
Por Helén Freitas
Um processo disciplinar aberto para investigar a conduta de um professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) revela como uma importante entidade do agronegócio do Mato Grosso, principal polo produtor de grãos do país, atuou na realização de estudos científicos sobre os impactos causados pelo próprio setor.
Documentos obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil detalham como a Aprosoja-MT (Associação dos Produtores de Soja e Milho) participou diretamente de etapas cruciais de pesquisas sobre a exposição de trabalhadores rurais a dois agrotóxicos bastante populares: o glifosato e o paraquate.
Os estudos foram iniciados em 2016, quando a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) reavaliava a venda no mercado brasileiro dos dois herbicidas, amplamente usados no controle de plantas daninhas em lavouras. Naquele momento, ambos figuravam entre os dez agrotóxicos mais utilizados no país.
Além de financiar o projeto, a Aprosoja-MT acompanhou de perto todas as etapas das pesquisas. Depoimentos e documentos consultados pela reportagem revelam como a associação selecionou trabalhadores rurais para o estudo, indicou laboratórios responsáveis pela coleta de amostras de urina em campo e cuidou até da logística para envio do material à Unicamp.
No site da Aprosoja há uma notícia, publicada em 24/08/2018 (ainda visível) em que usa o nome da Unicamp no título e diz que uma pesquisa reconheceu que não havia traços de glifosato nos trabalhadores. A Aprosoja também está envolvida no financiamento da tentativa de golpe de Estado.
Em 2019, a Anvisa decidiu manter o glifosato em circulação, mas impôs mudanças na rotulagem e na classificação toxicológica, além de exigir novas medidas de segurança para o manuseio do herbicida.
Um ano antes, a Iarc (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer), órgão da Organização Mundial da Saúde, já havia classificado o glifosato como “provavelmente cancerígeno” para humanos. A substância também é associada ao desenvolvimento de doenças como depressão, Alzheimer e Parkinson.
Já o paraquate teve destino diferente. Em 2017, a Anvisa deu início ao processo de banimento do herbicida devido a riscos à saúde, incluindo possível relação com doenças neurodegenerativas, como o Parkinson. A decisão previa um período de transição, em que o agrotóxico ainda poderia ser utilizado, até a proibição definitiva a partir de 22 de setembro de 2020. Desde então, o registro do paraquate está cancelado no Brasil.
Foi durante o período de transição que associações do agronegócio organizaram uma força-tarefa para tentar reverter a decisão da Anvisa, argumentando que novas pesquisas poderiam comprovar a segurança do paraquate.
O principal estudo utilizado para embasar esse movimento era justamente o conduzido na Unicamp. No entanto, após denúncia da Repórter Brasil sobre conflito de interesses, a pesquisa foi suspensa pelo Comitê de Ética da universidade, em julho de 2020.
Cinco anos depois, a Repórter Brasil enfim teve acesso aos documentos do processo disciplinar, ainda em curso na universidade, sobre a conduta do professor Paulo César Pires Rosa. Atual coordenador da graduação em Farmácia, ele participou das pesquisas orientando uma aluna sobre os impactos do glifosato e do paraquate na saúde de trabalhadores rurais.
Os arquivos revelam também como a Aprosoja-MT atuou de cabo a rabo nos estudos, encomendados na tentativa de manter a comercialização dos agrotóxicos no país. Uma das principais representantes do agro nacional, a entidade já foi dirigida por produtores investigados por envolvimento com os atos golpistas de 08 de janeiro de 2023.
Procurada, a assessoria de imprensa da Aprosoja-MT não se posicionou até o fechamento desta reportagem.
Unicamp analisa se atuação de professor em instituto de pesquisa foi irregular
A rigor, o processo disciplinar tem como objetivo avaliar se o professor Paulo César Pires Rosa teria quebrado seu contrato de dedicação exclusiva à Unicamp, ao prestar serviços ao Inpes (Instituto de Pesquisas e Educação em Saúde), entidade criada por um docente aposentado da Unicamp. O Inpes foi o responsável por angariar os recursos para o estudo sobre a presença de paraquate no organismo de trabalhadores rurais do Mato Grosso.
Em 2023, após três anos de investigação, uma comissão da Unicamp concluiu que Rosa teria atuado sem autorização como diretor científico do Inpes, entre 2018 e 2020. Além de uma suspensão de 15 dias, o parecer do órgão recomendou a devolução aos cofres da universidade de parte do salário recebido pelo docente no período. Segundo cálculos feito pela reportagem, o valor pode chegar a R$ 200 mil.
Ainda de acordo com o relatório da comissão, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas recebeu uma proposta de convênio para realização dos estudos, com financiamento da Aprosoja-MT e intermediação do Inpes. O projeto chegou a ser aprovado pela Comissão de Pesquisa e Extensão, mas acabou vetado pela Comissão de Governança. Por essa razão, nunca foi efetivamente formalizado. Mesmo assim, a pesquisa seguiu em frente, até ser barrada em julho de 2020, após matéria da Repórter Brasil.
Durante a apuração, Rosa também foi investigado por uma possível utilização indevida da infraestrutura da universidade para as pesquisas sobre os agrotóxicos. A comissão, no entanto, concluiu que não havia provas de uso irregular dos laboratórios, nem de pagamentos diretos da Aprosoja-MT ao professor.
As amostras de urina coletadas dos trabalhadores rurais do Mato Grosso permanecem lacradas e armazenadas nas dependências da universidade, de acordo com a assessoria de imprensa da Unicamp. “Não há nenhuma possibilidade de retomada da pesquisa”, informou por telefone um coordenador de comunicação da universidade.
Atualmente, o caso está sob análise do Conselho Universitário, instância máxima da instituição. Durante reunião do órgão realizada em abril deste ano e disponível no Youtube, Fernanda Silvado, procuradora-chefe da Unicamp, disse haver “um claro conflito de interesses na pesquisa”. Em sua avaliação, a Aprosoja-MT era “financiadora e interessada na pesquisa, e ela também escolhia os trabalhadores, os laboratórios que faziam as análises clínicas das amostras”.
Ao longo do processo disciplinar, Rosa sempre negou quaisquer irregularidades. Por Whatsapp, o professor afirmou à reportagem que não era o responsável pelos estudos, embora tenha atuado para captar com entidades públicas de fomento à pesquisa cerca de R$ 67 mil em bolsas de mestrado e doutorado, dentre outros recursos, segundo relatório de atividades encaminhado por ele próprio à universidade.
“As pesquisas não foram sobre [sic] minha coordenação, era do prof Ângelo”, informou Rosa na troca de mensagens por Whatsapp, em referência a Ângelo Trapé, médico, ex-professor da Unicamp e fundador do Inpes — o instituto responsável pela intermediação da pesquisa sobre o paraquate, em 2018.
Procurada, a assessoria de imprensa da reitoria da Unicamp afirmou que “o ex-professor Ângelo Trapé se aposentou em 2017 e, desde então, não possui vínculo formal com a universidade”. Trapé não respondeu ao pedido de entrevista.
Rosa inicialmente respondeu à reportagem por Whatsapp, mas depois preferiu não conceder entrevista. Seus advogados, no entanto, enviaram uma nota.
“Como o processo disciplinar ainda está em andamento, entendemos que não é o momento adequado para manifestação em matéria jornalística, a fim de não comprometer a imparcialidade dos julgadores e publicizar uma situação que está sendo devidamente apurada pelos órgãos competentes, a Universidade”, diz o texto.
Os advogados ainda afirmaram que vão solicitar apuração pelos órgãos competentes sobre os documentos obtidos pela Repórter Brasil. “Entendemos que houve o vazamento de informações que são consideradas sigilosas, e protegidas pela Lei Geral de Proteção de Dados”, prossegue o texto. Leia a resposta na íntegra. (Veja reportagem completa do Repórter Brasil aqui)
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