Detalhe da capa do suplemento Folhetim, 3 de agosto de 1980 (foto: Folha de S.Paulo/Reprodução)
Em 11 de novembro de 1970, durante a ditadura militar, o general Emílio Garrastazu Médici, então presidente do Brasil, recebeu no Palácio do Planalto uma comitiva de estudantes das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo. Entre perguntas sobre futebol e entrega de presentes, o general foi informado de que a universidade estava preparando “um simpósio sobre os problemas do tóxico”. Foi a deixa para que Médici manifestasse a preocupação do seu governo com essa questão: “Não se trata apenas de combater o tráfico de entorpecentes. Antes de mais nada, é preciso acabar com o vício. E esta não será uma tarefa fácil”.
Seguiu-se o silêncio e o grupo logo mudou de assunto. Mas estavam dados os delineamentos de como a ditadura militar entendia o uso de drogas, percebido como uma mancha social característica de pobres e jovens. É a partir da repressão a esses grupos sociais que o regime combatia as drogas e, ainda, uma contracultura, como sugere uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PGSocio) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Com base em 51 matérias jornalísticas da Folha de S.Paulo publicadas entre abril de 1964 e março de 1985, o pesquisador Júlio César Rigoni Filho procurou entender quais foram as representações sociais sobre o uso de drogas e a política pública sobre o tema. Dessa forma, foi traçada uma dinâmica que mostra como a política de criminalização se somou a uma visão do uso de drogas como patologia também tratável com segregação social.
Universidades sob vigilância
Essa ordem das coisas tinha focos específicos, sendo um deles a juventude — para usar uma expressão do general Médici — e ambientes onde ela se reunia, especialmente os de educação – escolas e universidades. Segundo Rigoni Filho, durante a ditadura a repressão às drogas parece ter contribuído com a repressão à “subversão” para justificar ainda mais a presença do governo nos espaços universitários.
“Em relação às universidades, havia uma lógica de vigilância, muitas vezes apoiada pelas próprias instituições, a fim de combater o comunismo e ideias que desviassem os jovens. Os jovens dessa juventude burguesa eram considerados potenciais subversivos e mereciam atenção para não serem corrompidos”, diz o pesquisador à Ciência UFPR.
Durante a ditadura, o ensino superior era mais excludente no Brasil, portanto os espaços acadêmicos eram território das classes mais altas. As drogas foram apresentadas pelos governos da época como uma das ameaças a serem combatidas nesses espaços, juntamente com as ideias políticas “antagônicas” que já estavam criminalizadas pelas diversas versões da Lei de Segurança Nacional (LSN).
Inimigos do Brasil e da segurança nacional
A pesquisa sugere que a mídia ajudou a reforçar a relevância dessa postura. No caso da Folha, o uso de drogas era mostrado como um tipo de subversão que leva à queda moral e social do indivíduo, que passa a se aproximar de condutas inadequadas como crimes e prostituição, tornando-se assim um inimigo do Brasil.
“A Folha destacava muitos casos de jovens de classe média que se envolviam com drogas, sejam usuários ou potenciais criminosos. Então, as discussões sobre drogas pareciam ser pouco baseadas em evidências concretas e mais opiniões difusas que, muitas vezes, geravam pânico e acendiam a opinião pública”, diz Rigoni Filho.
As representações sociais dos usuários de drogas nas páginas do jornal os apresentavam como criminosos, traficantes originários da pobreza e responsáveis por uma diversidade de outros crimes, ou doentes que comprometiam a vida em sociedade e que deveriam ser afastados dela para serem curados.
Bicho de sete cabeças
Havia, então, três tipos de sujeito da cobertura jornalística de drogas. O sujeito criminoso, um “terrorista” que trafica e faz parte de atos de vandalismo e violência, foi identificado em assassinatos de repercussão da época, como o da menina Ana Lídia e o da jovem Cláudia Lessin. Esse perfil explica a “ação criminógena”, indutora de crimes, do uso de drogas.
O sujeito dependente, em geral estudante, é o que não sabe tomar decisões de vida por si mesmo, tem uma personalidade deformada. Por isso, precisa de ajuda médica. Esse padrão foi reforçado pelos especialistas ouvidos na CPI dos Tóxicos, de 1974. É da década de 1970 a história de “Canto dos Malditos”, o livro em que o autor, Austregésilo Carrano Bueno, narra o seu aprisionamento em hospícios pelo próprio pai por causa de alguns cigarros de maconha — história que baseou o filme “Bicho de Sete Cabeças”.
“Além de manicômios, havia clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas, muitas das quais financiadas pelo governo, que retiravam o indivíduo do convívio social”, explica Marisete Hoffmann Horochovski, professora especialista em sociologia da saúde que orientou a pesquisa.
Todos esses sujeitos, porém, estão suscetíveis a serem prisioneiros, aqueles que são torturados nas delegacias ou mortos em confronto com a polícia. Assim, fica registrada no estudo uma intenção do status quo da ditadura em justificar prisões e torturas — violações de direitos humanos em geral — como política antidrogas.
Da contracultura à “subversão”
A pesquisa também registra termos usados na cobertura de temas de drogas da época — toxicômano, viciado, drogado etc. Hoje pouco usuais na mídia, serviam para qualificar “subversivos”, a expressão que cabia aos considerados inimigos do governo.
Um exemplo: ao publicar uma lista de procurados pela polícia em 1972, a Folha destacou sobre um deles, abaixo de informações como codinome e atos ilícitos a ele imputados, a explicação “é toxicômano: fuma maconha”. Dessa forma, o jornal procurava orientar a população no que prestar atenção ao delatar os foragidos.
Trata-se de um indício de que o discurso da repressão às drogas se uniu ao discurso anticomunista nas páginas de jornal. Assim foi feita a escolha de parte da mídia, aí incluída a Folha, de em regra ignorar a expressão do uso de drogas como uma prática da contracultura que questionava as estruturas capitalistas, o que estava no cerne de movimentos como o hippie e o punk.
“No Brasil, foi mais cômodo associar e reduzir o uso de drogas à influência do comunismo, prova disso é que, inicialmente, as práticas da contracultura foram chamadas de desbunde, termo pejorativo usado pelos grupos de esquerda e que se refere aos sujeitos que valorizam os interesses e sentimentos pessoais em detrimento da organização e da opção pela revolução socialista”, avalia Rigoni Filho.
No entender do pesquisador, essa interligação de significados — drogas e subversão — explica a lógica de uma política de repressão que deixou herança. “O principal, em minha opinião, é a lógica da suspeição que a ditadura fez emergir na sociedade brasileira. Todos eram suspeitos, até que se provasse o contrário. Ou seja, já havia uma condenação prévia de certos grupos sociais e sujeitos, marginalizados e pertencentes às classes mais pobres, ou jovens desviados. Isso mescla as figuras do traficante e do usuário, sendo que o ‘viciado’ torna-se um traficante para sustentar seu vício.” (por Thiago Fedacz e Camille Bropp/Ciência UFPR)