra dar uma olhadinha numa cevada gelada e entornar no papel uma parte de sua vida.

 

Legenda:

pitybú* = pitbull

purdu* = poodle

lavrador* = labrador retriever

cheetos* = shih tzu

micropiter* = pinscher miniatura

calopsítera* = calopsita

inhoque charle* = yorkshire terrier

hot-vale* = rottweiler

sarsicha* = dachshund ou teckel

alcapone* = agapornis

iasa lapso* = lhasa apso

hulk (ou whisky) simeriano* = husky siberiano

coqui* = cocker spaniel

 

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