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Por Guilherme Boneto
Eu teria mil argumentos e mil problematizações a fazer a respeito da aprovação do Estatuto da Família, ontem, na Comissão Especial do Estatuto da Família da Câmara dos Deputados. Dizem uns que, por conta da atuação de parlamentares progressistas como Érika Kokay (PT-DF), novas análises deverão ser feitas na semana que vem e o “projeto” pode ainda passar pelo plenário da Câmara. Já outros alertam para a possibilidade de o estatuto seguir direto para a apreciação no Senado Federal. Os trâmites do poder legislativo são mesmo inacessíveis e de difícil compreensão, mas o próximo passo do “estatuto”, na verdade, não importa tanto no momento.

Curioso notar que o Brasil de 2015 é um país que segue cheio de contradições, como sempre foi, mas agora com um agravante: a hipocrisia passou a ser escancarada, e os hipócritas se orgulham muito dela. Este é o país no qual bandidos da pior categoria lutam para depor uma presidenta honesta e eleita democraticamente, tudo em nome da “ética”; é o país cujos parlamentares desejam dar poder de ação direta de inconstitucionalidade às igrejas evangélicas, para que possam contestar tudo o que vá contra suas crenças e desejos; um país que concede um prêmio de excelência na gestão hídrica ao governador de um Estado à beira do colapso em seus mais importantes mananciais, que vê empresas indo embora e desespera parte de sua população por conta da falta d´água. Que poderíamos esperar?

Especialmente, somos hipócritas a ponto de aprovar em pleno século XXI um “estatuto” que restringe o conceito de família à união entre um homem, uma mulher e seus filhos. Que os deputados já não acompanham a realidade do Brasil há muito tempo, já era sabido. E digo mais: diante da composição hediondamente conservadora do Congresso Nacional, esse tipo de medida era mais que esperada. Caso prossiga ao Senado e também seja aprovado por lá, o que não seria de duvidar, deverá o “projeto” passar pela sanção da presidenta Dilma Rousseff? Um novo veto, bem como o que acaba de promover a presidenta no que diz respeito à lei que constitucionalizaria o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, já faria valer a pena o nosso voto em Dilma nas eleições de 2014.

Quero apenas refrescar algumas memórias com esta minha modesta contribuição. A começar pelos parlamentares que votaram a favor do “estatuto”, embora não creio que me darão inenarrável prazer de ler este artigo. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu as uniões homossexuais – que são o alvo principal do “projeto” – como entidade familiar, em maio de 2011. Em maio de 2013, o poder judiciário foi além e determinou, por meio do Conselho Nacional de Justiça, que o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo poderia ser realizado no Brasil, sem impedimentos. Isso porque o reconhecimento de casais homoafetivos como unidade familiar liberou a possibilidade de se lavrar em cartório uma escritura pública de união estável, e esta dá direito a posterior conversão em casamento. Entre 2011 e 2013, portanto, a Justiça deu a centenas de casais homossexuais o status de “casados”, porque estes solicitaram a conversão da união estável em casamento, e o movimento do CNJ em favor da legalização do casamento civil foi apenas uma consequência da decisão do STF em 2011. Como já ocorreu em vários outros temas, a justiça se dedica a preencher as omissões do poder legislativo e decidir a favor de assuntos importantes no país.

Ocorre que o Congresso Nacional se sente ofendido com os posicionamentos da justiça e com a iniciativa desta em oferecer cidadania à população que é tradicionalmente marginalizada. O Estatuto da Família, uma aberração sob todos os pontos de vista republicanos, é apenas um reflexo direto disso. Então os nossos nobres parlamentares, reunidos sob unção divina e com a clareza das leis bíblicas, se reúnem em comissão para discutir que eu e você não podemos constituir família, enquanto o cenário político do país pega fogo e a crise econômica se agrava. E uma vez vendo aprovada a aberração que pariram, festejam. E riem, da minha cara e da sua, que pagamos para que eles estejam em Brasília nos ofendendo e fazendo micagens para que o mundo todo ria do Brasil e do nosso atraso em tudo o que margeia os direitos civis.

Mas eu, como bom pagador de impostos, tenho uma novidade aos parlamentares que aprovaram e aos que apoiam o Estatuto da Família. A população LGBT não está mais disposta a aceitar calada esse tipo de insulto. Nós não retornaremos ao armário. Nossas famílias existirão, na prática e do ponto de vista jurídico, inclusive. Vocês não têm sequer a mais pálida ideia do que seja, na prática, uma família de verdade, para querer legislar sobre a vida privada das pessoas. Nossos representantes também estão no Congresso e honram as raízes democráticas da casa, nomes como a já citada Érika Kokay, Ivan Valente (PSOL-SP), Jean Wyllys (PSOL-RJ), Chico Alencar (PSOL-RJ), Maria do Rosário (PT-RS), homens e mulheres com visão republicana o suficiente para barrar esse tipo de absurdo. E se as nossas vozes na câmara não forem suficientes, iremos ao STF, à rua e onde mais for preciso. Vocês não vão mais tirar a nossa cidadania, não vão mais fazer troça das nossas vidas em público, porque vocês são pagos com o nosso dinheiro, e este não vale menos do que o dinheiro das famílias que vocês valorizam. Nós não vamos permitir.

Tudo parece ser válido no Brasil, que se torna cada dia mais a terra do absurdo. Quisera Deus que esse congresso que aí está fosse didático o suficiente para não ser mais eleito para futuras legislaturas, quisera que a população acompanhasse e repudiasse esse tipo de atitude hedionda, mas não creio que seja o caso. Podemos ser poucos ou muitos, mas faremos barulho, e esses lindos não vão tornar bíblica a constituição que homens e mulheres verdadeiramente democratas deram duro para construir, alguns pagando inclusive com a própria vida. Mais que atestar a existência de nossas famílias, estamos dispostos a mostrar que somos, também, cidadãos.