Crônica do império em declínio
Por Roberto Amaral
Para Charles Pessanha, in memoria
“Na história dos EUA, democratas e republicanos cerraram fileiras para defender o imperialismo” – Claudia de la Cruz, candidata socialista à presidência dos EUA
A comédia do presidencialismo nos EUA transita do quase burlesco, como o debate do 27 de junho, à tragédia do último 13 de julho. Consumado com êxito, o atentado, ainda que lamentável, seria, apenas, mais um homicídio político, curial naquele país, como o que antes abateu o senador democrata Robert Kennedy, igualmente em campanha pela Casa Branca. A violência política não tem caráter.
Desta feita, a competência que não faltou a Lee Oswald fugiu da mira do jovem Thomas Matthew Crooks, livrando a história estadunidense de mais um trauma, algo que se dirá natural, ou lógico, em sociedade e nação construídas e sustentadas pela violência interna, que leva para fora de seus limites sua essência constitutiva: a violência larvar, a violência do dia a dia e a violência estritamente política; a violência social, a violência interpessoal e intergrupos. A violência racial e a violência nas relações com outros povos, a partir da autoconvicção paranoide de sua superioridade, e de seu dever, derivado dessa alucinação, de impor-se a todo o mundo como matriz, assim como a fé era levada aos ímpios pelas espadas sagradas dos cruzados: a ferro e fogo.
Consideremos um recorte de suas disputas políticas: quatro presidentes assassinados (Abraham Lincoln, James Garfield, William McKinley e John Kennedy); dois presidentes vítimas de atentados (Ronald Reagan e Theodore Roosevelt, este antes de tomar posse); um candidato à presidência assassinado (Robert Kennedy) e, dentre as muitas personalidades abatidas a tiros, Martin Luther King e Malcolm X. Nesta lista se insere, agora, Donald Trump, sobrevivente como Reagan, seu colega de partido e irmão no reacionarismo.
Enquanto Biden, em cena aberta, se reconhecia como ator sem enredo e sem “ponto”, o oponente se consagrava no papel de grande bufão. Nos gestos, nas falas, nas propostas, como na truculência. Nessa arte ele é imbatível.
O aparentemente inexplicado é que o candidato dos ricos expressa a alma perene do americano comum, assustado com a decadência do país, que lhe haviam ensinado na escola, no serviço militar e na igreja haver sido escolhido por Deus para ser uma nova Canaã: a maior, a mais rica e poderosa nação do mundo. Por isso Trump é um candidato perigoso, como perigoso se revelou o vice que tirou do colete, para quem a essência da alma americana está em um fuzil. Aqui, gente também desprezível diz o mesmo, com igual desenvoltura e igual sucesso, inclusive nos palcos das corporações neopentecostais.
Apesar de tudo, não há nada de novo no front, pois quase nada muda naquele país, qualquer que seja o partido no governo. Persiste a política de expansão imperialista, motivada pela própria formação histórica, mas alimentada pelo complexo industrial-militar, que precisa de guerra para sobreviver.
A diferença entre o Partido Republicano e o Democrata é a que se identifica entre irmãos siameses. O mesmo se aplica a seus líderes na Casa Branca. Foi o democrata Harry Truman que em 1945 lançou duas bombas atômicas sobre a população civil de um Japão já derrotado; foi ele ainda quem criou a chamada Guerra da Coreia (um morticínio ainda muito pouco comentado), enquanto o republicano Dwight Eisenhower negociou o dúbio armistício. Foi o democrata Lyndon B. Johnson quem deu início à invasão do Vietnã, enquanto ao republicano Richard Nixon coube negociar a paz. Os democratas John Kennedy (que conduziu a fracassada invasão de Cuba) e o mesmo Lyndon Johnson, seu sucessor, articularam o golpe militar no Brasil, em 1964, enquanto o republicano Nixon dirigiu a derrubada de Allende no Chile.
Joe Biden, democrata, a quem a humanidade deve haver derrotado Trump, como devemos a Lula a derrota de Bolsonaro, vitórias e derrotas que se equivalem, iniciou a retórica beligerante contra a Rússia e a China, a quem impôs seguidas restrições comerciais e embargos tecnológicos. É o principal fornecedor de recursos e armas para a Ucrânia e para o sionismo israelense. É sua política que dá sustentação ao governo criminoso de Benjamin Netanyahu, portanto à guerra de agressão e extermínio povo palestino, ora em curso, e sem indicação de termo. Trump, em seu quatriênio, provocou o quanto pôde o governo chinês, que seu candidato a vice anuncia como o novo “inimigo número um” dos EUA. Todos os presidentes americanos, democratas e republicanos, de John F. Kennedy a Biden, passando pela dinastia Bush, tentam sufocar o povo cubano, num cerco covarde que chega às raias do genocídio.
Em que se diferenciam esses partidos para supormos que uma administração democrata, com Joe Biden ou Kamala Harris, nos poderia e pode ser mais favorável?
O presidente Lula se entendeu muito bem com o republicano George W. Bush (chegaram mesmo a desenvolver um certo grau de amizade), e terminou seu governo dizendo-se traído por Barack Obama, o presidente democrata cujo governo instalou escutas no gabinete da presidente Dilma Rousseff e invadiu os computadores da Petrobras.
Kamala – nas circunstâncias do doloroso declínio cognitivo de Biden –, será melhor candidata, mas nada nos assegura que será também melhor presidente, e nada nos diz que estará à esquerda do presidente. É mulher e negra, de origem indiana, o que é relevante como simbolismo – mas é pouco, visto que identidade não define ideologia, nem linha política. Mulher e negra, mas reacionária, era Condoleezza Rice, Conselheira de Segurança Nacional e Secretária de Estado nos dois governos do republicano George W. Bush, que destroçou o Iraque, a partir da sabidamente falsa acusação de armas atômicas na posse de Saddam Hussein. Mulher (branca) e imigrante era Madeleine Albright, Secretária de Estado no governo do democrata Bill Clinton. Uma facínora.
Política provinciana, Harris destacou-se como procuradora linha-dura, que deu sua parcela de contribuição para o massivo encarceramento de negros em seu país; seu mandato como senadora foi de pouco lustro e, contrariando as esperanças nela depositadas, foi uma vice-presidente apagada. Admite-se, até, que tenha sido propositalmente apagada pelo establishment democrata, fechado a mudanças. No contraponto, o currículo de Trump é explosivo. Neofascista, abertamente racista, negacionista climático, responde a processos como estelionatário e sonegador de impostos, e foi condenado por estupro. É, ademais, mitômano. Retornando à presidência, transformará os EUA em instrumento de articulação da extrema-direita em todo o mundo e consolidará a transição do capitalismo monopolista financeiro em capitalismo de guerra. No Brasil será saudado pela súcia bolsariana, incluído o partido militar.
Nesse quadro, uma torcida sensata pelo êxito da oponente se justifica.
Mas a questão de natureza fundamental, e aquela que mais nos diz respeito, é a batalha ideológica, tanto mais necessária quando assistimos ao crescimento da extrema-direita aqui e alhures. Lá e cá, país diretor e país dependente (como na Europa e noutros países da América do Sul), a direita semeia a tensão no terreno arado pelo fracasso dos governos social-democratas e de centro-esquerda no enfrentamento dos desafios da crise estrutural do capitalismo, em mundo econômica, política e ciberneticamente globalizado.
A insegurança econômica é um dos vetores da erosão da classe média, às voltas com a crise do trabalho (a revolução tecnológica é fator essencial, mas não único para a crise), a concentração de renda e a violência, para a qual, dentro do capitalismo, a esquerda não conseguiu formular uma política, para além da necessária defesa dos direitos humanos. A esfinge a decifrar: por que o discurso protofascista vem a ser assimilado – em países de formações político-sociais e econômicas tão distintas –, pelas vítimas da hegemonia capitalista, geradora das disfunções econômicas e sociais? São hoje eleitores de Trump e Le Pen, há pouco votaram em Bolsonaro e Javier Milei.
Lá trás, os explorados de sempre foram eleitores de Mussolini e Hitler, caminhando nas mesmas fileiras da alta burguesia industrial e financeira.
A história mostra que o recuo, às vezes uma tática necessária, não pode ser uma estratégia e, ainda mais, que o projeto eleitoral não pode desapartar-se do dever doutrinário. Uma vez mais vale estudar a experiência recente da esquerda francesa, que, a partir de sua unidade, valeu-se do debate ideológico (a denúncia do capitalismo e a apresentação de programa alternativo) e conquistou a vitória eleitoral conhecida, quando, entre nós, as forças majoritárias da esquerda limaram de seu dicionário o socialismo. (Com a colaboração de Pedro Amaral)