O caso Giovanna Ewbank e a máscara de quem nós somos: a revolta da mulher branca é aplaudida e inspira, a revolta da mulher negra é desprezada e ridicularizada!

.Por Christian Ribeiro.

Antes de mais nada, que fique bem exposto para afim de se evitar ilações outras, a atitude da atriz Giovanna Ewbank ao defender seus filhos das ofensas racistas de uma “cidadã de bem” lusitana em um restaurante praiano português merece todos os elogios e é sim um exemplo de como uma pessoa não negra, que se diz antirracista, deve se portar ante tais situações. Não houve contemporização ou mediação de qualquer tipo, enfrentamento firme e direto, até mesmo fisicamente, pois não se derrota racismo com – “apenas” – discursos e manifestos. O confronto direto, até mesmo enquanto forma de intimidação e posicionamento de confrontação, é mais que necessário, se faz fundamental. Então, todas as loas por sua atitude, de uma mãe defendendo aos seus filhos de ato tão desprezível. Que a tal ato não se faça uma ressalva, mas que se pondere a repercussão que ele tomou e os sentidos que esse caso nos revela sobre a hipocrisia da sociedade brasileira, quando exposta a manifestações racistas.

(foto de vídeo – reprodução)

Inicio esse processo de ponderação através de uma provocação… Se esse crime – sim, racismo é crime, e sempre se faz necessário destacar isso, ainda mais nos tempos de hoje – fosse cometido em terras brasileiras, teríamos tamanha comoção nas mídias? O engajamento de solidariedade e repúdio ante ao ocorrido se daria nessa proporção? Pois não nos esqueçamos de que temos como característica, enquanto sociedade, de sempre repudiar e condenar ações socialmente repugnantes quando ela se dá em terras estrangeiras. Pois assim condenamos nos outros aquilo que não temos coragem de enxergarmos em nós mesmos. Fora que, ironia de nossas contradições, as manifestações de solidariedade relacionadas ao caso estão carregadas de xenofobismo, como se a agressora e Portugal fossem portadores exclusivos desse mal chamado racismo.

O que nos amarra a mais uma de nossas provocações, se tal caso houvesse ocorrido em terras brasileiras, teria havido tamanha consternação? É só analisar os tantos casos de racismo manifestados nos últimos anos e percebe-se que há uma indignação restrita e seletiva que se faz pública pelas mídias brasileiras e redes sociais, como se houvesse um padrão de indignação a ser seguido, mostrando-se um compromisso antirracista e indignação ante a tais fatos, mas dentro de uma “normalidade”. Ocorre uma grita, reportagens sobre o ocorrido, entrevistas com a vítima e o agressor, sempre “no sentido de querer entender o que levou a tal situação” e depois nunca mais se houve qualquer novidade sobre o andamento das investigações, se houve instauração de processos ou execução de penas. Nem ocorre uma tentativa de debate sobre a necessidade de reformulação e maior rigor da aplicação das leis antirracistas e contra preconceitos/discriminações no país. Sendo o Brasil um país em que racista – quando muito – é sempre o outro, isso não é de se estranhar, pois é a norma que se mascara em campanhas de combate ao racismo ou pelo respeito as diversidades e diferenças, mas que não combatem de fato a estrutura histórica e social de nosso racismo que nos caracteriza e nos forma enquanto sociedade discriminatória.

Racismo esse que nos baliza em nossas relações sociais cotidianas, que se emaranham as nossas origens também patriarcais e senhoriais. E que afetam diretamente a maneira como as mulheres negras são vistas e compreendidas. O que nos explica a construção de estereótipos de associá-las sempre a personas de descontroles, instabilidades emocionais, destruidoras de lares e casamentos, a infiel ou amante, escrava sexual, libertina e perigosa… Desumanização por completa de seu ser, que se reflete quando se olha criticamente que essas mulheres são as que ocupam os estratos sociais mais baixos de nossa estrutura social.

Imagem sempre associada ao que não é certo, ao que não é correto, ao que não merece crédito ou importância. Há toda uma construção simbólica secular nesse sentido, que se radicalizou e aprofundou com nossa inserção ao modelo capitalista periférico com a instauração da República em 1889, um círculo vicioso que para não ter fim! Não sendo por acaso que as manifestações de mulheres negras nas mais variadas mídias são as mais desacreditadas e atacadas em sua credibilidade. Sem contar os ataques racistas sistemáticos que sofrem pelo simples fato de ocuparem espaços, de circularem por lugares que acreditam não ser para elas.

Situações que revelam muito do que somos enquanto sociedade, do que somos enquanto um país em que a fala, o relato de uma mulher branca ganha apoio, solidariedade e reflexão descomunal das mais variadas mídias, ao tornar pública sua indignação e revolta perante o racismo aos quais seus filhos foram submetidos. E dentre seu sincero e sentido depoimento, uma das suas falas que mais chamou atenção foi a sua constatação de que se tal comportamento e discurso fosse feito por uma mulher negra, não haveria tanta repercussão ou empatia pelo público. O que a intelectualidade e militância política negra, em especial as suas vozes femininas, tanto explana, a tempos, com uma série de produções teóricas, historicidades e historiografias constituídas abordando e problematizando as diferentes manifestações do racismo no Brasil, mas que sempre acabam relativizadas ou ignoradas em seus sentidos e importâncias. Fora que grande parte da imprensa, deu mais ênfase ao protagonismo antirracista da Giovanna Ewbank, do que o ato racista em si ou, principalmente, em demonstrar preocupação com o bem-estar emocional e psicológico de suas crianças, as principais vítimas – importante frisar – dessa revoltante situação.

O que nos faz desenvolver nossa última e principal problematização, se Giovanna Ewbank fosse uma mulher negra, teríamos essa repercussão em um caso semelhante? Em outras palavras… A dor e raiva de uma mulher branca causa empatia e solidariedade, a dor e raiva de uma mulher negra causa desprezo e chacota!

Antes que se pondere qualquer posição adversa a minha ponderação, sei que a família dela e em especial seus filhos negros, sofrem ataques sistemáticos de racismo. Até mesmo em meio a tantas manifestações de apoio que o caso atual desperta, há uma série de comentários ofensivos e criminosos de cunho racista circulando pela internet. Isso é fato e não ponho isso em dúvida, o que situo e questiono que tal solidariedade e empatia não se dá na mesma medida e sentido quando envolve a dor de uma mulher negra, vide a repercussão que Taís Araújo sofre quando defende seus filhos dos mesmos ataques e comentários. Não estou, nesse momento, nem comparando com situações envolvendo mulheres negras anônimas em suas (sobre)vivências.

Mas abordo essa realidade, não pela ótica desses racistas covardes, que se escondem no anonimato da internet ou pela noção deturpada de direito de expressão que promulgam como subterfúgio para manifestar livremente o seu racismo e preconceitos. Pois a estes só reservo o mais profundo desprezo! Eu desenvolvo minha reflexão levando em consideração “as pessoas comuns”, o “público em geral”, os que não se manifestam como racistas.

O texto, portanto, questiona o comportamento daqueles que possuem até uma discursiva antirracista, dos que chegam até a dizer que “gostariam de ser negros”, que postam em suas redes mensagens de combate ao racismo, de que “todos somos humanos”, de que “vidas negras importam”… Mas que são incapazes de demonstrar o menor apoio e respeito aos saberes, as dores e sentimentos manifestados por pessoas negras. Para elas é tudo “mimimi”, “chororó”, “vitimismo”, “radicalização demais”. São o tipo de pessoas que promulgam os comentários do tipo “nossa, qualquer coisa agora é racismo” ou “veja bem, essa história de racismo é complicado, melhor não mexer … Que diz “não suportar mais ouvir falar de racismo em tudo que é lugar”, que chama toda pessoa negra que fala sobre racismo, preconceito ou discriminação de militante ou lacradora, mas enaltece e reproduz os discursos de figuras brancas como Luciano Huck ou Tiago Leifert, como exemplos a serem seguidos de uma verdadeira luta antirracista.

É a máscara social e cultural que sempre vestimos quando nos vimos confrontados ante ao racismo, enaltecedora de um exercício teórico, de um bom mocismo, de um comportamento aparentemente compromissado contra tal fenômeno histórico-estrutural de nossa sociedade, no respeito as historicidades e culturas negras. Mas que na realidade, de fato, nada contribuem para romper com os grilhões racistas, cada vez mais vivos e atuantes em nossa atualidade!

Não pode haver uma diferenciação e privilégio perante a dor de qualquer pessoa branca que se indigne ante a ocorrência do racismo, ante a mesma experiência vivida organicamente e a toda hora e momento por qualquer pessoa negra. A atitude de Ewbank pode e deve ser exaltada como de uma pessoa compromissada de fato em lutar literalmente contra o racismo, de uma mãe que defende suas crianças com unhas e dentes diante de tal crime. Mas é inaceitável que quando isso é realizado por uma mulher negra, tal situação se torna alvo de zombarias, deboches e desqualificações. Situando-a como exemplo de pessoa “desequilibrada”, “destemperada”, “surtada”, quando não “barraqueira” ou “neg(r)a maluca”, pelas mesmas pessoas que tem posição tão diferente quando a cor da pessoa atingida ou que se posiciona pelo racismo não é negra, mas sim branca, se for “famosa” então…

Toda minha solidariedade a Giovanna Ewbank pelo que ela e sua família passaram, todo conforto e suporte do mundo, em especial, aos seus filhos Titi e Bless, mas não façam desse caso uma dor maior do que vivem, a séculos, milhares – ou seriam milhões? – de mulheres negras ao longo da história de nosso país. E que possamos aprender como esse caso fala tanto sobre a nossa hipocrisia racial e social, o quanto nos revela os privilégios de nossa branquitude, mesmo na hora de dor e desespero. Colocando, literalmente, as claras, como somos uma sociedade de fato racista. Pois se tal não fosse verdade, a dor de uma mulher não seria mais respeitada e sentida do que a outra. Enquanto a dor de, enfatizamos, uma única mulher branca gera mais empatia e solidariedade, e a todas as mulheres negras geram escárnio e desprezo, continuaremos a ser uma sociedade que realiza da forma mais natural possível, resvalando em hipocrisia, o genocídio diário de sua população afro-brasileira, através da objetificação e desumanização de seus sujeitos, e, como nos situa esse caso, pela invisibilização e silenciamento sistêmica de suas mulheres.

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Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.