A pesquisadora e escritora Célia Musilli, mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, tomou conhecimento da obra da escritora mineira Maura Lopes Cançado através de um artigo encontrado por ela num site de cultura. A partir deste contato inicial, Célia leu Hospício é Deus, um dos livros mais conhecidos da escritora que passou boa parte de sua vida internada em manicômios.

Maura Lopes Cançado.  Foto: Revista  O Círculo do Livro, nº 92, novembro/dezembro de 1991
Maura Lopes Cançado, autora de Hospício é Deus e do livro de contos O Sofredor do Ver

Mesmo tendo sua criação inevitavelmente intricada com a experiência da loucura, Célia procurou em sua pesquisa de Mestrado iniciada no ano de 2011 no Departamento de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), investigar a linguagem da escritora,  aproximar-se do seu universo simbólico presente numa literatura considerada por ela bastante original, densa e atravessada por muitas imagens e metáforas.

Em sua dissertação, defendida este ano (2014), além do diário Hospício é Deus, Célia também analisa o livro de contos O Sofredor do Ver, considerado pela pesquisadora como a grande obra de Maura e que atualmente é uma raridade nas livrarias e sebos. Um dos seus objetivos com a pesquisa foi tornar a obra da escritora mineira mais conhecida, já que ela é pouco estudada e praticamente ignorada pela crítica, mesmo tendo em vista a qualidade de sua escrita.

Como enfatiza Célia nesta entrevista exclusiva concedida ao site Carta Campinas, um grande desafio foi estudar a obra de Maura sem que a loucura se sobrepusesse à obra literária, como acontece frequentemente, procurando ver o que Maura realmente fez em termos de literatura, sem, no entanto, deixar de lado a relação entre arte e loucura.

Diante dos livros de Maura, comparados por Célia a caleidoscópios, repletos de imagens literárias que descobrimos girando de um lado a outro, a pesquisadora optou por investigar a obra da autora tendo como paramêtro o surrealismo e valeu-se também das reflexões de Michel Foucault presentes em História da Loucura.

Na entrevista, Célia nos fala dos personagens da obra de Maura, em sua maioria colegas de manicômio, “os internos que formavam a massa da loucura”, da influência do jornalismo em sua escrita, da versatilidade ao transitar de um gênero a outro,  da relação inusitada entre insanidade e deus, da força das imagens e do atrito constante das palavras em sua obra.

Uma “obra explosiva”, que, vigiada, se faz vigilante e, a todo momento, vê. Como diz Célia, “trata-se de literatura sofisticada, às vezes complexa ou quase inescrutável, para se ler com todos os sentidos, buscando na recepção uma pulsação que acompanhe sua criação.  Maura às vezes é de tirar o fôlego”.

Carta Campinas: Como você chegou à obra da escritora mineira Maura Lopes Cançado? De onde veio o interesse inicial em estudá-la?

A pesquisadora Célia Musilli
Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora Célia Musilli utiliza como parâmetro o surrealismo e as reflexões de Michel Foucault

Célia Musilli: Tomei conhecimento da obra de Maura em 2009 através de um artigo que encontrei num site de cultura. Depois li Hospício é Deus, seu livro mais conhecido, na verdade um diário escrito por curto período no manicômio, e me surpreendi com a densidade de sua escrita. A partir disso, me interessei profundamente pela relação entre literatura e loucura, tomando conhecimento de outros autores importantes que apresentavam a mesma característica de Maura, um quadro psicótico aliado a um grande potencial literário. Trata-se da força expressiva de quem faz outra leitura do mundo, plasmada por uma percepção dilatada das coisas e muito luminosa, às vezes também muito lúcida, como no caso do diário de Maura que ela escreve fazendo uma auto-representação da louca, dando voz a si mesma e a suas companheiras de hospício. Seu diário é um documento de época, mostra o tratamento dspensado à loucura, uma coisa trágica ao longo do tempo e no período em que ela esteve internada, quando eram usados tratamentos dolorosos e desumanos. Vi que no diário ela fazia uma crítica feroz ao sistema psiquiátrico em vigor no período de seus internamentos, que foram muitos, Maura passou a vida entrando e saindo de manicômios. Mas eu queria algo mais do que a constatação, presente em muitas pesquisas, de tomar sua obra como “escrita de denúncia.” Quis investigar sua linguagem e percebi que faria isso melhor através do plano simbólico. Queria a conexão com uma espécie de “inconsciente da obra” já que Maura utiliza muitas imagens e metáforas, recursos mais presentes ainda em seu livro de contos O Sofredor do Ver que li mais tarde e considero sua grande obra. Em 2010 apresentei um projeto de mestrado à Unicamp e ele foi aceito, comecei efetivamente em 2011. Tive como orientadora a prof. Dra. Adélia Bezerra de Meneses que foi muito ousada ao aceitar o projeto de analisar a obra de uma autora praticamente desconhecida, sobre a qual se tinha e se tem ainda poucas referências.

Carta Campinas: Qual foi o objetivo principal do seu estudo no mestrado, a sua questão de trabalho referente à obra de Maura?

Célia Musilli: Investigar a linguagem, como disse, aproximar-me do seu universo simbólico presente numa literatura que considero bastante original. A escrita de Maura se distancia do lugar comum, não à toa o crítico Assis Brasil, um dos poucos, senão o único crítico renomado a analisar seu livro de contos, a considerava uma revelação literária dos anos 50/60. No prefácio ao livro A Nova Literatura – O conto III (1973), ele elenca uma série de autores que considerava importantes e Maura está entre eles. Ainda assim, Maura é pouco conhecida, pouco estudada, o número de teses e dissertações sobre sua obra é pequeno, a crítica praticamente a ignora, mesmo tendo em vista a qualidade de sua escrita. Então, um dos meus objetivos foi também colaborar para tornar a obra de Maura conhecida, mas quis fazer isso mergulhando em sua linguagem, porque muita gente se restringe a tomá-la como a “escritora louca”, sendo que muitas vezes a loucura se sobrepõe à obra. Está certo que as coisas se imbricam: literatura e loucura, mas eu queria saber como se imbricam também no plano da linguagem, acho que consegui alguma coisa, mas ainda há muito a se descobrir. Comparo seus livros a caleidoscópios, repletos de imagens literárias que descobrimos girando de um lado a outro, sendo possível muitas leituras, como em toda grande obra. Para fazer esta abordagem, tomei como parâmetro o surrealismo, um ponto importante da minha pesquisa, não para classificar Maura como “autora surrealista” mas buscando em sua obra traços surrealistas que outras pessoas identificaram de passagem, sem se aprofundar, sem explicar por que, sem distinguir estas características. Arrisquei-me neste caminho e encontrei o encantamento da linguagem surreal, aquela que tira faíscas das palavras, iluminando novos sentidos, por aproximações inusitadas como nos títulos de seus livros: Hospício é Deus e O Sofredor do Ver. Trata-se de literatura sofisticada, às vezes complexa ou quase inescrutável, para se ler com todos os sentidos, buscando na recepção uma pulsação que acompanhe sua criação. Maura às vezes é de tirar o fôlego. Tive a sorte de contar com grandes mestres na banca examinadora da minha dissertação: Claudio Willer, um especialista no surrealismo, e a professora Helena Bonito Couto Pereira, a colaboração deles também foi fundamental.

Carta Campinas: Maura é conhecida do público mais pelo fato de ter passado por inúmeras clínicas psiquiátricas ao longo da vida do que propriamente pela sua obra. Há como separar a sua obra literária e artística da experiência da loucura? Em que medida as duas coisas estão entrelaçadas e de que forma uma influenciou a outra?

Célia Musilli: As duas coisas se imbricam: literatura e loucura. Mas procurei analisar sua escrita pela ótica da eficácia estética, porque não basta ser louco, tem que escrever bem, fazer literatura. Mas procurei analisar sua obra cruzando-a também com dados biográficos porque considero este aspecto relevante quando se perscruta o universo de um autor, seus motes de criação. Maura, por exemplo, transforma colegas de manicômio em personagens de seus contos, ficcionaliza a história dessas pessoas. Não dá para ignorar este aspecto, o imbricamento é tão grande que alguns dos contos só podem ser melhor compreendidos a partir de seu diário. Há uma transposição de situações do diário, que é obra realista, para sua obra ficcional.
Embora o estigma da loucura pese muito sobre Maura, procurei analisá-la não sob um ponto de vista psicopatológico, mas literário. A modernidade, por sinal a partir dos surrealistas, assumiu a obra dos loucos como criação artística, o que, através da História, havia sido relegada ao esquecimento. O discurso do louco durante muito tempo foi ignorado, Foucault deixa isso claro em História da Loucura, uma obra que foi minha âncora nesta pesquisa sob o ponto de vista da compreensão da loucura e sua inserção no terreno da arte e da literatura.

Carta Campinas: Maura escreveu em diversos gêneros, ela é autora de poemas, contos e também de um diário, O Hospício É Deus – Diário I, publicado em 1965. Ela também dividiu a redação do Jornal do Brasil com intelectuais, tais como José Louzeiro, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil, Ferreira Gullar, dentre outros, inclusive muitos dos seus textos eram publicados no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, na década de 1960. Há alguma influência do universo do jornalismo na sua obra literária?

Célia Musilli: Sim, o jornalismo influência sua obra, na dissertação comparo Maura a uma repórter que vivia no hospício e, de certa forma, noticiava o que passava lá dentro. Ela assume a função jornalística muitas vezes, até mesmo na linguagem. No diário ela cria manchetes em alguns momentos, escreve como se desse título à matéria de jornal. Anuncia, por exemplo, O CRIME DA GRAVATA NOVA com letras garrafais e faz isso com humor. Maura, apesar de todo sofrimento, escreve com humor, humor negro às vezes, como os surrealistas. Ela também se vale da ligação que tinha com o Jornal do Brasil – onde publicava contos, mesmo estando internada – e da amizade com jornalistas como condição que lhe confere prestígio. E conferia mesmo, como autora ela era vista de outro modo no manicômio, isso lhe dava um status e era motivo de orgulho para ela. Principalmente, como escritora ela adquiria uma identidade, não era “apenas um prefixo no peito do uniforme” como descreve os internos que formavam a massa da loucura.
No diário, ela passa de um gênero a outro: do jornalismo à literatura, por exemplo. Escreve muito em prosa e faz poemas também. Em matéria de gêneros é eclética, escreve como quem mexe no dial de um rádio, faço também esta comparação, porque era muito versátil. Os amigos jornalistas frequentemente também são citados por ela que os critica ou engrandece, dependendo do momento e da circunstância, da cumplicidade ou da decepção. Quando a situação ficava difícil no manicômio, ela chamava Reinaldo Jardim – editor do Suplemento Dominical e um dos primeiros a valorizar sua obra – ou queria falar com Ferreira Gullar, Alice Barroso e outros conhecidos para quem telefonava. O universo jornalístico aparece bastante no diário.

Carta Campinas: Em seu trabalho você analisa apenas os poemas de Maura ou também seus contos e o diário? Como esses diferentes gêneros convivem no conjunto de sua obra, há algum que você destacaria em particular?

Livro de contos de Maura atualmente é uma raridade no mercado editorial
Livro de contos de Maura é uma raridade no mercado editorial

Célia Musilli: Analisei os dois livros de Maura, o diário Hospício é Deus e o livro de contos O Sofredor do Ver. Talvez seja a primeira pessoa a analisar integralmente seu livro de contos, são doze ao todo, e este livro é uma raridade. Quero falar um pouco dele, a primeira edição saiu em 1968 pela editora José Olympio. Só teve nova publicação em 2011, uma edição numerada, por iniciativa da Confraria dos Bibliófilos do Brasil com sede em Brasília, e já está de novo esgotado. Talvez, uma das razões para os contos de Maura serem pouco conhecidos e analisados seja a falta deste livro que levou 43 anos para ser publicado de novo, ainda assim numa edição limitada de 501 exemplares, nos sebos virtuais um exemplar desses já está custando uma pequena fortuna. A primeira edição, da José Olympio, nem se encontra mais. Vi uma vez num site americano, cotado a dólar como raridade.

Retomando a pergunta, ao analisar o diário – no qual Maura incursiona por vários gêneros ou planos – analisei a prosa e alguns poemas, pelo menos os que mais me impressionaram. O primeiro capítulo da dissertação termina com um poema, porque quis, naquele ponto, “devolver” a palavra a Maura, deixar que ela falasse por si mesma, e o poema que escolhi é muito intimista, o devaneio de uma interna que sonha com o ambiente externo, com a cidade da qual está apartada. Mas o que se evidencia em sua escrita é a prosa e me dediquei especialmente aos contos porque são belíssimos, além disso, foram pouco analisados. Quando comecei a pesquisa encontrava contos de Maura dispersos na internet – o mais conhecido é No Quadrado de Joana – mas foi fundamental ter o livro de contos, sem ele seria muito mais difícil reunir sua obra ficcional numa amostragem significativa. Analisei um por um, fiz minha interpretação sem muitos parâmetros da crítica, sem muitas referências, porque sua obra continua desconhecida, foi pouco abordada. Mas em relação aos contos acho que dei um pequeno salto e ainda há muito a explorar. Análise é uma coisa infinita, mas temos prazos para a pesquisa e os cumprimos da melhor forma possível.

Carta Campinas: Desde Foucault, com sua História da Loucura, a imagem da loucura nos surge como um saber fechado, inacessível, e que, por isso, nos fascina e amedronta ao mesmo tempo. Seria uma experiência do limiar, próxima da morte, portadora de uma peculiar liberdade que nos vigia, nos espreita, e que se faz livre justamente por transpor os limites de nossa racionalidade. Maura é um dos tantos exemplos de escritores, filósofos e poetas que tiveram suas obras atravessadas pela “noite da loucura”. Como a experiência da loucura pode ser sentida, percebida, através da sua obra. Há estruturas formais nos seus textos, ou mesmo imagens, que permitam nos colocar diretamente diante dessa experiência e que revelem uma coexistência na construção artística da racionalidade e, ao mesmo tempo, de um transbordamento dela?

Célia Musilli: Muito boa a sua pergunta. Você fala em loucura relacionando-a à morte, Maura faz esta aproximação às vezes, compara o hospício à eternidade, a mobília do refeitório a um cemitério, a loucura à distância da morte pela imposição do apartheid ao louco. Mas uma relação importante que faz é entre a insanidade e Deus, a partir do próprio título Hospício é Deus. Este título é inusitado, provocativo mesmo, fiquei meses procurando caminhos para interpretá-lo, vi que seria possível através da filosofia, Deus e a loucura são dois grandes temas filosóficos, pelo que proporcionam de incompreensão, de complexidade, pelo abismo que se abre quando pensamos ou pronunciamos essas palavras. Encontrei em Foucault um caminho para fazer esta relação pelas razões que citei. Além disso, as imagens, a simbologia na obra de Maura é muito forte e também o atrito das palavras, a combustão que me levou a uma abordagem surrealista. Você também enfoca a vigilância e este é um aspecto importante da minha interpretação. Maura sentia-se vigiada e também vigiava o hospício, tracei uma interpretação sobre o fato dela olhar e ser olhada, comparo sua escrita à linguagem cinematográfica, sua experiência a um reality show, como se Maura ligasse no hospício uma câmera 24 horas, vendo e relatando tudo. Ela mesma diz muitas vezes que está inserida num contexto, num ambiente “que só o cinema seria capaz de mostrar”. Isso revela muito da sua obsessão pela linguagem perfeita, que capte a realidade em detalhes. Também revela nos contos uma forma de olhar bastante original, o verbo “ver” permeia toda sua obra, tanto que tem um livro e um conto homônimo intitulados O Sofredor do Ver. Há muito a falar sobre isso, mas aí eu teria que explicar tudo que está na dissertação, é muita coisa e não é nem a metade do que nos proporciona a obra de Maura.

Carta Campinas: Há um trecho de O Hospício é Deus que diz: “Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. […] Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade”.  Como a questão do feminino, da mulher, aparece representada na obra de Maura? Nos seus escritos, o “ser mulher” estaria próximo de habitar uma região de loucura, onde é possível rir plenamente, existir sem tempo, rir mesmo que da própria contradição de resistir absolutamente livre, no prazer, na sensualidade, mesmo por trás de tantas grades, mesmo falando do lugar da loucura, de um lugar sempre posto à margem?

Célia Musilli: Há muitas mulheres entre os personagens de Maura, mais mulheres que homens. Isso se justifica pela convivência dela nas alas femininas dos manicômios. Auda – escrito assim com u – é uma de suas colegas de hospício que se transforma em protagonista do conto Introdução a Alda. Joana, a catatônica de No Quadrado de Joana, provavelmente foi inspirada em alguma companheira de hospício. No diário ela identifica e descreve muitas de suas companheiras. Há também as funcionárias, as enfermeiras, Dona Dalmatie, Dona Júlia, etc. Mas creio que isso seja contingência de seu convívio, não um traço de predileção ou escolha literária. Ela também fala de homens em menor proporção, o Dr. A, um psiquiatra negro, é seu grande amor no hospício, também fala do pai – com quem manteve uma relação meio edipiana – do ex-marido, do ex-sogro, do filho Cesarion, mas tudo de passagem, citando-os como dados biográficos. Personagens literárias são na maioria do sexo feminino.
Como mulher se expressa de forma muito sensual no diário, era vaidosa, narcisista, maquiava-se bem, exibia as pernas, gostava de ser vista e admirada, diria que se colocava de forma artística no manicômio, às vezes dançava no telhado. Há um episódio interessantíssimo em que interpreta Ofélia, de Shakespeare, numa encenação teatral no hospício, e na hora do espetáculo, literalmente incorpora Ofélia e ameaça jogar-se de uma cachoeira para afogar-se no rio. Este episódio é tema do conto Espiral Ascendente. Mas esta liberdade, expressada às vezes de forma radical, é uma contingência da loucura não do “ser mulher” exatamente. Maura fazia o que lhe dava na telha. A condição de liberdade era introjetada nela sem que isso se relacione a uma busca de emancipação feminina, era naturalmente independente e rebelde. Encontrei uma entrevista, que ela deu ao jornalista João da Penha da revista Escrita, em que Maura fala dos gêneros sem fazer diferença entre homens e mulheres, sem arroubos feministas. O que não deixa de ser um feminismo exemplar, uma igualdade já assimilada que nem sequer observa as diferenças. Nesta entrevista, ela diz que não se expressa como mulher, mas como ser humano.
Importante é deixar claro que Maura , além de autora, foi uma pessoa muito criativa o que dá margem também a muita ficção em torno da vida dela. Há um episódio, comentado pelo jornalista e escritor José Louzeiro num artigo que relaciona a loucura de Maura a um incidente com um avião na juventude. Maura, quando jovem, fez curso para tirar brevê e ganhou da mãe um avião Paulistinha, sua família, de MG, era muito rica, ela era filha de um grande fazendeiro. Pois este incidente – o avião teve que fazer um pouso de emergência e causou alguns estragos numa cidadezinha do interior – é visto como sintoma de loucura, de um surto. Mas a própria Maura diz no diário que quem pilotava o avião era um amigo, não ela, que era apenas passageira na ocasião. Não defendo aqui nenhuma versão como a “verdade”, a vida de Maura foi bastante fragmentada e há muitas informações desencontradas sobre ela. Mas defendo que todas as versões sejam consideradas e não se embarque ou se alimente também a ficção quando se fala de Maura Lopes Cançado. Claro que a lenda é sempre mais fascinante que a realidade, mas tendo em vista seu próprio relato sobre o incidente com o avião, num diário considerado lúcido, creio que se deva levar em conta também o que ela diz e não só o que dizem sobre ela, embora a Maura “escritora e louca” seja uma personagem e tanto. Mas sempre que pude e posso lhe devolvo a palavra porque ela deixou um documento muito importante: o seu diário.

Literatura e loucura: a transcendência pela palavra
Célia Musilli
Orientador(a): Adélia Bezerra de Meneses
Banca examinadora:  Claudio Willer e Helena Bonito Couto Pereira