.Por Christian Ribeiro.
Nesses tempos loucos e inacreditáveis em que os absurdos se tornam em padrões de sociabilidades e normas comportamentais, vivemos em uma era que até as piores perversidades acabam sendo relativizadas, quando não normalizadas. Obrigando com isso que se torne necessário defender o óbvio, mesmo com o risco de você ser perseguido e atacado por isso! Principalmente no chamado mundo do futebol, gerido por dirigentes e atletas e jornalistas esportivos que, salvo as raras exceções, parecem existir, ou se comportam como se habitassem em uma outra realidade. Paralela ou imune a todas as leis, e a todas as regras.
Faço esse destaque, no sentido de iniciar a problemática desse texto a partir do fato de que, nos últimos dias, a “Associação Atlética Ponte Preta”, clube de futebol de essência radicalmente popular e democrática, constituído pela luta dos marginalizados da história que habitavam as margens urbanas e sociais da cidade de Campinas, teve anunciada a contratação do atacante Dudu Hatamoto, indiciado por estupro enquanto defendia as cores do Botafogo de Ribeirão Preto. Uma negociação que está causando uma revolta nas hostes pontepretanas, que está cobrando o imediato cancelamento dessa operação, além de um pedido oficial de desculpas pela diretoria por esse ato sem defesa ou justificativa que além de depor contra a história da agremiação, representa uma violência explícita contra todas as mulheres, em especial das mulheres pontepretanas que são a alma e coração desse time!
Os nossos dirigentes, representados na figura máxima do atual presidente Marco Antônio Eberlin, não conhecem a história do próprio clube? Ou não se importam com ela? Pois, insisto, não há justificativa para a realização dessa contratação…
É revoltante ter o nome dessa pessoa relacionada com o nome da Ponte Preta, pois mesmo que ele não seja judicialmente condenado, ele já se encontra indiciado por estupro, pois houve prática de violência física e psicológica contra uma mulher. Devendo agora ser comprovado o “grau” desse crime, seus agravantes e intencionalidade. Mas que houve um ato de agressão violenta e abuso de gênero, não resta dúvida! E pela história desse time, em respeito e honra das mulheres que envergaram e envergam o manto alvinegro, é um acinte sem tamanho toda essa situação.
Único time no Brasil de caráter e alma feminina no futebol brasileiro, não à toa chamada de “veterana”, “Nega Véia”, “a mais querida”. Não sendo por acaso, que quando sua torcida ressignificou o sentido pejorativo e racista – “macacos” – que recebia de seus adversários, passaram a se identificar como os seguidores da “Macaca querida”! Isso, em meados da primeira década do século XX, levando multidões por onde se apresentava!
Como que esse time, com história tão bela e singular, desde sempre antirracista e democrático, fundado por negros e imigrantes europeus, entre os pântanos e brejos de Campinas, na região dos bucheiros e carroceiros. Desde sempre invisibilizados e ignorados em sua existência pelas elites locais, descendentes das famílias escravocratas. Agremiação formada por aqueles que deveriam não mais estar, não mais existir, de acordo com os planos de higienização racial e social que moldou o processo de modernização urbanística da cidade, mas que aqui estão e se reinventam em suas existências insurgentes, cotidianamente, por mais de século, através de seu amor irrestrito pela Ponte Preta!
Time de Donana, Ana Custódio da Silva, eterna torcedora símbolo, representante de suas melhores virtudes e valores, da dignidade e resistência que as mulheres negras tão bem simbolizam. Que sempre, sempre manifestava em alto e bom som, em todos os lugares e momentos, orgulhosamente, a sua condição de mulher negra e pontepretana. Numa sociedade racialmente partida pelo racismo e machismo! Os atuais dirigentes, possuem noção da grandiosidade dessa postura de vida da Donana? Do quanto ela influenciou, e ainda se faz enquanto referência para tantas mulheres da cidade? Que a Ponte Preta é muito mais do que um simples time de futebol?
E o quanto essa história, tão rica e pujante, não combina, não se molda a abrigar indiciado por ser violentador de mulheres? Qual a dificuldade em reconhecer isso? Qual a dificuldade em dar valor e respeitar a essa história, a esse legado de humanidade forjado na labuta de tanto ardor e sofrimento?
A esses ignorantes de coração e alma que hoje comandam os rumos da mais querida, vocês sabem quem foi Laudelina de Campos Melo? Sabem de sua importância e significados históricos? Uma verdadeira heroína na história de nosso país? Incansável batalhadora, baluarte referencial pelos direitos trabalhistas das empregadas domésticas e contra o racismo estrutural de nossa sociedade!
Adivinhem em qual local ela se sentiu acolhida e em casa, quando chegou de Santos, numa sociedade tradicionalmente inóspita com aqueles que considera indesejáveis? Em qual coletividade ela se fortaleceu e se fortalecia para sobreviver e lutar contra os desafios diários que se faziam comuns à sua vida? Qual foi a entidade que lhe deu abraço e conforto, além de tenros – mesmo que por vezes efêmeros – momentos de alegria? Vocês sabem que foi a Ponte Preta, não é? Já constituída em 1948 como representação viva e atuante das mulheres negras campineiras, que circulavam por suas arquibancadas e atividades de modo pioneiro, para um esporte tão representativo de nosso machismo, numa das cidades historicamente mais racistas do Brasil!
E vocês ousam cuspir nessa história tão bela, verdadeiramente magnífica, das milhares de Laudelinas que ajudaram na construção desse modo de ser? Dessa experiência de vida, que chamamos de Ponte Preta, contratando esse ser abjeto?
Dessa verdadeira paixão, que se renova de geração em geração, contra todas as probabilidades e lógicas, que leva hoje em dia, jovens mulheres a acompanhar todos os seus jogos, todos os seus momentos, em qualquer lugar ou situação! Entoando aos berros os eu hino? Sorrindo, sem medo ou pudores, pelo simples fato de existir a Ponte Preta! Inclusive criando um pelotão exclusivamente de mulheres, em uma de suas principais torcidas organizadas. Em época de altas taxas de feminicídios, cantam e entoam o orgulho de sua feminilidade, de sua própria condição humana, misturados a loas dedicadas a Ponte Preta! Será que as devidas pessoas da diretoria pontepretana, tem ciência disso? Percebem a noção de que isso não se dá por acaso, mas sim enquanto resultado de toda uma historicidade de lutas e resistências que vieram se personificar através “do time, que é muito mais que um time de futebol”? De um legado vivo e orgânico, que se renova de sempre, em sempre?
Uma entidade com essa história, de torcida tão orgulhosa de suas características humanísticas de ser eminentemente popular – um time do povo para o povo – radicalmente democrático, antirracista, pró negritude e antimachista em seu corpo e alma! Não pode aceitar em suas fileiras alguém que represente a negação de tudo que ela é! Não pode, de modo algum!
Do que adianta promover campanhas e mais campanhas de cunho social e político, que denunciam e combatem nossas mazelas e diferenças sociais. Reafirmando nosso compromisso em colaborar com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, e realizar uma contratação desse porte? Do que adianta fazer uma campanha contra a violência de gênero e o machismo, reafirmando a característica de se posicionar contra todas as formas de preconceitos do clube, e contratar uma pessoa com esse histórico para envergar as cores alvinegras?
Não estou nem abordando pelos prejuízos financeiros que tal situação acarretará a entidade, nem sobre a depreciação de sua marca, pois isso, a ferro e fogo, pouco importa! Pois não há preço que cubra, que valha a pena, em relação a violência a que essa diretoria está submetendo a sua própria torcida, em especial, as mulheres que são sua alma e maior força! Além de jogar no lixo a sua própria história, o seu próprio legado, ao dar apoio e suporte, ao dar alento e sustentação, visibilidade e moral a alguém que é a depreciação viva de sua própria existência!
Vocês conseguem ter empatia, de se colocar no lugar de qualquer mulher vitimada? Por qualquer mulher que tenha sofrido qualquer tipo de abuso e violência? Vocês imaginam como nossas torcedoras estão se sentindo totalmente desrespeitadas e desprezadas no meio dessa situação absurda? De estarem submetidas a tal realidade justamente pela instituição a qual tanto amam e dignificam? O que passa na cabeça de vocês para realizarem tal sandice? Falta discernimento, bom senso? Ou, é conivência descarada com ato tão brutal?
Não existe passar pano para situações de estupro! Não existe benevolência ou paciência em uma situação como essa! Não existe respeito ou ponderação a estes tipos de seres travestidos de pessoa! A mais querida não merece, passar por isso, em nenhuma hipótese! Essa é uma daquelas situações extremas, em que você é a favor ou contra alguma situação/realidade. Não há espaço para isenção ou neutralidade! E a torcida da Ponte, já se manifesta, enfurecida, de que em nenhuma realidade ou imaginário, em hipótese alguma, a Ponte Preta não é, nem nunca será, guarida de indiciado por estupro!
Que a atual diretoria deixe de ser guiada por uma vaidade cega e tola, numa postura de não diálogo, de se fazer surda ante as vontades e sabedorias de seu povo. Do povo das arquibancadas, das gerais da vida! Voz e alma dessa paixão encarnada, que parecem estar fazendo de tudo para destruir, mas que continuará, mais viva e forte do que nunca, apesar de vocês!
Retratem-se, venham ao público, não sejam omissos ante a realidade que vocês mesmo criaram! E encarem as consequências de seus atos… Cada minuto que passa, agindo como se nada estivesse acontecendo, os deixam cada vez menores em sua estrutura moral! Cada vez menores e insignificantes em sua mesquinharia e covardia!
Por Donana, por Laudelina, e por tantas e tantas mulheres, que sempre se fizeram presentes em suas lutas e resistências de mais de século! Que dão vida e sentido a mais querida, e mais amada “Nega Véia” do Brasil!
Por elas, pela nossa história, nos respeitem e nos honrem!
Ponte Preta não é casa de indiciado por estupro!
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Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.