Zé Celso (foto garapa coletivo – ccl)

.Por Christian Ribeiro.

Se enganam aqueles que pensam terem as cortinas do espetáculo se fechado para José Celso Martinez Corrêa, pois a morte não existe para os que nascem para serem eternos! Zé Celso não morreu, se tornou eterno! Uno e indivisível, energia eterna, que pulsa e renova poeticamente o grande mistério sem segredos, chamado teatro! Com o seu falecimento físico ele finalmente se torna aquilo que ele sempre foi, um eterno, um imortal das artes!

Ser encarnado em corpo mortal que sempre representou os sonhos mais loucos e libertários em uma terra por vezes, quase sempre, tão cínica e moralista. Destruidor de hipocrisias e intolerâncias, ceifador de conservadorismos e totalitarismos… Rompedor de preconceitos… Que abandonou o terno e gravata do curso de Direito do Largo São Francisco da USP, para longe dos caminhos formalistas burgueses, trilhar o seu próprio caminho ao fundar em 1958 o Teat(r)o Oficina, junto com, os seus amigos de direito, Renato Borghi e Amir Haddad, para assim se tornar um profeta de novas auroras!

Espírito livre que alargava todos os limites e imposições para sempre buscar a florescer primaveras, mesmo em solos por vezes tão áridos. Que amava a vida acima de tudo, que amava e reencantava o Brasil em suas artes, em suas peças e performances. Que era loucamente apaixonado por seu povo, não em idealizações burguesas ou teóricas, mas organicamente, em seus sonhos, lutas, suores, dores, paixões, cores e sabores. Como potência criativa do devir que um dia haveremos de finalmente abraçarmos e bailarmos. Do povo como simbolismo concreto do melhor do que fomos, somos e poderemos vir a ser – e seremos – nas terras dessa utopia civilizatória chamada Brasil!

(imagem de vídeo – reprodução)

Homem que nunca deixou de travar os melhores e os bons combates, impiedoso em sua sarcástica, mas nunca cruel, contra os seus algozes. Contra a ignorância e soberba de nossas pretensas elites, guiadas por um senso de superioridade tacanha e medíocre, racista e preconceituosa que não valoriza ou reconhece o quão belo somos como povo que se fez, que se amalgamou e tomou formas diversas e plurais contra todas as possibilidades e regras do “bom-senso” que vieram para ordenar e civilizar as “coisas” por estas bandas das terras brasilis. Usava de seu humor arma criativa, artística para confrontar os donos do poder, mas nunca aos oprimidos de sempre. Era ácido, mordaz e ferino, verdadeiro satírico contra os senhores e defensores de todo o nosso mal. Não perdoava aos culpados e aproveitadores de nossas mazelas históricas-sociais. Tinha ojeriza aos que usavam das artes para tripudiar e alienar ao povo.

Era, por isso artista engajado, não em sentido pejorativo ou doutrinário que esse termo pode gerar em alguns, mas na prática de não se envergonhar ou ter pudores em dar sentido a sua vida, utilizando-a como avatar artístico de transformação mágica do mundo! De libertação de todas as formas de amarras e exploração! Um revolucionário das artes para romper a mediocridade opressora que nos cerca e nos cerceia, que tolhe o pleno exercício de nossa plena humanidade.

Zé Celso Martinez, foi por isso combatente de todas as opressões e totalitarismos, inimigo declarado e juramentado da ditatura civil-militar no Brasil (1964-1985), inimigo da ditadura salazarista em Portugal (1933-1974) e da opressão sem limites do capital contra o direito a vida digna e cidadã, em tempos de hegemonia neoliberal. Por isso, sendo um verdadeiro terror dos autoritários, um pesadelo vivo aos servos de qualquer tipo de opressão. Um agente criativo dos mais argutos em meio ao nosso cenário cultural, sendo um dos renovadores de nossas artes cênicas. Criador de uma linguagem teatral autoral, autenticamente brasileira e popular, dialética, constituída enquanto reflexo de nosso amalgama de diferentes povos, corpos e almas que por aqui vieram habitar e acabaram por construir um novo mundo de possibilidades transformadoras. Erguendo um teatro – ou templo de celebração libertária? – na região da boemia do Bexiga, como um espaço de vida e esperança, de acolhimento, amores e afetos, de não aceite ante a nulidade de sonhos que se tentava imputar como normalidade aos cotidianos da sociedade brasileira.

O que nos implica compreender Zé Celso, como o grande vetor que ligou a antropofagia de Oswaldo de Andrade com o cinema novo (“Terra em transe”, 1967) de Glauber Rocha, dando voz, movimento e estética para o movimento tropicalista em pleno regime ditatorial, na sua encenação do “Rei da Vela” (1967). Uma ponte entre as diferentes vertentes do tropicalismo que dali depuradas ganhariam novas e potências através das canções de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé e dos Mutantes. Ou se tornaria a mais completa e perfeita tradução de Chico Buarque, através da encenação de “Roda Viva” (1968) e das esperanças que sempre se renovam e rompem, os véus das trevas opressoras, mesmo quando elas parecem eternas em sua soberba ignóbil!

Um pajé dos palcos e da vida, ser transgressor e apaixonante dos palcos e da vida, um anjo torto do inconformismo e prazer dos palcos e da vida! Dionisio tropical das terras paulistas que amava e interpretava o Brasil, para louvá-lo e reverenciá-lo ante todo o mundo! Mesmo quando da época de seu exílio, quando os medíocres de então pensaram que assim, acabariam por apagar o seu fogo da vida!

Mestre que se realizava em ser um eterno aprendiz das simples cotidianas coisas mágicas da vida! Aquele que vivia por e para desafi(n)ar o coro dos – falsos – contentes que insistem em tentar impedirmos em sermos o que somos de fato, a nos aceitarmos como somos, experiências humanas de resistências poéticas vividas em constantes transmutações que vieram se dar na parte sul das Américas. Aquele que trouxe a luz dos palcos, a sua releitura (1) de “Os sertões” (2002-2007) de Euclides da Cunha, como uma ode de amor ao Brasil e ao seu povo, na sua incansável persistência do impossível contra a pretensa normalidade do mundo. Um ator e teatrólogo, dos mais refinados e sofisticados em sua rebeldia ardente. Um intelectual de sonhos e utopias, senhor de todos os excessos e prazeres, mas acima de tudo um romântico inveterado, Dom Quixote de batas brancas e pés descalços, que nunca se omitiu em enfrentar e vencer gigantes dos mais variados tamanhos, alguns donos de baú de riquezas infinitas e portadores de sorriso de morte (2), na sua busca em transformar a nossa realidade cinza em peças de amor sem fim!

Orgulhoso cavaleiro do caos, bussola de seu tempo, “antena da raça”, que atravessou diferentes eras e ciclos, sempre apto em confrontar o mal em suas diferentes faces. Que mesmo na ultrajante era bolsonarista – quando muitos dos seus se omitiram ou se converteram aos anseios do genocida presidente – não se curvou. E fez do “Teat(r)o Oficina” verdadeiro farol de esperanças quando só se tinha desencanto e desilusão ao nosso redor! Ele lá estava e não nos deixou de inspirar de que atravessaríamos e venceríamos as hordas malditas de falso Messias! Gargalhando triunfante, insolente, bailando como Exú faceiro, espetando para longe a massa de chorume disforme, putrefato do monstro abatido e envergonhado. Celebrando o voltar do correr dos ponteiros do relógio da vida, da eterna roda-viva, que nunca pode ser contida! De punho ereto, com tridente erguido aos céus, Zé Celso Martinez, celebrou e honrou, como sempre a vida…

Vida a qual não deixava de amar a todo momento e instante, em 83 anos bem vividos de pleno ardor, preparando uma nova peça, nova pajelança que ganharia os palcos para reencantar, o seu grande sonho em poesia chamado Brasil! Em que estaríamos todos nós, mais uma vez, encenados e representados em nossas melhores e mais belas versões. Poderia haver uma trajetória mais sensual e vívida do que essa? Poderia haver uma poética maior do que essa para representar o que foi a potência da vida de Zé Celso? Haveria ato mais belo do que esse, para o supremo encerramento do grande espetáculo que foi (é) a sua vida?

Por isso, não choremos de dor ou tristeza, mas de júbilo e felicidades – eternas felicidades – por este que agora retorna ao fogo da vida! Em uma nova turnê, em que o senhor de todas as pajelanças e terreiros do mundo, ser dionisíaco que dormindo se tornou elemental, continuará em exercer sua arte transgressora e rebelde contra a mediocridade do mundo! José Celso Martinez Corrêa não morreu, mas se tornou agora o que sempre foi de fato, um encantado que continua a viver entre nós, a nos guiar e proteger ante todo o mal! E contra a mediocridade do mundo!
Honras eternas ao grande mestre! Obrigado por tudo! Que se abram as cortinas do espetáculo! O show não pode parar… Pois a gira é eterna!
Ontem, hoje e sempre, Laroyê, Exú Zé Celso Martinez!

Notas:

1.Encenado enquanto uma pentalogia, formada pelas peças ‘A Terra’ (2002), ‘O Homem I’ (2003), ‘O Homem II’ (2003), ‘A Luta I’ (2005) e ‘A Luta II’ (2006), totalizando 27 horas de um conjunto teatral.

2. Alusão ao embate de Zé Celso contra o empresário e comunicador Silvio Santos, que almejava tomar para si o terreno em que se localizava o teatro e sede do grupo Oficina, naquilo que se tornou um símbolo da resistência cultural contra o modelo especulativo e excludente de urbanidade, que se impunha aos destinos da capital paulista. Que terminou com o tombamento da sede/teatro do grupo, pelo Iphan em 2010. Mas que também demarca o começo de uma nova disputa entre ambos, agora pela posse do terreno em anexo ao prédio, ao qual Zé Celso planejava transformar em uma praça aberta, num pulmão verde, em meio ao concreto e aço sem fim, de uma cidade cada vez mais sem alma.