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‘Livro de Haicais’ de Jack Kerouac convida a caminhar por sutilezas poéticas

Kerouac ao sol nascente

Um autor versátil na poesia e na prosa que escrevia num jorro, tal como fez quando criou sua obra-prima On the Road composta alucinadamente em apenas três semanas, à base de benzedrina e café. Um autor que escrevia no ritmo do jazz e que, de repente, encontramos numa trilha zen, fazendo haicais como se girasse o dial de um rádio sintonizando uma emissora do oriente, audível, penetrante, mas com alguns ruídos que marcam de forma positiva as diferenças culturais e uma possível adaptação. Ele podia estar ali mesmo, em Nova York ou em Oklahoma, mas penetrava nas solitárias montanhas reais ou imaginárias onde criava como um mestre japonês, às vezes dividido entre a poesia e o chá.

Jack Kerouac

Estamos falando de Jack Keroauc , cujo Livro de Haicais acaba de ser lançado pela L&PM. São 300 páginas, em edição bilíngue, com apresentação de Regina Weinreich – escritora e jornalista alemã, radicada nos EUA, especialista na Geração Beat – e tradução de Claudio Willer, também um especialista no movimento que levou a literatura para a estrada, dividindo caminhos entre o antes e o depois.

O ensaio de Regina Weinreich é fundamental para compreensão da produção de haicais por Kerouac. Ela nos mostra as várias instâncias de criação do poeta no gênero contando que foi Gary Snyder, o zen-budista do grupo, quem apresentou o haicai aos escritores da Costa Oeste. Kerouac aderiu ao estilo com peculiaridades. Regina mostra isso introduzindo um trecho em que ele comenta como faria o haicai ocidental, criando depois variações que chegariam ao que chamou de Pops.

“Eu proponho que o haicai ocidental simplesmente diga muita coisa em três linhas breves em qualquer língua ocidental. Acima de tudo, um haicai deve ser muito simples, livre de truques poéticos, capaz de evocar algo e ainda assim ser tão delicado e gracioso como uma Pastorella de Vivaldi.”

Dito e feito. Os haicais de Kerouac realmente primam por esta delicadeza. Mais, nos inserem em paisagens como na tradição oriental, passando muitas vezes pelas estações do ano, mas também superando-as. Sobretudo, ele privilegia o caráter efêmero de um gênero que flagra os instantes , nos tomando quase sempre pela beleza e imediata nostalgia de algo que surge, ilumina nossa percepção e parte. Esta pelo menos é minha sensação quando um haicai me toma.

Livro traz haicais do poeta beat

O livro aponta as diferentes fases de produção de Kerouac, cobrindo um período que vai de 1956 a 1966. Regina mostra o escritor enchendo os bolsos da camisa xadrez com blocos de anotações, referência a um artista sempre de plantão, a produção estende-se por muitos cadernos, períodos e lugares que se dividem em seis partes: Livro de Haicais – que ,ao que tudo indica, foi uma seleção de poemas feita pelo próprio Kerouac para publicação; Pops do Darma, compostos por haicais que ele identifica como americanos (não japoneses); Pops da Desolação (1956) referentes ao período em que Keroauc se isola no Pico da Desolação por 63 dias, reproduzindo a experiência do poeta chinês Han Shan que vivia isolado e era tido como louco; Haicais de Estrada – produzidos no verão de 1957 quando Kerouac viveu numa cabana em Berkeley, pouco antes da publicação de sua obra-prima On the Road; Haicais da Geração Beat (1958-1959) escritos no período em que a expressão Geração Beat era tratada de forma pejorativa pelos críticos enquanto Kerouac escreve de forma radical, mergulhado também no alcoolismo e, finalmente, uma sexta parte: Haicais de Northport que contém anotações de vários cadernos, de 1961 e 1966.

Para ler os haicais vamos na ponta dos pés, cumprindo com o autor o mesmo rito de sutilezas que permeia sua produção. Alguns poemas chamam a atenção por peculiaridades estilísticas, imagens, intertextualidades. Claro que este exercício daria também um caderno. Mas limitamos o espaço para tratar também do efêmero desses flagrantes poéticos. Aqui e ali, saltam traços de religiosidade, espiritualidade, transcendência enfim, como não poderia deixar de ser em Kerouac:

Linda noite de verão
Gloriosa como as vestes
De Jesus

Gaivota navegando
No céu de açafrão –
O Espírito Santo quis assim

Há ainda poemas especialmente fotográficos:

Delicadamente dependurada
a Folha de Outono
Quase cai do galho

O pássaro pousou no galho
– dançou três vezes –
E sumiu

Há referências a sapos, sempre lembrando Bashô, e intertextualidades como neste haicai que nos remete a Rimbaud em “Por delicadeza/ perdi minha vida” (Canção da Mais Alta Torre) que em Kerouac aparece assim:

As papoulas! –
eu poderia morrer agora
por delicadeza

Também aparece bastante a solidão como tema. Mas como em Bashô, no termo identificado como “sabi”, a solidão vem acompanhada de tranquilidade, uma espécie de quietude transcendental que é também o caminho do poeta. Em Kerouac, a solidão vem assim:

Louco para me sentar em uma pilha de feno,
escrevendo haicais
Bebendo vinho

Ou ainda:

Aurora – o escritor que
não fez a barba
Debruçado sobre anotações

Claudio Willer traduziu os haicais de Kerouac: intimidade com a literatura beat

Já nos haicais americanos que denominou Pops, é interessante observar como ele toma flagrantes do cotidiano urbano para escrever poemas que apontam para outras paisagens:
Olhando para cima para ver
o aeroplano
Só vi a antena da TV

Concatenação! –
a bicicleta puxa o vagão
Porque a corda está amarrada

Numa categoria que poderíamos chamar “haicai beat”, percebe-se ainda o inquieto autor de On The Road saltando de um lugar a outro, de uma cidade a outra, sem largar o caderno de anotações que é, afinal, seu registro de passagens pelo mundo. Viagens, climas, mergulhos, poemas. De Nova York a Berkeley, de Oklahoma a Carolina do Norte ele traz para o ocidente o estilo milenar de escrever movido pelo efêmero, pelo circunstancial e, no entanto, eterno por aquilo que nos toca pela intimidade cósmica e atemporal, pelo pertencimento a um inesgotável universo de linguagem, ritmos e sons. Destaca-se ainda a tradução de Claudio Willer que coloca em evidência a linguagem coloquial que nos aproxima , por exemplo, da paisagem dos quintais:

Frutinhas e mais frutinhas
o esquilo
Na grama

“Frutinhas e mais frutinhas” figurando o que no original está como blubberry (mirtilo) e dubberry (fruta-pão). Ah! frutinhas, muito mais coloquial nos remetendo à infância.
O poeta Gary Snyder é também lembrado em alguns momentos. O zen-budista que apresentou o haicai aos outros beats é o amigo e, ao mesmo tempo, representa o próprio gênero que chega a Kerouac vindo do outro lado do mundo :

Gary Snyder
é um haicai
bem longe

O Livro de Haicais é mais um exemplo da versatilidade de um grande autor, um apanhado de imagens que chegam por satélite. Rápidas, certeiras, elas parecem mostrar Keroauc na Golden Gate celebrando no poente o sol nascente em centenas de poemas.

(Por Célia Musilli, da Rede CartaCampinas)

* Livro dos Haicais de Jack Keroauc, tradução de Claudio Willer. Editora L&PM, edição bilíngue, 300 páginas, R$ 42,00

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