.Por Marcelo Mattos.
É preciso falar de Gal. É imprescindível, é absolutamente preciso falar em Gal. O cenário musical brasileiro é repleto de monumentais cantoras que povoaram a nossa memória radiofônica com o timbre feminino, com Aracy, Dalva, Carmen, Ângela, Emilinha, Elizeth, Ademilde, Dircinha… Muito antes da difusão em vitrolas e toca-discos de vinil de 7 e 12 polegadas, o canto sublimado dessas cantoras magníficas preenchiam as salas, cozinhas, noites e quintais.
Na década dos anos 60 aconteceram inúmeras mudanças estéticas, culturais e políticas no cenário mundial: o auge da Guerra Fria, Vietnã, Camboja, a Contracultura, Woodstock, as sintonias das experiências lisérgicas, rock and roll, a Bossa Nova (o Amor, o Sorriso e a Flor), Lunik 9 e Apolo 11 tornando o espaço sideral tão terreno, a emancipação feminina do Mouvement de Libération (MLF), enquanto no Brasil um terrível Golpe Militar nos assombrava e o Tropicalismo (in)surgia.
Outras novas canções e cantoras despontam na constelação musical: Elis, Bethania, Elza, Beth, Clementina, Rita, Clara e Maria da Graça Penna Burgos Costa, Gal, Gracinha, a voz de encantamento única, a ultrassonoridade dos espectros de sensações vibrando nos nossos tecidos, intramuscular, epidérmico, imaterial, transcendente ou transcendendo todos os sentidos, tocando a transa transparente da alma.
Gal foi muitas e tantas ao longo de uma carreira artística irretocável: Barbarella, Dulcinéia dos alísios e o mó movente das canções circulares, o “mo” bárbaro dos seus imensos lábios carmim, tempo onde se falar de amor era um gesto por demais ousado e político (quase subversivo), tempo de exílios, de dor guardada num violão dissonante, num disco rodando na vitrola e uma quase-felicidade inventada.
Dos seus 40 maravilhosos discos, do inicial LP de 1967, “Domingo”, gravado com o mano Caetano, até “Nenhuma Dor”, álbum derradeiro de 2021 para comemorar os seus 75 anos, traz Avarandado, Coração Vagabundo e Nenhuma Dor, as três (coincidente?) integrantes do seu primeiro long-play. Claro que diante de centenas de gravações e um repertório tão múltiplo, encontraremos sempre distintas preferências, arranjos, timbres e registros diversos.
Eu, tocado pela tristeza da perda, da saudade de um passado quente e das lágrimas nuventes, arrisco a eleger os meus três angulares LPs:
Gal Costa (de 1968, com Não Identificado; Lost in the Paradise; Baby e Divino, Maravilhoso, arranjos de Rogério Duprat e do magnífico Lanny Gordin);
Legal (de 1970, traz Eu Sou Terrível; Hotel das Estrelas; London, London, arranjos de Lanny e Jards Macalé); e
-FA-TAL- Gal a Todo Valor (de 1971, mescla de regionalismo e uma modernidade pós-tropicalista. Este álbum duplo traz o registro ao vivo da temporada do show homônimo apresentado no teatro Tereza Raquel/RJ, com Pérola Negra, do jovem Luiz Melodia; Como 2 e 2; Antonico; Sua Estupidez; Vapor Barato; Mal Secreto).
Gal nos deixou num momento de esperanças latentes e sonhos por se fazer. Por fim, se eu pudesse cantar uma só musiquinha para lembrá-la, eu buscaria uma que está no final do LP Cantar (também incrivelmente belo), a linda “Chululu”, que sua mãe Mariah cantava para lhe ninar. Durma em paz, minha flor, minha tão querida voz, doce Gal.
Artigo perfeito !!
De fato, Gal faz parte de uma plêiade de cantoras monumentais.
Sua voz era um misto de encando, fascínio e sedução.
Toda sua produção musical marcou época, atravessou gerações e será certamente eterna.
Que Deus a tenha em um bom lugar, pois para quem tem fé, a vida nunca tem fim.