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A vida como engasgo, a morte como sopro

(foto ivan cuesta -pxl)

Por: Lilian Oliveira,
Psicanalista atravessada pela escrita

“Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade’’, Michel de Montaigne. Citação que me deparei logo no início do livro de Bregalanti, Luto e trauma: testemunhar a perda, sonhar a morte, o qual inicie no fim de semana. Essa frase me causou certo desassossego. Mas, ficou ali, ‘esquecida’ momentaneamente e estrategicamente, sob o pretexto do fim de semana. O que se diga de passagem, sabemos muito bem como deixar nossos mecanismos de defesa tinindo! Para estar ali, sempre pronto para dar ‘sumiço’ ao que nos apoquenta as ideias, como se diz por aí.

A morte é assunto indigesto para mim; é aquilo que me fica atravessado, entalado na garganta. Tive muitas perdas em um espaço de tempo muito curto, absurdamente inapropriado – não que exista apropriado – para um psiquismo dar conta. Se um trabalho desse exige um dispêndio gigantesco de energia, imagine isso elevado ao cubo?!

Isso me referindo aos lutos pelas perdas de pessoas queridas. Nem me atrevo aqui iniciar os infindáveis pequenos lutos que se desdobram desses, mais os cotidianos que vamos fazendo ao longo dos dias e anos. Nascer, crescer, envelhecer, adoecer, ou seja, viver é aprender – ter que – a fazer luto. Isso seria assunto infinito e haja caracteres para digitar. A escuta clínica estas diariamente às voltas questões relacionadas as perdas, todos perdemos sempre, algo ou alguém, e em muitas vezes, perdemos a nós mesmas(os/es). Enfim, depois da digressão, volto o foco para dizer o que me atravessou e que movimentou essa escrita.

Ontem, segunda-feira, aniversário do cunhado. Saímos em família para comemorar, celebrar mais um ano de vida; aquele um ano que aconteceu e o ano imaginário que se inicia. Tudo correndo relativamente bem, risos, comidas, histórias, bebidas, piadas, estresses e estranhamentos ‘infamiliares’, tudo de praxe em uma reunião familiar. De repente, em um segundo tudo parou! O silêncio, o desespero e o clássico paralisar de algumas pessoas diante da iminência da morte. Foi tudo muito rápido, mas a mim pareceu uma eternidade.

A cena: minha irmã se levanta bruscamente, levantando meu cunhado pelo braço. Olho para ela tentando entender a situação. Ela começa a bater nas costas dele. Imediatamente desvio o olhar para o rosto dele. Meu cérebro entendeu de pronto. Pronto! Todos os meus ‘instintos’ foram acionados. Ele estava engasgado como o rosto transtornado pelo desespero e pela falta de ar.

Me levanto num salto estou atrás dele fazendo a manobra – graças ao aprendizado de primeiros socorros – para desengasgá-lo. Eu entrei em modo de luta! Não sei de onde tirei tanta força física e emocional. Cada vez que eu o levantava tamanha era a força que eu fazia, eu conseguia olhar a cena que passava ao redor. O restaurante parece ter entrado em câmera lenta, as pessoas paradas sem entender, alguns se levantaram, mas não saíram do lugar. Repeti diversas vezes a manobra e nada acontecia, tudo ainda estava parado, principalmente o ar para ele. De repente senti o peso dele maior nos meus braços, percebi que ele iria desmaiar ao mesmo tempo que percebi e raciocinei que se ele desmaiasse, eu não conseguiria mais fazer a manobra. Nisso o desespero começa a me dominar, um medo dele não voltar a respirar. O que me remeteu a não ter salvado alguém muito importante nem a intubação e ventilação mecânica deram conta. Fantasmas que ainda vão comigo a minhas sessões de analises.

Tudo isso, acontecendo simultaneamente entre minha ação e meus pensamentos. Então gritei “alguém forte!” – tipo, por favor, me socorram também. Junto com o grito, fiz uma última manobra. com tanta força que ele desengasgou do pedaço de mandioca. Quando percebi que ele puxou o ar fazendo um som desesperado de quem luta pela vida, fiquei aérea. Era surreal a cena ocorrida. Tudo foi muito rápido, mas na hora a percepção de tempo se torna confusa. Ele se sentou, abaixou a cabeça até conseguir se estabilizar. Quando o vi sentado, voltei ao meu lugar na mesa, caminhando como se eu estivesse no espaço, meu corpo todo tremia, a adrenalina e o cortisol ainda estavam trabalhando.

A sensação de morte estava lá de novo, me atravessando. Após um breve tempo de silêncio na mesa, todos foram voltando a falar, o humor fez da tragédia o cômico. Coisas comuns que fazemos como mecanismo de subterfúgio para dar conta em situações desconfortáveis. Tentamos transformar em engraçado aquilo que de nada tem de graça. Nem de humor, nem de ficar sem custo. Meu cunhado, não quis voltar a comer, ficou quieto, a fisionomia pesada. Mas, pense só o paradoxo, sair para comemorar o aniversário e a danada da morte querer soprar sua vela?

Depois de algum tempo depois de distrações, cantamos os parabéns – o mais estranho que já participei -. A música nem foi cantada inteira, algo aconteceu que parou na primeira parte. Eu o observava enquanto ele olhava fixamente para a vela enquanto cantávamos, com um olhar que nunca saberei o que se passava ali, mas, alguma coisa do brutal da vida se passava naquele olhar. No fim do parabéns cantado pela metade, ele pôde soprar sua vela. Cada um do seu jeito ali na mesa ficou assombrado com seus próprio fantasmas. E reagiu a eles como pôde.

Dizendo de mim, a situação me causou uma atualização de feridas traumáticas. E como na vida e na psicanálise dois mais dois pode ser cinco, esse será o assunto da minha análise essa semana. Os lutos nunca se fecham totalmente ou ficam resolvidos como problemas matemáticos. O luto é um processo sem garantias de ganho de causa. Mas, a movimentação que se faz a cada queixa, a cada acareação é a possibilidade de um destino outro para homologação da dor em tristeza. Um pesar que é possível sentir sem sofrer.

A vida é um constante engasgar, ficamos sufocados, entalados e lutamos para sobreviver. Cuspimos ou engolimos. Estamos prontos para outra. A morte é um sopro, não dá para cuspir ou engolir. É a última coisa. O sopro que deixa de acontecer. Em segundos não há mais nada do que reconhecíamos como vida.

A vida é a travessia que se faz, desse segundo; que pode durar horas, dias, meses e anos, décadas. Nunca saberemos, quanto tempo temos, e sinceramente não sei se isso é bom ou ruim. Penso que seja bom não saber, pois poderíamos perder algo. O que exatamente não sei. Parafraseando Rosa Monteiro, a morte como a ridícula ideia de nunca mais vermos, tocarmos, sentirmos o cheiro, ouvir o som da voz de alguém.

A vida é breve, e não se trata aqui de um aforismo de carpe diem. Em um segundo a vida acontece e se perde.

Carta Campinas

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