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Edson, um brasileiro controverso

Edson e Pelé, uma abordagem complexa

.Por Bruno Beaklini. (@blimarocha)

(foto arq. pessoal – div)

Pelé (23/10/1940 – 28/12/2022) foi considerado o atleta do século XX no ano de 1981. A FIFA, órgão gestor do futebol mundial o considera junto a Maradona como o maior futebolista de todos os tempos. Édson Arantes do Nascimento é o afrobrasileiro mais reconhecido no país e o brasileiro mais conhecido no planeta. É um personagem complexo que nos deixou no final de dezembro de 2022. Quase tudo ou praticamente tudo já foi falado, narrado, filmado, dito e escrito a respeito dele. Neste modesto perfil, intentamos abordar a complexidade para além do rei do futebol.

Dondinho, Celeste, Edson e Dico

Edson Arantes do Nascimento foi fruto de uma ética familiar vinda do mundo do trabalho e do esporte. A formação de caráter e de disciplina é a transferência direta de seu pai, João Ramos do Nascimento, Dondinho (Maleável no mundo da bola), atleta conhecido na transição do futebol amador para o profissional em Minas Gerais e São Paulo, especialmente no sul mineiro e oeste paulista. João, mais um brasileiro, chegou a jogar em uma equipe gigante, como o Atlético Mineiro. Era um craque, centro-avante cuja carreira foi encurtada devido a uma grave lesão.

A família Arantes do Nascimento, Celeste e João, era fruto do seu tempo, incentivava o esporte como prática salutar, encarava a luta pela sobrevivência sendo da primeira geração após a abolição (sem reparações sociais) e admirava o avanço técnico-científico. Edson foi batizado em função do cientista Thomas Edison, adaptando a grafia original. Podemos observar uma mentalidade de progresso, de busca incessante de melhoria das condições materiais e a afirmação na sociedade com base na ideia do mérito. Toda essa base normativa é necessária hoje e mais ainda no periodo em que o maior jogador de futebol da história nasceu.

Para quem conhece as cidades pequenas e médias do sudeste brasileiro de então, sabe que a espacialidade urbana e áreas rurais conexas são segregadas. Não são raros os “clubes de negros” como continuidade dos festejos religiosos com origem na resistência colonial (com elementos de sincretismo). Dos bailes de carnaval aos rituais do sagrado, os papeis sociais marcados pelas posições de origem são demarcadas. Pelé quando ainda era chamado de Dico no ambiente familiar, aprendeu o esporte através do pai e tinha de combinar os estudos com o trabalho infantil e os treinos nas categorias de base em Bauru (SP). O futebol como profissão marcou a trajetória do Seu Dondinho e Dona Celeste, pois o primogênito nasceu em Três Corações (MG), passou a maior parte da infância e metade da adolescência em Bauru (SP) e terminou se transferindo para o Santos Futebol Clube pelas limitadas opções que tinha na região onde crescera.

O futebol como profissão e o momento do Brasil

O gênio argentino natural de Rosario (Província de Santa Fe), Lionel Andrés, foi recebido pelo FC Barcelona aos 13 anos de idade. O motivo foi a necessidade de tratar sua deficiência do hormônio de crescimento e seu clube de origem, o tradicional Club Atlético Newell’s Old Boys, simplesmente não tinha o montante necessário para tal. Infelizmente o sistema de saúde pública da Argentina no período tampouco garantiu esse direito. A jovem promessa se tornou o maior craque do futebol profissional deste século XXI e atende pelo sobrenome de Messi. Não sabemos quantos outros jovens, não sendo fenômenos da bola, perderam chances em suas vidas pela carência material. Com Dico que não queria ser chamado de Pelé não foi diferente.

Edson foi levado a fazer testes no Santos e assinou seu primeiro contrato aos 15 anos de idade. Foi campeão do mundo em 1958 antes mesmo de completar sua maioridade legal. Se tivessem fraturado seu joelho no primeiro treino, ou o boicotado no vestiário por sua juventude, jamais conheceríamos ao rei do futebol. Extremamente focado, atleta nato e completo chegou ao estrelato no mundo da bola em todos os níveis. Jamais foi “rebelde” ou “desajustado”, em nenhum sentido e é reconhecido por seus pares como um bom colega de profissão.

É preciso entender que o personagem era simplesmente “perfeito” em termos profissionais, o cenário também. O Brasil foi sede do primeiro mundial após a 2a Guerra Mundial, perdemos para a seleção uruguaia, de virada e na final. O “trauma” foi tão grande que as cores da camiseta da seleção mudaram, incorporando o amarelo canarinho. A indústria cultural brasileira cresce, se desenvolve e populariza através de aparelhos de difusão, como a Rádio Nacional e as emissoras de TV a partir das décadas de 50 e 60 do século XX. Construímo o estádio que chegou a ser “o maior do mundo” – mescla de terreiro com templo sócio-desportivo. O Maracanã, batizado como jornalista Mário Filho, rende homenagem a um dos fundadores da crônica esportiva nacional. Não haveria título em caixa alta nos jornais impressos se não fosse a dramatização das partidas de futebol.

A identidade do Brasil moderno, o país que foi “a China do século XX” – crescendo em média de 5% a 8% ao ano entre 1930 e 1980 -, está baseada na nacionalização do país afro-centrado. Um dos elementos centrais desta unidade cultural e de identificação massiva é o futebol profissional e uma constelação de craques negros como Friedenreich, Fausto, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Jair Rosa Pinto, Tesourinha, Zizinho, Didi até chegarmos na era de Pelé e Manoel Francisco dos Santos, Mané Garrincha. Este é o país do cinema, da construção pesada, da criação de Brasília, da industrialização acelerada e de péssimas políticas de distribuição de renda.

Pelé faz parte do primeiro elenco campeão em 1958, é o craque do escrete na Copa do Chile (se contunde e pouco joga) quando conquistamos o bicampeonato. Em 1966, a seleção é marionete nas mãos da ditadura que quer implantar um regime e o desempenho na Inglaterra é sofrível. No México, durante o auge do AI-5 e a repressão política (estado de guerra de interna), montamos um time de sonhos com excelência de treinamento e Pelé se consagra aos 29 anos. Em 1974 não vai à Copa e se despede dos gramados brasileiro. Ajuda a abrir o mercado de futebol nos EUA até chegar à sua segunda despedida do futebol em outubro de 1977.

Edson, um brasileiro controverso

Infelizmente, há flores têm espinhos. Pelé atingiu o topo do Olimpo do esporte mais popular do planeta. Seu tempo foi o auge do Brasil no século XX, eternizando duas gerações de craques mitológicos, estádios com mais de cem mil pessoas e a mística do futebol arte brasileiro como maior produto cultural do país.

Ao “servir o povo” que o adorou, Edson deixou muito a desejar. Na ditadura, apoiou o regime ultrapassando o comportamento discreto previsto como atleta profissional. Teve algum engajamento na campanha Diretas Já, mas nem de longe com o envolvimento de Sócrates. Foi nosso primeiro ministro do Esporte e não deixou um legado de políticas públicas para que outros meninos como ele não tenham de deixar os estudos ou aceitar o trabalho infantil como forma de sobrevivência. Teve uma vida familiar extraconjugal igualmente controversa.

O mito e o personagem ficaram dentro de campo e nos produtos decorrentes da indústria cultural, como publicidade, música, cinema e grandes campanhas de marketing e entretenimento. Na idealização dos jogadores de futebol, poderíamos imaginar seu brilhantismo com a altivez de três majestades engajadas por esquerda, como Waldir Pereira (Didi, o “Príncipe Etíope”), Tomás Soares da Silva (Zizinho, o mestre Ziza) ou Leônidas da Silva (o Diamante Negro). Quis a história do Brasil que assim não fosse.

O “rei do futebol” é maior do que as controvérsias do Edson e a grosseira profanação da canarinho pela canalhice da extrema direita. Pelé é um mito a eternizar o Brasil do século XX.

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