(Foto rede globo – div – reprod)

.Por Christian Ribeiro.

Manoel Soares é senhor de uma das trajetórias profissionais mais impressionantes do jornalismo brasileiro. De repórter locado em programas vespertinos da grade global, para apresentador oficial dos canais globo de jornalismo e entretenimento. Ao mesmo tempo em que consolidava sua posição enquanto influente ator social-militante antirracista e de negritude no país. Um caso de sucesso que não se deu por acaso ou enquanto favor, mas devido a sua competência e empatia reconhecida por grande parte de público televisivo. Aquilo que qualquer profissional almeja em sua carreira, ter o seu talento reconhecido, além de seu trabalho validado por seus espectadores. Profissional de extrema credibilidade, que sempre se portou de maneira respeitosa em suas interações e participações com os seus entrevistados e ao seu público.

Um profissional em pleno processo de crescimento da sua carreira, com um potencial de credibilidade e competência que não passou despercebido por uma rede de comunicação ávida em exercer cada vez mais uma representatividade e diversidade jornalística. Abordando cada vez mais temas e pautas como a luta antirracista. Além das denúncias cada vez mais constantes acerca de racismo e intolerância, abordados, discutidos e problematizados a partir da perspectiva de um profissional oriundo dos grupos étnicos e sociais vitimados por estes fenômenos que cada vez mais evidenciam uma face perversa de nossa sociedade. O que ainda não é fato comum dentro do telejornalismo nacional, ainda mais em uma programação de recorte popular e familiar. Sendo esse o papel que passou a exercer com sua ida como coapresentador do programa “Encontro”, ao lado da jornalista Patrícia Poeta. Tendo Soares sempre uma relação mais orgânica e interativa, no sentido de espontaneidade e simpatia, tanto com o auditório presente a atração, quanto com o público televisivo/virtual.

Prática jornalística que o levou a ter cada vez mais reconhecido a excelência de seu trabalho, mas que ao mesmo tempo passou a lhe gerar problemas. Em especial, por não haver uma “sintonia fina” entre ele e sua parceira de atração. Que foi contratada como a figura central do programa, jornalista de competência e reconhecimento profissional inquestionáveis, mas que desde os primeiros momentos se mostrava incomodada com a desenvoltura apresentada por Manoel Soares com os entrevistados e a plateia. Gerando uma serie de cortes, de interrupções das falas e interações por ele desenvolvidas. Várias das vezes de maneira abrupta, quando não agressiva. O que levou a uma grita geral dos telespectadores, reclamando desse comportamento não profissional da jornalista. Atitude que especulou uma série de análises de críticos de televisão que interpretava haver um ciúme mal dissimulado por parte dela ante o seu parceiro de câmeras, e até mesmo um temor em ter sua importância diminuída no decorrer do programa, ante o sucesso popular e de crítica que Soares recebia cada vez mais.

E eis, que aí começa a ocorrer uma série de desmentidos de Poeta, toda vez que havia reclamações por sua postura com relação ao Manoel Soares, destacando seu respeito e admiração por seu colega, não havendo nunca qualquer forma de prejuízo ao desenvolvimento do programa ou qualquer tentativa de “sabotagem” ao seu exercício profissional. Que tudo não passava de fofocas. Desmentidos esses que passam a tomar novas cores, novos rumos, quando passam a interpretar toda crítica a sua postura profissional como uma forma de ataque pessoal! Situando, de maneira não explicita, mas subentendida, estar havendo uma campanha de difamação pessoal contra ela!

Ou seja, as observações e críticas de não concordância de como ela tratava seu companheiro profissional, eram desmerecidas e desqualificadas como frutos de intriga e inveja. Como ataques pessoais e nada mais do que isso!

E, por coincidência(?), passa a ocorrer uma cobrança em relação a Manoel Soares em defender a sua parceira de atração, mesmo ele em nenhum momento dando qualquer declaração em contrário, além de sempre alegar haver um clima de boa convivência e respeito entre eles. Ao mesmo tempo em que não deixava de agradecer o carinho recebido pelo público, na certeza de que situações outras, não intencionais, seriam superadas no decorrer do processo de consolidação do programa. Uma atitude que lhe angariou mais simpatia e respeito, não só pelo público, mas da própria direção da emissora, que ante tudo isso acabou por lhe oferecer a participação no programa de debates e análises “Papo de Segunda” no canal pago de variedades GNT.

Mas, tal reconhecimento profissional passa a ser acompanhado por uma série de reportagens especulativas, sem fontes ou referências, que lançam a ideia de que Manoel Soares seria uma figura totalmente diferente nos bastidores, do que se apresenta perante as câmeras. Sendo um homem bruto e violento. Arrogante e intolerante, além de praticar assédio – profissional e de gênero – constantemente no exercício de sua profissão. De ser um sujeito manipulador que estaria se passando por vítima, para prejudicar intencionalmente Patrícia Poeta, para lhe imputar a peça de racista, e assim acabar por galgar planos mais altos dentro da emissora da família Marinho.

Um processo de desconstrução da imagem, não só profissional, mas humana de Manoel Soares, que se desenvolve a mais de um ano, quase que diariamente. Sempre de modo oculto, apócrifo, por “fontes não reveladas”, que atestam o caráter “não confiável” e “perigoso” de Soares.

Numa espiral de perpetuação do nosso modus operandi racista de desumanizar o homem negro de suas virtudes e humanidade. O reduzindo a estereótipos negativos de inveja, rancor, ódio, dissimulação e de perigo extremo ao bem-estar, a segurança e a integridade das “mulheres brancas”. No caso a relação profissional entre ele e Patrícia Poeta, foi reduzida a isso. Com as inúmeras e incontestes ingerências dela em relação a ele, passando a ser ignoradas a cada denúncia, sendo reforçado uma narrativa que situa a Poeta como a grande e única vítima dessa história, por estar sendo assediada moralmente por um homem perigoso e manipulador. Tendo até mesmo sendo posto que Manoel Soares seria uma pessoa também extremamente difícil por sempre querer discutir as pautas de seus programas ou os conteúdos dos mesmos. Nunca aceitando as opiniões em contrário. O que causa uma série de descontentamentos e desgastes em relação aos profissionais envolvidos na elaboração de seus programas.

Ou seja, uma postura que poderia ser vista como zelo e preocupação inerente a qualquer trabalhador no exercício de sua função, passa a ser visto como exemplo de “estrelismo” e de empecilho profissional. Uma forma de perfeccionismo, que na maioria dos casos é utilizado como exemplo de inspiração e resiliência, mas não aqui. Não nessa situação, em que se torna prova de que Soares é uma pessoa “não humilde”, arroganteInsolente ao não saber agradecer a oportunidade que recebeu. Soberbo em não reconhecer a humildade da Patrícia Poeta em aceitar dividir com ele o programa. O que aqui nos remete a velha situação do “negro ingrato”, mais um dos estereótipos que estão sendo usados sistematicamente para destruição de sua figura pública. Atrelado ao discurso, nem tão disfarçado assim, de que ele no caso está querendo se promover cada vez mais com essa história. Em consonância a uma linha canalha, mas atuante, de um certo tipo de jornalismo – ou entretenimento cultural – de que se omite ante aos casos de denúncias cotidianas de racismo no país, silencia ante as ocorrências deste tipo em seu próprio meio. Mas se coloca enquanto implacável com quem é vítima desta realidade, e principalmente quem denuncia e combate tais situações.

E eis que aqui colocamos um ponto de atenção a toda esta história, que resultou na demissão de Manoel Soares no último dia 30/06/23, através de uma nota oficial emitida pelas organizações Globo. Estamos falando de uma pessoa, de um homem negro que contra todos os prognósticos e perspectivas, alcançou uma excelência e reconhecimento profissional que tradicionalmente não era a ele destinado. Ocupava um lugar que não era para ele, assim encarnando, para ódio dos que querem o Brasil estratificado de sempre, o papel do negro abusado, do negro que se acha, do negro que não sabe – e não se coloca – (n)o seu lugar. Soares é daquele que nas contradições que marcam a ascensão social de uma pessoa negra, em espaços que não se fazem associar “naturalmente” a ela, como a de trabalhar em uma organização que perpetuou por décadas o mito da democracia racial brasileira, além de promulgar o mito do racismo reverso e realizar ataques sistêmicos e falaciosos contra a adoção de cotas raciais em concursos públicos e vestibulares no país. Para a partir disso exercer um debate público e questionador ante a ocorrência de nosso racismo sistêmico e estrutural, por vezes até pondo em xeque o papel desempenhado por sua própria empregadora nesse processo.

Nunca exerceu o papel do “negro agradecido” – no sentido conceitual de Clóvis Moura – do negro da Casa-grande, submisso e sempre vivendo em agradar as vontades de seus opressores, esquecendo até mesmo quem é de fato, enquanto pessoa, alienada por um sistema que vive e se reproduz através de sua exploração. Mas daquele que ocupa conscientemente as brechas do sistema para confrontá-lo e abalá-lo por dentro, para visibilizar e expor suas contradições e incongruências, mesmo estando inserido e sofrendo as turbulências desse processo. Pelo intento de contribuir para as melhoras dos seus. Aliás, compromisso jornalístico que sempre deixava manifestar em situações explicitas de ocorrências racistas as quais era posto a reportar, comentar ou mediar. E essa postura, incomoda… E muito, em uma sociedade que ainda hoje revela enorme dificuldade em se assumir racista e enfrentar os males que a partir dele se originam. Do negro que combate o seu não lugar na sociedade brasileira, da negação e apagamento da sua condição humana.

A insolência de Manoel Soares não poderia ser tolerada, muito menos relevada… Afinal de contas, existe um limite para os slogans de que: “todos nós somos antirracistas” ou “a luta contra o racismo é de todos”. E esse limite, é o de uma pessoa negra, nesse caso um homem negro, que vai além, muito além do que lhe era esperado ou permitido.

De alguém que inverte o seu uso como um ativo simbólico, de exemplo sobre um novo tempo de engajamento social da TV Globo, para um incomodo diário, que acabou por revelar haver um certo alcance e limite, além de outros interesses, em relação a esse “novo tempo”. Como por exemplo, o de não se deixar afetar o bem-estar daqueles que são do círculo próximo dos senhores do poder de sempre! Daqueles que em último caso, aindadecidem o que pode ou não ser aceito como válido! Dos que ainda pensam estar acima do bem e do mal!

Não importando a realidade racista estar sendo posta e questionada, instantaneamente, por milhares e milhares de pessoas dia após dia. Indignadas com aquilo que presenciavam, sistematicamente, diante de seus olhos. Que se siga os mesmos padrões de sempre e sejam condenados, a bel prazer, os mesmos inocentes de sempre! Por este recorte, que se ataque e macule a vida e trajetória desse homem, “insolente e prepotente” em sua negritude, não importando que ele seja inocente ou, no mínimo, falho tal qual a qualquer outro.

Que se use os mesmos estereótipos preconceituosos e racistas aos quais se baseiam as relações sociais de nosso país! Afinal de contas, é mais um negro que se fez usar e descartar! Resquício de nossa origem senhorial e escravocrata. Uma lógica cruel, vil e chula, mas que ainda persiste, como esse caso da demissão de Manoel Soares tão bem nos exemplifica!

Para um, a vítima nessa história, sempre bom e importante situar isso, fiquemos com a demissão profissional e difamação de sua honra por ataques mentirosos e covardes. Para a outra pessoa diretamente personagem dessa situação – com um comportamento no mínimo imaturo e nada profissional ante as críticas sofridas – as devidas férias e um programa totalmente reformulado, com sua liderança como apresentadora inquestionável e mais reforçada do que nunca!

Mas, como diriam os mais céticos, e a ética e a credibilidade dos fatos? Como ficam nessa história? Se encontram demitidas, junto com o Manoel Soares, dispensadas como se de nada valessem! Num roteiro cruelmente bem delineado, para deleite dos poucos de sempre e alienação de muitos, redigido em tintas de fel, amargo…

Por mais que ele tenha saído sem se curvar ante tudo aquilo que lhe foi (im)posto e confrontado, ao final das contas, na fria realidade da vida, acabou demitido, tirado do ar, desprovido de seu trabalho, pelo simples fato de ser quem é, um homem negro que ousou não se sujeitar ante o absurdo de nosso racismo estrutural! O que nos parece, infelizmente, ainda ser antirracismo e negritude demais, “radical” demais para as sensibilidades sociais de algumas pessoas! Que atrás de um discurso de desconstrução lenta e gradual de seu racismo estrutural, operam de acordo com a suas vontades e interesses para aparentemente tudo mudar, enquanto na prática, estruturalmente, tudo continua como sempre foi!

Não importando quantos Manoel Soares tenham que ser desqualificados e desvirtuados para a prevalência e reprodução do racismo estrutural brasileiro. E enquanto isso, sigamos com a nossa programação normal!

Afinal de contas, a máquina nunca para…