Carta aberta a José Múcio Monteiro

.Por Roberto Amaral.

Caro amigo,

Venho denunciar a perseguição política que de forma insidiosa e covarde, como toda perseguição política,  escalões superiores do exército do Estado brasileiro movem contra oficial que se tem destacado pela defesa da legalidade democrático-republicana. Legalidade seguidamente ofendida pelos seus algozes, e cujo império cumpre restabelecer. São esses, ministro, os nossos tempos: a ilegalidade governa e pune os que defendem a ordem democrática.

José Múcio (foto divulgação)


 Denuncio o processo kafkiano com o qual o torturam, torturam seus familiares e ameaçam seus amigos, e peço sua intervenção enérgica, já no dia 1º de janeiro, quando, espera a nação cansada (mas ainda cheia de esperanças), estaremos retomando a interminável construção da democracia brasileira. Uma obra de Sísifo, pois, quando mais a supomos consolidada, mais a vemos ameaçada, como ainda agora. E mais ameaçada é a democracia quando a política partidária e a indisciplina, insuflada por oficiais-generais em comando, dominam os quartéis, tradicionalmente afeitos, em nosso país, à insubordinação e à insurgência.
Árdua é a tarefa que o aguarda.
A infâmia que denuncio ocorre aí, ao seu lado, no Recife, mas no silêncio dos quartéis, onde age impunemente a prepotência, e onde tanto agiu, em tempos que não podemos esquecer, a tortura de quantos pernambucanos e brasileiros de todos os quadrantes, muitos nossos amigos ou conhecidos, imolados na luta contra a ditadura militar instalada a partir do golpe de 1º de abril. Luta a qual, em novos termos, tivemos de retomar, desta feita para impedir a continuidade do projeto protofascista civil-militar instalado a partir do golpe que depôs Dilma Rousseff, a cujo governo servimos, cada um do seu modo. Luta que agora lhe incumbe dar continuidade  no desempenho de missão histórica que lhe delega o presidente Lula como depositário da vontade da nação, expressa no pleito de outubro último. Os velhos métodos do autoritarismo militar  – como as cassações de mandatos, as aposentadorias tanto quanto  as reformas compulsórias – são substituídos pela tentativa de, mediante punições disciplinares desamparadas de arrimo legal, enlamear a biografia de um oficial exemplar. Conhecendo os fatos, e apurando-os, a dignidade nos manda agir. Omitindo-nos, nos transformaríamos em cúmplices.


A  vítima da vez é o coronel da reserva Marcelo Pimentel, seu conterrâneo, e seu vizinho, cuja carreira – 38 anos na ativa do exército, 30 como oficial – encerrou como chefe do estado-maior no Comando da 7ª Região Militar, em Recife.
Marcelo Pimentel – como não lhe será difícil apurar – foi instrutor, comandante do curso de artilharia e chefe da divisão de ensino em CPOR, capitão comandante de bateria de obuses, oficial de estado-maior em brigada de infantaria, comandante de grupo de artilharia de campanha, ordenador de despesas, adido de defesa e do exército em missão no exterior. Seguiu com louvor todos os cursos  requeridos a um coronel do quadro do estado-maior, sempre promovido por merecimento. Finalmente, concorreu em primeiro lugar à promoção ao generalato.


É esse o oficial que a nomenclatura bolsonarista do exército, ainda governante, tenta ofender. Exatamente por isso: por haver sido, o coronel Marcelo, na ativa, um oficial brilhante, legalista e democrata; por continuar a ser, na reserva, um oficial democrata e legalista a quem desagrada a perniciosa partidarização da forças armadas que a desvia de suas finalidades constitucionais, ora  intervindo na vida civil, ora forcejando pelo inaceitável statu de autarquia política na democracia republicana – que, contra os quarteis, a nação tenta construir desde o golpe de 1889. O legalismo democrático,  que hoje é desvio para o estamento ainda governante, haverá de ser, no novo governo, com você no comando da defesa, o modelo do bom oficial. Mas é este modelo que se pretende abater punindo um oficial legalista, e eis o que lhe peço evitar.
A formação castrense de Marcelo Pimentel foi completada pela vida universitária e o curso de direito que o ajudou a compreender o significado do golpe de 1964. Na reserva, livre das justas amarras que limitam, ou deveriam limitar, a atividade político-partidária do oficial da ativa (restrição ignorada pela súcia fardada que comanda o país a partir do terceiro andar do palácio do planalto), dedicou-se à defesa da democracia e da disciplina militar quebrada pela criminosa radicalização do exército pela direita, obra de seus chefes graduados. As consequências, nos limites da tragédia, foram vividas nos últimos quatro anos, e, com os dados de hoje, ainda é justo temer sua sobrevivência no novo governo.
De que é acusado o coronel da reserva Marcelo Pimentel?
De em debates, palestras e artigos, em estudos acadêmicos, classificar como golpe de estado parlamentar a deposição de Dilma Rousseff, violência que, sabemos todos, contou com o decisivo  aval de oficiais do alto comando sob a liderança do próprio comandante do exército, o general Villas-Bôas. Que, não obstante suas circunstâncias pessoais, continua ameaçando o país com novas intervenções militares.
Oficiais da ativa comprometidos com a continuidade do projeto protofascista não tergiversam quando se trata de, contra a lei e o regimento disciplinar, filiar-se a pregações partidárias e golpistas.  Assim se destacam, entre muitos, o  atual ministro da defesa, os três comandantes das armas e figuras menores como o general comandante da 10ª região militar, dando o tom da insubordinação que contamina o conjunto da tropa, adestrada para a obediência como reflexo condicionado. Descumprem a lei e o regimento disciplinar do exército, ao tempo que negam as garantias da Lei n° 7.524/86, que garante ao “militar inativo o direito à livre expressão do pensamento e da opinião sobre temas políticos, filosóficos, ideológicos e de interesse público, independentemente das disposições dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas”. Esse direito está sendo negado ao coronel Marcelo Pimentel, e por isso vem ele colecionando processos e punições (contam-se em cinco), tanto constrangedoras quanto ilegais, todas violadoras dos princípios constitucionais que asseguram o direito à livre manifestação do pensamento. O objetivo é humilhar, intimidar. É a arte clássica do autoritarismo amparado na força.
Marcelo Pimentel é acusado ora de “desrespeitar superior hierárquico”, ora “de ofender Instituição-Exército”, por criticar, em artigo de jornal, a bolsonarização do exército e a participação de oficiais da ativa e da reserva na campanha eleitoral de 2018. É punido por haver aplaudido artigo publicado no Estadão no qual o autor, um acadêmico, oferece crítica à conduta de oficiais do exército nominados por desmandos no relatório final da CPI da Covid.
A questão central é o anacrônico, impróprio, indevido, antirregimental e ilegal protagonismo político-partidário das cúpulas hierárquicas das forças armadas, amesquinhando as corporações ao transformá-las em partido político e fazer dos quartéis verdadeiros comitês-eleitorais, como foram  nas eleições de 2018 e 2022. A história republicana registra quão nociva é essa partidarização, e exige nosso permanente combate.
Por que punir Marcelo Pimentel, que defende a ordem constitucional, e não aqueles que a tentam fraturar?
Despreocupados com o tráfico de cocaína em aviões da FAB – vimos esse transporte até em aeronave presidencial – os serviços de inteligência não cessam de monitorar o coronel Pimentel, que vem a ser processado por haver produzido um tweet no qual faz restrições à nota-manifesto do insubordinado atual ministro da defesa (seguida de manifestação de igual teor e ilegalidade assinada pelos chefes das três forças) criticando o sistema eleitoral e a segurança da votação mediante as urnas eletrônicas, jogando assim mais lenha na pregação golpista do candidato à reeleição derrotado.
Pretexto após pretexto, o coronel Pimentel é agora punido por “publicar ato ou fato militar que possa contribuir para o desprestígio das forças armadas”. Sua indisciplina foi o registro na demora de atendimento de seu pai, em tratamento de um câncer, em hospital militar. Não se apura a eventual negligência do serviço público essencial, mas, pasme, a reclamação da vítima!
Está à vista que se trata de perseguição politica, inominável por definição, que não podemos admitir. Conheço esses fatos e os levo ao seu conhecimento porque me foram relatados pela vítima. Mas quantas outras muitas violências devem estar correndo Brasil afora, livres da denúncia da publicidade e fora do alcance do novo ministro da defesa? A perseguição ao coronel Marcelo Pimentel não pode ser vista como fato isolado, mas sua denúncia é oferecida como ponto de partida de uma ação enérgica que se reclama  do futuro ministro da defesa do governo democrático do presidente Lula para impedir a continuidade da ignomínia, pois não há conciliação possível com o inconciliável, tanto quanto é inconcebível a acomodação de forças antagônicas. Se não é possível punir os criminosos – admitamos apenas por argumentar –, que pelo menos possamos proteger suas vítimas.
Receba um abraço esperançoso deste seu amigo.
Roberto Amaral