Em São Paulo – A história do Theatro Municipal de São Paulo e das culturas e movimentos negros no Brasil tem pontos de contato muito marcantes. Foram nas escadarias do Theatro, por exemplo, que em 1978 o Movimento Negro Unificado (MNU) foi publicamente lançado. Artistas e ativistas de importância mundial se apresentaram dentro e fora da centenária edificação e, para celebrar sua vida e presença, o Complexo Theatro Municipal abre no dia 8 de dezembro, na sala de exposições da Praça das Artes, a exposição “Presente! – Presenças negras no Theatro Municipal de São Paulo”, com curadoria participativa do Núcleo de Acervo e Pesquisa/Gerência de Formação, Acervo e Memória do Complexo Theatro Municipal. A exposição segue em cartaz até 29 de março de 2023, de terça a sábado, das 10h às 18h. No dia da abertura, a Orquestra Sinfônica Municipal fará, no vão da Praça das Artes, a apresentação do Hino da Abolição, de Gomes Cardim (1888), à época, dedicado a Luiz Gama. A partitura manuscrita também integra a exposição.
A exposição é fruto de um importante levantamento documental realizado pelo Núcleo de Acervo e Pesquisa, que encontrou mais de 280 registros de diferentes espetáculos, eventos e intervenções políticas que tiveram como protagonistas mulheres e homens negros. Programas de espetáculos, fotografias, borderôs, vídeos, cartazes, partituras, trajes e adereços, documentam uma presença fragmentada e difusa, porém perene de 1915 até os dias atuais.
Longe de ser apenas um acumulado de registros historiográficos enfileirados, contudo, “Presente!” quer ser um libelo sobre a importância e conquista desta presença que (r)existe, um vocativo mesmo. Para isso, a expografia, cujo projeto é assinado por Ricardo Muniz Fernandes, abusa da figura das encruzilhadas (ou encruzas), que serão um fundamento e se multiplicará pelo espaço externo e interno da Praça das Artes. As encruzas serão um tempo-espaço onde o movimento, a profusão de possibilidades, e as histórias e futuros se cruzarão, propondo um outro mundo e transgredindo a lógica branca e ocidental, seus territórios e limites. Dicotomias serão questionadas, assim como a ideia de dentro e fora.
Ao reunir um conjunto significativo de diferentes documentos, desde 1915 até os dias atuais, que marcam a presença de artistas negros, no Theatro Municipal, a Exposição Presente – Presenças Negras no Theatro Municipal, aponta, por um lado, o que tem sido o Brasil nesses 110 anos de existência do Theatro: a presença exígua de artistas negras e negros no palco do Theatro, em relação à massiva atuação de brancos. Ao mesmo tempo, exibe a qualidade e competência dessa participação, diz Ana Lúcia Lopes, gerente de Formação, Acervo e Memória. E completa: ”Porém, por outro lado, a exposição aponta para o futuro quando reúne esses artistas em uma demonstração incômoda, para muitos, de excelência. A competência é inquestionável, ficando para nós o compromisso antirracista de mudar essa história”.
“A ideia da encruzilhada como disputa, luta e jogo, envolta em ritmo e dança, tomando outras referências além do fato concreto, e buscando para lá do real o encantamento que vive em tudo”, diz o texto de parede da exposição. “A expografia proposta é também uma gira, uma mixagem da estética das ruas e dos museus, das quebradas e dos palácios. (…). Um ponto de partida, um início, um sem fim, a provocação de uma história ainda por se fazer”, explica o texto expositivo.
Somado a esse material, exposto de forma a ocupar um espaço presente e não apenas passado, buscando a sensibilização e o vocativo, estarão trechos das 34 entrevistas realizadas com funcionários negros do Theatro, dando uma face e uma voz à presença negra atualíssima, que constroi o Complexo Theatro Municipal em seu cotidiano. ”Essa experiência de registros documentais de história oral de trabalhadores, serviu como uma primeira experiência para uma ação que pretendemos aprofundar e produzir registros da história oral dos trabalhadores do Theatro Municipal de São Paulo”, completa Anita Lazarim, Pesquisadora do Núcleo de Acervo e Pesquisa.
Nesses testemunhos, emoções, vivências e as contradições inerentes a uma sociedade estruturada pelo racismo constroem um edifício de vozes que permite pensar a escrita da história cotidiana a partir de um protagonismo de quem produz a arte, nos mais diferentes níveis, no dia-a-dia, e potencializará reflexões sobre o mundo e a história negra dentro do Municipal.
Um palco histórico para o que acontecia fora do Theatro
Além de difundir o rico acervo da casa, a exposição pretende visibilizar a atuação de entidades e organizações da sociedade civil, sobretudo negras, que se articularam ao longo de mais de cem anos para ocupar a programação do Municipal de diferentes formas. “A exposição revela que o Theatro Municipal também foi constantemente disputado por outros grupos sociais que não somente a elite; que existiram — e de alguma forma se realizaram — outros projetos, tensões, diferentes perspectivas de cultura e política. A exposição ajuda a construir uma perspectiva mais plural acerca do significado do Municipal para a cidade de São Paulo, para o Brasil”, diz Rafael Domingos, coordenador do Núcleo de Acervo e Pesquisa do Complexo Theatro Municipal.
Para Anita de Souza Lazarin, “é fundamental dizer que, ao longo da história do Theatro Municipal de São Paulo, não houve uma gestão comprometida com as pautas raciais que estabelecesse políticas concretas nesse sentido em sua programação. Dessa forma, a ampla maioria das expressões e linguagens artísticas apresentadas no Municipal advém da vocação da casa de casa de ópera seus corpos artísticos. No entanto, apesar disso, variados grupos e sujeitos negros e de entidades negras conseguiram se articular para ocupar a programação do TMSP, deixando uma inegável contribuição artística e histórica”.
Muitas preciosidades poderão ser encontradas pelo público, reveladas por essa imersão no acervo da instituição. E cada objeto conta uma história profunda, caso do Jornal Progresso, que representa a articulação da imprensa negra em 1931 e a campanha política organizada pelo escritor Lino Guedes para a construção de um monumento para Luiz Gama. “Para arrecadar fundos para a campanha, esse grupo do jornal Progresso conquistou um espaço na programação, realizando um evento no Theatro Municipal de São Paulo em meados de fevereiro de 1931. Meses depois, o monumento foi inaugurado no largo do Arouche. O acervo do Theatro possui um registro desse evento, que informa detalhes das apresentações daquela noite”, revela Anita Lazarim, sobre apenas um dos inúmeros objetos presentes na exposição.
Houve situações ainda em que uma apresentação artística deu endosso a uma luta. “Ainda nessa década, em 1937, durante o recital da cantora lírica negra e estadunidense Marian Anderson, a Frente Negra Brasileira esteve na plateia prestigiando a artista e organizou uma homenagem a ela na sede da organização, a qual a cantora prontamente aceitou, indo conhecer o espaço de articulação. Isso foi noticiado na imprensa da época”, explica a pesquisadora do Núcleo de Acervo e Pesquisa, lembrando ainda do Teatro Experimental do Negro (TEN), de Abdias do Nascimento, que ocupou o Theatro com a peça “Sortilégio” na década de 1950, além da correspondência que há entre o aumento da programação com artistas negros e um repertório afro-brasileiro nos anos 1970 e 1980 e o fortalecimento da organização dos movimentos negros, que culminou na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978.
A história do Brasil também poderá ser reconhecida em documentos, como o lendário programa de sala do show Milagre dos Peixes, de 1974, de Milton Nascimento, com a banda Som Imaginário e a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal. O show é um marco na história da música brasileira, pois registra o momento do encontro de um artista popular com sua banda e uma orquestra sinfônica, proposta pouco usual no período, além de esse ser um álbum em que Milton abusou dos vocalizes na maior parte das faixas, todas censuradas pelo regime ditatorial da época.
Quem quiser conhecer mais a fundo a história dos documentos, no mesmo dia da abertura da exposição (8/12) será lançada a publicação do Núcleo de Acervo e Pesquisa: “Índice de Fontes: a presença negra no acervo do Theatro Municipal de São Paulo”.
Trazendo para o presente e para o espectador o protagonismo, cadeiras e holofotes se voltarão aos espectadores, que verá que a história não é única e tampouco fixa, se refaz e, com a articulação de testemunhos antes ideologicamente minimizados e mesmo silenciados, uma nova história surgirá a partir de nomes já conhecidos como Luiz Gama, Alvin Ailey, Milton Nascimento, Abdias do Nascimento, Elizeth Cardoso, Agostinho dos Santos, Elizete Cardoso, Art Blakey, Bobby McFerrin, Sarah Vaughan, Marian Anderson, Alvin Ailey, Charles Mingus, Earl Hines, Dizzy Gillespie. Dionne Warwick, Nancy Wilson, Winton Marsalys, Barbara Hendricks e de nomes anônimos, além da perspectiva do próprio público, convidado a pensar ele mesmo uma nova história que se reconfigura ao colocar os holofotes em nomes antes não convidados a protagonizar espaços como o Theatro. Um movimento de escuta que empresta muito da psicanálise, de descoberta, de revelações, reelaboração e emergir de novas narrativas.
EXPOSIÇÃO PRESENTE! – PRESENÇAS NEGRAS NO THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO
08 de dezembro de 2022 a 29 março de 2023
terças-feiras a sábados, das 10h às 18h
Sala de Exposições – Praça das Artes
Ingressos: gratuitos
Classificação livre para todos os públicos — Sem conteúdos potencialmente prejudiciais para qualquer faixa etária
(Carta Campinas com informações de divulgação)