(foto: reprodução vídeo)

O fenômeno da ascensão da extrema direita no Brasil nos últimos anos já suscitou extensos debates e mobilizou a atenção de pesquisadores que se debruçam sobre o tema para explicar a aderência de uma parcela significativa da população. Para o sociólogo, professor e pesquisador Michel Gherman, esse movimento não tem a ver com ideologia, mas com a gramática, com a linguagem. Parte da criação de uma língua, de um idioma da extrema direita que explora, mais do que uma forma de pensar, uma maneira de sentir o mundo, de despertar emoções.

Essa é a ideia central do documentário “Decodificando a Extrema Direita”, com lançamento nacional nesta quinta-feira (10) durante a abertura da ação Redes de Formação em Cultura Digital, do Laboratório de Inovação Cidadã (Labic) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Produzida por Gherman junto a estudantes da UFRJ e PUC-Rio, em parceria com o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ), da UFRJ, a obra mostra, a partir de uma análise sociológica e linguística, como essa “gramática da extrema direita” tem sido estratégica para disseminar discursos de ódio e cooptar grupos mais populares e conservadores no Brasil.

“A intenção da pesquisa e do documentário foi promover uma tradução dessa nova linguagem de ódio e ressentimento, que ocupam setores da política local e nacional. Nossas pesquisas apontam para a ideia de que a política brasileira foi dominada e colonizada por uma estratégia conceitual comunicativa”, diz Gherman.

Esse vocabulário, explica o sociólogo no documentário, atribui um uso político a determinadas palavras, que têm um significado histórico, mas são ressignificadas. Um exemplo, fundamentalismo, entendido não como uma ideia de sectarismo e fanatismo, mas como a defesa de “fundamentos”, de valores. Outros exemplos: liberdade de expressão e censura.

“As palavras são as mesmas. O que muda é a capacidade de compreensão dos significados e o uso político, perpassado por medo, ódio e outras emoções fundamentais para a construção de uma nova extrema direita. Palavras conhecidas e usadas por gerações são usadas a partir de novas perspectivas”, afirma o pesquisador.

Direta e cruel

O sociólogo ressalta que essa linguagem é “direta e cruel”, “recheada de paixão da morte”, não admite metáforas, sofisticação: “É preciso que eu diga diretamente o que eu quero, porque o que eu quero é a destruição e a sinalização de quem é o inimigo. É uma linguagem da guerra, da milícia. A linguagem da extrema direita é o falo, é a conquista”.

Para ilustrar os percursos da pesquisa, o documentário traz uma série de vídeos que serviram de material para a análise, extraídos de discursos, entrevistas e postagens na internet. Neles, fica claro quem são esses inimigos: a esquerda, os progressistas, o PT, o STF, feministas, antirracistas, aqueles que defendem os direitos dos povos indígenas, quilombolas…

Mesmo o humor serve a esse propósito, é “arma de guerra”, seja nos memes, uma forma de propaganda política, ou nos trocadilhos de cunho sexual, muito usados nos discursos Jair Bolsonaro. E, quando esse humor gera reações de indignação, sob o argumento de machismo ou racismo, é “mimimi”, outra palavra incorporada pelo discurso extremista da direita, alimentado especialmente por Bolsonaro e Olavo de Carvalho, disseminando expressões como “ideologia de gênero”, “marxismo cultural”, entre tantos outros.

Letramento

Seja nos memes ou nas falas, essa linguagem, de acordo com Gherman, tem como foco dois alvos: a comunicação com os grupos já convertidos e um projeto de letramento, ou seja, a alfabetização de um número cada vez maior de pessoas nessa nova língua, fazendo com que esses termos sejam conhecidos.

Para ficar em apenas um exemplo, o discurso do ainda deputado federal Bolsonaro no Congresso sobre o “kit gay”, retomado novamente na campanha para as eleições de 2018. Pesquisa divulgada em novembro daquele ano pela Ideia Big Data/Avaaz mostrou que 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram que Fernando Haddad (PT) distribuiu o kit para crianças em escolas quando era ministro da Educação.

Essa lógica também se aplica nas críticas a Paulo Freire, que defendia a autonomia das crianças, acusado, assim como os professores em geral, de doutrinação, em contraposição à ideia de que crianças são vítimas, “anjos” que precisam ser “salvos”. Nos ataques ainda ao Padre Júlio Lancellotti, acusado de comunista.

Da mesma maneira que esses discursos estabelecem o pânico moral e criam inimigos, forjam heróis: como o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, combatente do que consideram o mal maior, o comunismo, ou o Estado de Israel, visto, segundo o pesquisador Gabriel Mizrahi, como o “paraíso da extrema direita”, um “país branco, armado ultracapitalista e rico”, a partir de uma visão distanciada de suas contradições e dimensões históricas.

Nesse contexto, as redes sociais e os grupos em aplicativos como WhatsApp e Telegram têm um papel importante na disseminação dessas ideias e letramento, com a divulgação massiva de narrativas conspiracionistas e negacionistas, trazendo respostas simples para questões complexas, como destaca no documentário uma das pesquisadoras que participaram do estudo.

Passado ideal

Assim, as transformações aceleradas pelas quais passam o Brasil e o Mundo, dos avanços sociais às questões que se referem ao comportamento e costumes e até as mudanças climáticas, entre outras, são atribuídas a esses “inimigos”, sustentando uma narrativa de um passado ideal corrompido.

“A acusação de que a esquerda e os progressistas estão mudando o mundo radicalmente é uma acusação mentirosa, mas ao mesmo tempo, efetivamente, o desejo da esquerda progressista democrata é mudar o mundo. A acusação é falsa, mas o resultado dessa acusação pode se transformar em verdade. Quando os progressistas propõem a mudança para uma coisa que você não conhece, isso produz medo, raiva e ódio”, afirma o sociólogo.

8 de janeiro

Esse discurso calcado na intolerância, de acordo com os pesquisadores, alimenta o sentimento de que é preciso se mobilizar para combater essas forças consideradas do mal e eliminar os que são tidos como inimigos, não pelas urnas, de forma democrática, mas de forma violenta. Seja assassinando o aniversariante que fez uma festa temática homenageando Lula – “Vamos metralhar a petralhada”, convocou Bolsonaro publicamente -, seja na invasão de sedes do poder.

“O 8 de janeiro é produto de desesperança, percepção de roubo e medo, de pânico moral”, avalia Gherman. Ainda hoje, mais de um ano depois, o 8 de janeiro é considerado uma tentativa de “salvação” pelos extremistas, como aponta o monitoramento feito pelos pesquisadores.

Neutralização e utopia

E como se contrapor a esse movimento? Para Gherman, é essencial entender essa língua da extrema direita e desenvolver um “letramento democrático”, que neutralize esses discursos, promovendo valores de vida, celebração de direitos e igualdade, em oposição à retórica da morte propagada pela extrema direita. Ao mesmo tempo, criar um projeto de futuro.

“A direita conseguiu nos vencer porque ela conseguiu uma utopia, uma utopia que é distópica, mas funciona como organizador da perspectiva do mundo a partir de um projeto”, analisa no documentário. “A gente precisa escolher um projeto para nós e esse projeto tem que estar vinculado aos nosso valores: vida, distribuição de renda, combate à desigualdade, à violência, à discriminação. A gente precisa não só produzir uma alfabetização, mas produzir um projeto de utopia”, conclui.