O juiz Leonardo Tocchetto Pauperio, do Tribunal Regional Federal 1 (TRF1), acolheu a argumentação da ex-ministra e senadora Damares Alves (Republicanos-DF), e concedeu liminar que suspende a resolução com diretrizes quanto ao atendimento a menores de idade vítimas de violência sexual em casos de aborto previsto em lei.

A resolução foi tomada Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e aprovada na segunda-feira, 23 de dezembro, por 15 votos a 13, estes últimos de autoridades do governo federal. Os votos favoráveis foram de representantes de entidades da sociedade civil que compõem o órgão, presidido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).

Damares Alves é ex-ministra do governo Bolsonaro, investigado por tentar executar um golpe de Estado para se perpetuar no poder, e também é a ex-ministra que afirmou ter alertado Jesus Cristo para não subir no pé de goiabeira.

Ela já se envolveu em ações grotescas em que pressionava para que uma criança violentada fosse obrigada a manter a gravidez. O caso aconteceu em 2020. Enquanto ministra, ela mobilizou apoiadores seus e de Jair Bolsonaro a fazerem protestos em frente ao hospital onde uma menina de apenas 10 anos faria um aborto legal, após engravidar de seu estuprador, um tio seu. A criança havia sofrido uma série de violações desde os 6 anos de idade e sofreu mais essa violência patrocinada pela ex-ministra.

Na pedido à Justiça, Damares afirmou que a resolução aprovada não definiu o limite de tempo gestacional para realização do aborto legal e que o Conanda estabeleceu que a vontade da criança ou adolescente gestante deveria prevalecer sobre a de seus pais ou responsáveis legais, quando não concordasse com eles. Para Damares, isso provocaria “relevante clamor social (SIC)”.

Assumidamente conservadora e pertencente à direita fundamentalista que coloca a própria interpretação da Bíblia acima da Constituição, a ex-titular do Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos também mencionou os pedidos de vistas e de adiamento das discussões dentro do Conanda para justificar a derrubada da resolução. O magistrado Tocchetto Pauperio escreveu, em resposta ao pedido de Damares, que “o pedido de vistas é um direito ao mesmo tempo que um dever, pois refere-se diretamente à aplicação de política pública de grande relevância social”, como é o caso do aborto legal de menores de idade.

Tocchetto Pauperio classificou a resolução como ilegal e acrescentou que sua decisão tem por objetivo evitar que fosse publicada no Diário Oficial da União até que haja desfecho sobre a questão central.

Na decisão também, o juiz apresenta uma visão equivocada sobre o tema, em consonância com a direita fundamentalista. Ele afirma que não entende “razoável colocar em risco uma infinidade de menores gestantes vítimas de violência sexual (SIC), mormente nessa época do ano, sem que haja a ampla deliberação de tão relevante política pública que, reforço, foi aparentemente tolhida com a negativa do pedido de vistas pelo Conselheiro representante da Casa Civil da Presidência da República”, escreveu o magistrado.

Agora, com a liminar, o Conanda tem até dez dias para prestar informações, conforme destacado no despacho que detalha a concessão da medida.

A conselheira do Conanda Deila Martins, que faz parte da mesa diretora, afirma que o juiz responsável pela decisão diz que a resolução coloca as vítimas em risco. “Para nós, o que as coloca em risco é, com a suspensão da resolução, serem privadas de um atendimento e de terem seus direitos respeitados e obrigá-las a parir e se aliar a uma direita fundamentalista para impedir os direitos de quem já sofreu com violência sexual”, acrescenta.

Em postagem que circula nas redes sociais e em documento encaminhado à imprensa, as entidades integrantes do Conanda defendem que a aprovação aconteceu de modo democrático e que não se deve desprezar o que é deliberado de maneira coletiva, com a participação social. O principal ponto frisado é que “a resolução não inova o direito ao aborto legal, previsto no Código Penal desde 1940, apenas detalha o fluxo para garantir os direitos das crianças e adolescentes, protegendo-as da violência e violação de direitos”. A legislação brasileira assegura esse direito em três casos: quando a gravidez representa risco à mãe ou foi fruto de um estupro e em casos de anencefalia do feto.

As organizações se dizem “indignadas”, sobretudo por se tratar de um período de retomada da cultura democrática. Segundo os representantes da sociedade civil, o teor da resolução tem sido debatido desde setembro deste ano, em inúmeras reuniões, às quais compareceram especialistas, além dos conselheiros, e que houve, inclusive, uma comissão específica para coordenar esse trabalho.

Uma reação bastante vista na internet foi a de subir hashtags como “#estupradornãoépai e #criançanãoémãe”, além da disseminação de opiniões que apontam ser contraditório colocar crianças e adolescentes como incapazes de optar por fazer o procedimento abortivo legal e, ao mesmo tempo, considerá-las prontas para encarar os processos de gestação, maternidade e, eventualmente, entrega de seu filho ou filha à adoção.

No Brasil, a maioria (67%) dos 69.418 estupros cometidos entre 2015 e 2019 tiveram como vítimas meninas com idade entre 10 e 14 anos. Por ano, 11.607 partos são consequência de violência sexual praticada contra meninas menores de 14 anos de idade. (Com informações de reportagem de Letycia Bond da Agência Brasil)