.Por Christian Ribeiro.

Todo artista engajado, no sentido de buscar compreender e problematizar as tensões e contradições de sua realidade, acaba por tecer um processo criativo que se encontre organicamente inserida a realidade histórica social que acabou por influenciar na sua própria constituição tanto como artista em si, quanto, principalmente, como cidadão. Nem que seja para própria negação ou superação dessa mesma realidade a qual se faz pertencer. Engajamento que o faz não para manter-se equidistante das diferentes realidades que se manifestam e interagem em seu entorno. Por isso não podendo nem ele, e muito menos a sua obra, se manter indiferentes, neutros, perante um mundo em constante disputa e transformação.

Nesse sentido que interpretamos Luiz Geraldo Ferrari Martins1, vulgo Luiz Gê, como um dos artistas que melhor simbolizam essa representação simbólica, que se dá entre um autor e a sua obra. Senhor de uma autoria crítica compromissada para além da noção simplista e utilitarista de arte a qual comumente estamos acostumados. Para além de um discurso padrão de denúncia ou contestação, visando assim contribuir decisivamente para a superação de nosso conjunto de mazelas – como a fome, a miséria, a violência urbana, a o racismo – que caracterizam, ao longo dos séculos os cotidianos sociais da sociedade brasileira.

(imagens – autor – facebook – div)

Por isso, mesmo Luiz Gê pertencendo a uma geração de desenhistas/cartunistas engendrados por uma perspectiva – por vezes reducionista e imprecisa – de contra o sistema e de combatente ante ao regime ditatorial civil-militar de 1964-1985, caracterizada pela ironia mordaz de Angeli ou a agudez crítica de Laerte, sua obra sempre teve o discurso lírico poético mais agressivo, intencionalmente crítica, em sentido radicalmente libertário. Obra ácida, incomoda, que tensiona e renega aos padrões vigentes. Por vezes nos dando a impressão de que o que mais se fazia valer em sua arte era a sua expressividade contestatória, o que acabava por obstruir a perspectiva do quanto esta se fazia constituir enquanto arte utópica em sua perspectiva histórica de que a ordem social ditatorial de então se faria ruir, de que não há mal que dure para frente.

Uma forma de conceito e expressão artística que não se fazia menor, ou inferior, por se dar a partir destes parâmetros. Mas que se específica e se destaca por esta premissa, ainda mais num país em que explicitar os seus conceitos e ideário, em especial quando de viés progressista e de confrontação ao nosso elitismo, nunca é visto ou compreendido com “bons olhos”. Exercício crítico de uma arte que não se envergonha de ser, e manifestar, política. Mas sem que isso na perda de sua capacidade lírica e poética, não afetando o seu domínio de traço. Nem o seu desenvolvimento de quadros, perspectivas e, principalmente, narrativas.

Obra essa que acabou por refletir o amadurecimento, além de um refinamento, do arcabouço artístico e teórico de seu autor, e do ampliar de sua maestria no uso e potencialidades de suas ferramentas de ofício. Dessa forma atravessando décadas de tantas incertezas políticas, tensões sociais, sempre constantes ao nosso cotidiano de sociedade nada cordial, nada harmoniosa que de fato somos.

A arte de Luiz Gê é um constante incomodo, um desmascaro sem pudor de nossa hipocrisia social. Sem nunca ter perdido ou desvirtuado, ao longo de sua carreira, o seu compromisso de contribuir para a constituição de uma efetiva e qualitativa transformação do Brasil enquanto nação, no sentido de radicalização democrática, justiça social e respeito/defesa dos direitos humanos. Quantos artistas mantém esses ideais em constância por mais de quatro décadas de atuação profissional. Ainda mais num país de relações históricas e políticas baseadas em favores e compadrios, sempre em prevalência da manutenção e reprodução de nossa ordem social arcaica e reacionária? Mesmo que isso representa-se na prática uma menor visibilidade e circulação de sua obra, mesmo em comparação aos seus pares de geração?

Um artista que atravessou variantes e tormentas, mas sem perder tanto o furor criativo, quanto o prumo de sua integridade artística. O que nos permite situá-lo por um viés que não compactua com as mesmas definições burguesas de sempre, que buscam homogeneizar todo artista que não se enquadra ao seu escopo conceitual ou teórico referencial – amorfo e acrítico – por isso preferindo desenhá-lo como um autor que não foge de seu tempo. Que responde, interage, questiona, ao mesmo tempo em que acaba por alterar tanto a si, quanto ao mundo que o cerca, nesse processo de reconstrução artística constante inerente a sua obra. Um exemplo raro em essência e práxis, de um verdadeiro intérprete das complexidades e contradições da sociedade brasileira, que nos últimos anos, em especial após as “jornadas de junho de 2013”, tem produzido charges, cartuns, além de entrevistas, em que torna pública suas percepções sobre a realidade política e social ultraconservadora que começou a tomar conta do país. Mesmo que por vezes suas posições argutas tenham entrado em contraposição as interpretações políticas hegemônicas, mais tradicionais, que pautaram o campo progressista intelectual-cultural nesse mesmo período histórico. Numa típica inquietude inerente aos inconformados, que não se deixam enganar por falsas aparências, ou que não perdem o alcance e o foco, perante as pulsões que abrupta em nosso tecido social.

O que nos explica, perante o momento de atordoamento, que os resultados eleitorais de 03 de outubro representaram inicialmente aos campos democráticos de nossa sociedade, a desenvoltura com que Luiz Gê – em perfeita sintonia com a sua trajetória e legado – não se omitiu em retratar a gravidade, e o perigo que as urnas anunciaram em plena noite de domingo. Sem a necessidade de nenhuma linguagem escrita, deu forma a uma narrativa de charges sequenciais2, em que nos apresenta um palhaço Bozo, emergido em meio a uma sociedade. Que começa a ser admirado, quase que em sentido de reverência, como uma divindade. Acima do bem e de – qualquer – mal. Sendo em êxtase aplaudido, enquanto sadicamente pisoteia a população que inebriada por seu próprio tormento, celebra a sua própria morte, sem se importar com a desgraça que se abate sobre ela.

BOZO, DESTRUINDO A BOZOLÂNDIA!

(imagem luiz gê – autor)

Uma alegoria acida, de humor tétrico, funesto e desesperançoso, não enquanto submissão total e irrestrita ante o mal encarnado que hoje nos (des)governa. Mas sim, em verdade, como recorte artístico sobre um dos tantos aspectos de nossas incongruências estruturais que tomaram sentido – pois existir, sempre existiram – discursivo, articulado e representação simbólica através do bolsonarismo. Por isso sendo as charges em seu conjunto, constituídas, através de uma perspectiva marxista sobre nossa alienação social, tal qual um alerta daquilo que realmente poderá se dar de maneira irreversível. Com tudo se acabando tal qual um show decadente, de um palhaço sem graça que se diverte a custas das dores e mortes de todos que habitam a sua volta, inclusive de seus próprios fãs, de seus próprios seguidores, que morrem felizes agraciados em sua própria ignorância… Tudo isso para deleite de uma elite rentista e especulativa, chucra em sua soberba, tão assassina quanto o seu palhaço de morte. Que hoje, mais do que nunca, não se importam com os destinos daqueles a quem nunca tratou ou ao menos considerou, enquanto seres humanos.

Luiz Gê, poeticamente nos indaga, se ainda vamos continuar esperando para ver se o “Bozo, chegou! Trazendo alegria para você”3 que esperou!” Se aprendemos com os conjuntos de tragédias que se manifestam dia após dia, ante aos nossos olhos. E que assim possamos ser fonte de inspiração para o velho mestre, para a confecção de tiras que nos apontem um outro desfecho, em que pelo menos possamos voltar a almejar termos o direito de sermos felizes. Ou será que até isso é esperar demais nos dias de hoje?

O resultado do próximo dia trinta de outubro, nos trará a resposta que dará fim a este dilema. E que dessa vez não seja o palhaço a sorrir por último!

Referências:

1 Nascido na cidade de São Paulo em 1951, artista gráfico, ilustrador, chargista e quadrinista, um dos referenciais, em conjunto de Angeli e Laerte, da chamada cena paulista de cartunistas dos anos 1970. Sendo um dos fundadores e diretor da Revista Balão (1972-1975) e posteriormente editor da Revista Circo (1986-1987), publicações referências do universo quadrinhístico brasileiro. Além de trabalhar para os principais órgãos da mídia impressa do país, como, dentre outros, “O Estado de São Paulo”, “Jornal do Brasil”, “Revista Veja”, “Revista Isto É”, “Revista Placar”.

2 Conjunto este intitulado por nós de: “Bozo, destruindo a Bozolândia!”

3 Trecho adaptado da letra original da canção tema da abertura do programa Bozo, apresentado pelo antigo canal televisivo TVS, atual SBT. Sendo a letra, em sua integra: “Alô criançada, o Bozo chegou. Trazendo alegria pra vocês e o vovô. Estamos trazendo muito amor/1,2,3 3 vamos nós/Eu sou o palhaço, meu nome é Bozo. Bozo, Bozo, vamos brincar. Sempre rindo eu e vocês. Eu sou o Bozo, o palhaço de todos vocês/Vamos amigos, vamos cantar, Lá, lá, lá…/Cantar e alegria/Cantemos também, cantemos também, cantem, cantem, cantem, como nós/Estamos prontos, vamos nós, cantem comigo, brinque também…