(foto samia bomfim – ccl)

08 de Março

.Por Lilian Oliveira.

Comemoração ou consagração ou ambos? Talvez um, consagrar, de todos os corpos, vozes e vidas femininas postos em atos? Talvez um, com memoração, desses mesmos corpos, vozes e vidas agredidas, estupradas, perseguidas, presas e mortas? Poderíamos marcar o dia a partir das marcas que ele nos lembra, então teríamos um memorar consagrado a esses corpos e vozes de mulheres que tiveram coragem e ousaram por nós, que se engajaram em movimentos, que colocaram o corpo em jogo em lugares diferentes no tabuleiro do patriarcado machista e misógino. Que se esperançaram mesmo sabendo, que talvez elas mesmas não saboreassem os frutos de seus plantios regados a lágrimas, suor e sangue derramados de suas carnes e entranhas, mas que apostaram em porvir às suas descendentes, que elas pudessem gozarem – gozar em- seus próprios corpos constituídos e direitos adquiridos a fórceps.

Entra em cena o capitalismo nos mercados de flores, chocolates, bichinhos de pelúcia etc. Assim como acontece com todas as outras datas que perdem sua gênese engolidas pelo canibalismo, digo, capitalismo – são tão próximos em seus fonemas não? basta a troca de duas letras -. E junto a isto, não posso deixar de pensar sobre o engodo que vem acompanhado das flores, chocolates, ursinhos etc., cartões ou falas com palavras bonitas que exortam coisas como: o amor incondicional, maternal e totalmente empático, como somos criaturas que suportam as dores e mazelas tão bem -conseguimos gestar, parir, sangrar, ser mãe, mulher, esposa, companheira, trabalhar fora, trabalhar em casa, e ainda estar disponível etc. – puro engodo para tentar ludibriar e nos colocar no tabuleiro no lugar que escolherem para nós.

Esse arquétipo de construção históricossociocultural que nos deram. Ser mulher não é isso. Ser mulher é… Ops! não precisamos de definição, porque isso restringiria e sobretudo, restringiria a todas que se identificam como mulher com útero, vulva e vagina ou não. O nos importa saber é que ser mulher não é isso, esse arquétipo que coloca a mulher na semelhança da Virgem Maria pura e imaculada – recata e do lar – que aceita sem questionar as ordens do senhor – figura masculina – conceber sem pecados. A mulher que ousa como Eva, deve sofrer as consequências. Me lembrei agora das cartas dos Jesuítas na colonização: ‘mandem roupas para esses corpos nus possam cobrirem suas vergonhas’, quem estava corpos nus que sentia vergonha ou a vergonha era dos olhos que viam e sentiam desejo e não sabiam refrear os seus “pau-brasil”?

Aqui de antemão escrevendo consigo supor os comentários de homens e mulheres – sim, pasmem, mulheres! com seus comentários haterianos machistas e misóginos. O feminismo não é contra o masculino ou contra os homens, mas sim contra o machismo, que está em homens e mulheres. O machismo que estupra, que mata física, mental e emocionalmente. Que faz do corpo feminino lugar público ou de propriedade exclusiva de outrem, isso vai depender de um como convier a ocasião e a situação. Que o corpo feminino deve se mover assim ou assado. Que diz que um corpo feminino deve ou não usar certo tipo de vestuário para não ser confundido com um suposto direito? Que atribui culpa e responsabilidade a vítima. Enfim, tantas outras coisas poderia desfiar aqui sobre as consequências do machismo e da misógina.

Outra coisa que posso também supor aqui nos comentários haterianos são aqueles que vão tentar diminuir a causa dizendo que feminismo é mimimi, que há outros grupos que sofrem mais, que há guerras acontecendo. Sim, os problemas do mundo não giram só entorno do umbigo das mulheres e do feminismo. Quem luta, luta, quem sofre, sofre, e só quem sente no corpo. Não há como supor o tamanho e intensidade do sofrimento do outro. Eu como branca classe média, nunca alcançarei o sofrimento de uma mulher negra de classe econômica baixa – aliás, esse termo classe, é coisa de pano pra manga, mas, é assunto pra outra hora – Mas, também não posso deixar de fazer a observação de que nem todas as sociedades experimentaram, por exemplo, o racismo ou homofobia, mas, todas sem exceção experimentaram a misoginia. Ouvi isso de Leandro Karnal que completa dizendo que a misoginia é o preconceito original, que dele se originou todos os outros preconceitos.

Uma luta não anula ou é inferior a outra. Talvez o que essas pessoas não depreenderam ainda é que todos, todas as lutas são únicas em seu cerne, buscamos nos colocar no lugar de sermos respeitados, de termos direitos equiparados independente do sexo biológico, da cor da pele, da raça ou da fé. Todos os movimentos, os grupos lutam por seu lugar ao sol. E o sol é único para todos, portanto, é lutar pelo que deveria ser óbvio. E nisso não cabe a petulância, arrogância ou a hiância de nos darmos ao luxo de pensar que sua luta não é minha e vice-versa. Vivemos sob o mesmo sol, no mesmo planeta, então a questão não só do meu quintal, é universal.

Podemos sim festejar a data, aceitar flores chocolates e bichinhos de pelúcia, afinal quem não gosta de algumas dessas coisas? Mas, sem se deixar cair nos engodos patriarcado e do marketing capitalista. Festejar sem perder de vista, que ainda estamos em luta.

Então, hoje no dia 08 de março, não quero parabéns por ser mulher e toda historinha que isso carrega. Quero ser respeitada como ser humano, com equidade. Dedico as flores de hoje em memória das mulheres que lutaram no passado para que hoje tivesse a liberdade de colocar minha voz nesse texto. Dedico as mulheres contemporâneas que lutam e sentem comigo agora. Dedico a todas nossas descendentes com um esperançar de que elas não precisem sentir no corpo a violência dessas lutas, mas, que tenha conhecimento delas apenas pelas narrativas ancestrais. Em um podcast ouvi a seguinte frase que foi atribuída a Sonia Guajajara que diz algo no sentido de que tradição a gente perpetua desde que não seja de violência.

Campinas, 08 de Março de 2024

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