Eufrásio adorava futebol, a ponto de assistir, desde os maiores clássicos, até os piores “arranca toco” da história do esporte. Nunca perdia uma copa do mundo.
Eufrásio também tinha outros gostos e prioridades. Eufrásio gostava de viver em seu país e apesar de ouvir, de muitas pessoas respeitáveis, que o país era uma merda e não tinha jeito, o Eufrásio achava que tinha. Apesar de ouvir pessoas admiráveis dizendo que seu povo era burro, ou corrupto, ou preguiçoso, Eufrásio não pensava assim. Eufrásio, já havia tempo, deixara de se sentir triste ou ofendido, quando alguém de quem ele gostava, dizia que futebol era coisa de idiota alienado. Admirava centenas de pessoas que adoravam futebol. Pessoas que não tinham a menor necessidade de provar pro Eufrásio que não eram idiotas ou alienadas. Gênios das artes, dos esportes, da medicina, da engenharia e da política, mas também apaixonados pelo futebol. Eufrásio aprendeu a ver os outros ângulos antes de se sentir magoado e antes de julgar as pessoas como imbecis ou descartadas, por uma ou outra ideia que tivessem, diferentes das suas.
Mas era um tempo diferente. A copa do mundo seria em seu país, o que faria Eufrásio, numa situação habitual, ter orgasmos múltiplos e convulsionar de prazer. Entretanto Eufrásio estava muito desgostoso e indignado com a situação política e social do Brasil. Pensava que havia outras prioridades e que haveria muita roubalheira e superfaturamento nas obras. Haveria muita demagogia, tanto por parte da situação quanto da oposição, em nome da copa e de seu resultado. Então, Eufrásio decidiu boicotar e não assistir a nenhum jogo daquela copa do mundo no Brasil. E assim se deu…
Começou a copa. Brasil e Croácia, 1 a 0 pra nós, jogo duro, difícil, sofrido! Dia seguinte, o comentário era geral, até entre os que odiavam futebol. Eufrásio dizia, emburrado, “eu não vi, sou contra a copa nessa atual conjuntura e boicotei!”. Um amigo entusiasmado contou pro Eufrásio que o Tedy fizera um golaço de bicicleta, mas o juiz anulara. “Tava impedido, é o que comentam”, respondeu Eufrásio. Tava não, retruca o amigo. “Claro que tava! E você lá entende de futebol, João?” Ué, Frasão, você nem viu o jogo! “É o que comentam, porra… e me deixa em paz, João!”.
Cinco dias depois, lá estava o Brasil em campo contra o México. Perdemos por 2 a 1. No dia seguinte o Eufrásio parecia acabado. Que bosta de jogo, né seu Eufrásio, disse o estagiário, no trabalho. “Eu não vi, não quero falar disso, Rubinho! O Gideão é o técnico mais burro que a seleção já teve, o mais burro da história do futebol! E o Tulio Cesar é o goleiro mais peruzeiro do planeta, idiota! Mas só ouvi dizer… tá bem, Rubinho?”. Tudo bem, seu Eufrásio, tudo bem! Rubinho saiu olhando pra trás desconfiado e fingiu que não viu o olhar meio estranho de Eufrásio acompanhando seus passos.
Brasil e Camarões aconteceu 6 dias após a derrota para o México e foi 5 a 1, Brasil. Eufrásio chegou eufórico ao trabalho. Levou amendoins pros colegas e puxou o assunto. “Viram o jogão… o jogo, ontem?” Caramba, quem não viu?! Goleada!!! Acho que a copa já tá no papo, falou o Vitor. “Eu não vi.”, prosseguiu Eufrásio. “O Neymarlon fez 3 né? Cada golaço!!! E o Túlio, pega demais aquele goleiro!! Ouvi… no rádio… só hoje, que estou boicotando os jogos…”. Sei, falou o Vitor, você comentou que ia fazer isso, mas não tem dado nem uma olhadinha? “Claro que não! Acho muito errado a copa nesse contexto político!”.
O Brasil se classificou em segundo lugar no grupo. Pegou a então campeã mundial, Espanha, nas oitavas de final e ganhou por 3 a 2, na prorrogação, com 2 a 2 no tempo normal depois de estar vencendo por 2 a 0. Uma verdadeira sacanagem de Deus com o coração do ser humano. E aí, Eufrásio, perguntou o sogro no jantar de domingo, viu o Brasil hoje? “Gideão filha de uma puta! Mexe pior que a minha sogra!!… desculpe… não, não vi… como foi?”. O sogro, meio chateado, respondeu o resultado e silenciou. “E o mongolóide do Túlio Cesar saiu mal de novo no escanteio. Se não fosse o raçudo do Ivã Luiz colocar a cabeça na chuteira do Piquetti e desviar pra rede no último minuto da prorrô a gente ia pros pênaltis dependendo da mão de merda do Túlio! Eu é que não vou ver mais nem um jogo!!! Já que não vi nenhum ainda, né!”. Um sorriso discreto se fez à boca de todos à mesa. O sogro soltou um “pois é”, e não tocou-se mais no assunto.
Mais 6 dias e o adversário foi o histórico rival, Uruguai, primeiro do grupo D. O fantasma do maracanaço rondava e assombrava a todos, mas o Brasil jogou bem e ganhou no tempo normal por 3 a 0. O Azevedo, velho asqueroso, inconveniente, sem simancol e odiador de futebol , vizinho do Eufrásio, tocou a campainha logo depois do 3º gol, aos 30 minutos do segundo tempo. Eufrásio esperou a campainha tocar 5 vezes pra ir atender de mal humor. Tá tudo bem, Eufrásio? “Tá sim, por quê?”. É que ouvi gritos e fiquei preocupado. “Tava trocando o chuveiro e levei um choque, tá tudo bem!” Nossa, mas foi um grito tão comprido e tenebroso! E foram três vezes!! E com um considerável intervalo entre eles, tem certeza que tá tudo bem? “Olha, Azevedo, acho que você já viu coisa mais comprida e tenebrosa que meu grito e bem mais de três vezes, e nem por isso foi encher o saco do vizinho. Se me dá licença, preciso voltar pra ver o chuveiro… se eu gritar de novo não se preocupe, costumo tomar choque e gritar sempre, obrigado.”.
Só mais 4 dias e outro clássico sul-americano. Brasil e Argentina, semi final, numa quarta-feira à tarde. Uma verdadeira sacanagem da FIFA com o trabalhador brasileiro. Era o esperado confronto entre Mecio e Neymarlon. Jogamos bem, eles também. O melhor jogo da copa. Ataques criativos no gramado e cardíacos nas arquibancadas. Tempo normal 3 a 3. Prorrogação 1 a 0 pra eles… até os 15 do segundo, quando o Neymarlon, que já tinha feito 1, fez fila e tocou na saída do goleiro, no meio das pernas. Um terrível golpe na moral de los hermanos. Fomos para os pênaltis. O capitão Rodrigo Silva converteu a nossa 5ª cobrança. Mecio corre pra bola e chuta pra empatar a série, mas o glorioso Túlio Cesar busca com as pontas dos dedos, no canto esquerdo. Estamos na final!! O Azevedo se mordia em sua casa ouvindo o Eufrásio urrar por 5 minutos consecutivos, depois de vários daqueles gritos longos e tenebrosos, mas segurou a onda e não tocou a campainha. Na quinta, o Eufrásio ria a toa mas desconversava, no trabalho, quando o assunto era o jogo.”Não vi, como foi? Contra quem? Verdade, Neymarlon jogou bem, é? Ah, mas acho que o melhor foi o conjunto e a aplicação tática. E Túlio Cesar, pega demais aquele goleiro, inquestionável, ele! Claro, Neymarlon é craque, aquele gol… eu não vi, mas dizem que fez um golaço, né? Sei lá, não to vendo não! Sou contra fazer copa do mundo com gente sem escola, doente e com político que não tem mais onde enfiar grana, mas respeito quem esteja vendo…”.
Domingo, 13 de julho de 2014. Maracanã. Brasil e Itália. Só para os fortes. O ferrolho da defesa italiana anulou a criatividade brasileira. Nosso melhor jogador marcado com competência, não mais que com violência. As jogadas não saiam e o OXO insistia até os 39 do segundo tempo, quando o avante italiano Mario Barroterra pressionou a saída de bola brasileira e se viu de sozinho, de frente pro Túlio Cesar, deu um drible de corpo que derrubou nosso goleiro e tocou no canto, inapelável, 1 a 0 Itália. Perdemos, todos pensaram, ainda mais quando o beócio do Gideão tirou o Tedy e o Neymarlon, como medida desesperada e colocou o Bô e o Osmar. Itália ainda pressionava aos 43 do segundo, quando uma bola espirrada sobrou pro Osmar, que, no círculo central, olhou, pensou, viu o Bô em movimento e deu um chutão. O Bô resvalou pra trás, de cabeça e matou o goleiro Baffon. Empatamos, ia ter prorrogação!!! Mas, no final do tempo normal, a Itália recomeça o jogo do meio, Pedrinho da combate e rouba a redonda, partindo pro ataque com liberdade, já nos acréscimos, se aproxima da área e recebe um criminoso carrinho por trás. Se contunde e deixa o gramado. Não há mais substituição. Prorrogação com um a menos é tenso. Mas tinha a falta. Mas não tinha mais o cobrador oficial, Neymarlon. Osmar assumiu a responsabilidade. Beijou a Brazuca, posicionou-a no gramado com carinho e o bico virado pra ele. Um tempo sem fim se acomodou entre o apito do juiz e a corrida de Osmar pra bola. Ele bateu com firmeza e classe. Baffon foi nela e resvalou os dedos, mas não impediu que ela atingisse o ângulo superior direito e morresse na rede. Baffon caiu com o rosto no gramado, mãos na cabeça, em prantos, como toda a Itália. O Brasil explodiu! Talvez, exceção feita ao Azevedo, que devia estar morrendo de preocupação. Eufrásio saiu correndo e pulando pelas ruas, gritando: “Gideão, seu filha da puta, eu te amo!!! Eu te amo, Gideão!!! Vai, Brasil!! Ganhamos!!”. Entrou num bar abraçando todo mundo, já rouco e ainda gritando que amava o Gideão. Numa mesa, encontrou o pessoal do trabalho. Tentou, em vão, fechar o sorriso. Os amigos gritavam e se abraçavam. João e Vitor sacudiram Eufrásio gritando, você viu, Eu, você viu?!!! Eufrásio, sem a menor credibilidade, respondeu… “Eu? Não, já acabou? Como foi? Gideão, seu viado, eu te amo!!!”.