
.Por Luiz Carlos R. Borges.
Nas páginas iniciais de seu estudo já tornado clássico “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, o pensador alemão Walter Benjamin observava, a propósito do advento da fotografia: “Com ela, pela primeira vez, no tocante à reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essenciais que, daí em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva”. A obra de arte teria, então, perdido o seu status de “objeto único”.
É exatamente sobre fotografia o livro mais recente publicado por Dayz Peixoto Fonseca.
Conheci Dayz ainda nos idos da década de 1960, ao ingressar no curso de Direito da Universidade Católica. Foi no território da Universidade, palco de intensas conversas e discussões sobre os temas que marcaram todo aquele período histórico que, sob o impulso e a inspiração de Dayz (e ainda num contexto cultural em que pontificavam a pujança do cinema europeu e japonês e a energia do movimento do Cinema Novo), um grupo de estudantes deliberou fundar o Cine-Clube Universitário de Campinas.
O coroamento da intensa atividade desenvolvida pelo grupo, entre debates, sessões de filmes de arte e a edição de um jornal, deu-se com a realização do curta-metragem “Um pedreiro”, direção da Dayz, com o imprescindível aparato técnico a cargo de outra figura histórica: Henrique de Oliveira Júnior.
Já naquele tempo, portanto, se pronunciava o pendor irresistível da Dayz para o estudo e o cultivo da imagem, das artes visuais em geral, o que se confirmaria nos anos seguintes. Foi o caso do trabalho, por ela desenvolvido, de resgate do Grupo Vanguarda, instaurado na década de 1950 visando introduzir conceitos estéticos da modernidade e da contemporaneidade às artes plásticas em Campinas, movimento em que se revelaram nomes hoje icônicos, como Thomaz Perina, Raul Porto, Francisco Biojone e tantos outros. O primeiro ainda seria o tema de outra obra de sua coautoria: “Thomaz Perina – Pintura e Poética”, de 2005.
Ao mesmo tempo voltava sua atenção para Hércules Florence. Vindo da França, tendo desembarcado no Rio de Janeiro, Florence de imediato se dispôs a participar da “Expedição Langsdorff”, que desde Porto Feliz (SP) viria a percorrer o interior profundo do País; ao retornar, acabou se radicando em Campinas, onde foi tipógrafo, precursor da invenção da fotografia, educador, partícipe do movimento liberal de 1842…. A esta figura ímpar Dayz dedicou o belo livro “O Viajante Hércules Florence – águas, guanás e guaranás” (2008), ilustrado com excertos do livro de bordo registrado por Florence ao longo daquela “Expedição” e reproduções de seus desenhos e aquarelas focalizando indígenas, pássaros, paisagens.
Coerente com seu interesse intelectual pelo universo imagístico, também há décadas passou Dayz a efetuar pesquisas em torno da obra fotográfica de outro imigrante, este originário da Áustria e que veio a desembarcar em Campinas na década de 1950, aqui montando o seu estúdio fotográfico: Victor Fiegert. Foram longos anos de coleta de material, leituras, entrevistas (especialmente com Ariovaldo dos Santos, que teve a oportunidade de conviver com o fotógrafo e testemunhar seu modo de trabalho), que finalmente afloraram na magnífica edição de “Victor Fiegert – Um fotógrafo austríaco no Brasil”, pela Editora Pontes, no final do ano passado.
Trata-se de obra que se agrega ao conjunto dos mais expressivos trabalhos intelectuais que se empenham na reconstrução da obra e memória de campineiros ilustres (inclusive daqueles que, “forasteiros”, vindos de outras plagas, deliberaram fixar-se em nossa cidade, adotaram-na como seu lugar de eleição e aqui desenvolveram com plenitude a sua atividade, a sua missão).
Tendo-se firmado sobretudo como retratista, na fixação das imagens de famílias campineiras, Fiegert é focalizado no livro sob os mais diversos ângulos, em sua biografia, em sua inserção no contexto da cidade e de seus grupos sociais e culturais (conviveu e interagiu inclusive com o pessoal do Grupo Vanguarda), de modo que a obra assume um alcance simultaneamente histórico, documental, memorialístico e, especialmente, estético.
Esse último enfoque representa-se pelo próprio conteúdo iconográfico do livro, pela profusa reprodução dos retratos que ele produziu como verdadeiro artesão. Mas também pela certeira pertinência com que Dayz escreve e analisa o modo de produção do artista (“Poética do Retrato”). Que não se limitava às tarefas preliminares de preparação da pessoa ou grupo a ser retratado, bem como do cenário, da ambientação, do entorno, dos elementos de fundo. Fiegert ia ao além, ao “depois”. Era no estúdio, na câmera escura, na sala de revelação que consumava a sua arte: intervinha na imagem captada pela máquina e, mediante os procedimentos técnicos e químicos à disposição, mas movido sobretudo por seu senso artístico, por sua sensibilidade, cuidava de introduzir, no material fotografado, minuciosos retoques finais, tons mais intensos de luz ou sombra, inclusive sobre as fisionomias, por esses meios fazendo aflorar o esplendor oculto da figura humana.
Era como se o fotógrafo procurasse recuperar a perdida aura do objeto único, terminando por autenticá-lo com sua assinatura, a conferir à obra a marca de sua indeclinável autoria e personalidade.
Luiz Carlos Ribeiro Borges. Nascido em Guaraci/SP, mudou-se para Campinas, graduou-se em Direito na PUC- Campinas e na década de 1960 participou da fundação do Cine Clube Universitário de Campinas. Foi Juiz Titular da 4ª. Vara Cível da Justiça Estadual de Campinas, Estado de São Paulo, e, com o fluir do tempo foi promovido para a Comarca de São Paulo, onde assumiu uma Vara da Infância e Juventude e, posteriormente, elevado a Juiz do hoje extinto 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, onde se aposentou. Foi Vice-Presidente do CCLA – Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas e curador de sua biblioteca. Autor de inúmeros livros: O Cinema à Margem, 1984; Gilvaz, 1997; Café do Povo, 2002; Assembleia de Micróbios & Eurico o mordomo, 2016, Crônica de Bernartz & Bertran, 2021, entre outros.
Luiz Carlos R. Borges é membro afetivo e emérito da Academia Campinense de Letras.
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