.Por Valério da Cunha Oliveira.
“Estamos sendo bombardeados todos os dias. Então, por que o ocidente só se preocupa com a Ucrânia? É porque não temos cabelos louros e olhos azuis como os ucranianos? Vertem lágrimas pelos ucranianos, mas ignoram nossas tragédias. Quanta hipocrisia e racismo!”
Ahmed Tamri, um pai Yemenita.
Ao momento em que escrevo, já se passaram semanas da operação especial russa na Ucrânia. No meu artigo anterior, “Rússia, Ucrânia e o Jogo de Xadrez”, escrito ao início da guerra, comento rapidamente acerca das falácias da imprensa hegemônica e sua capacidade de deformar mentalidades através de mentiras intensamente repetidas, tornadas atualmente prática corriqueira. Tal metodologia é tão eficiente, que podemos percebê-la funcionando num amplo espectro político, social e cultural, da direita à esquerda. Trata-se de uma máquina que não informa, mas deforma com enorme competência1. Vejamos como isso funciona.
A atual filosofia da imprensa globalista moderna tem raízes profundas. Nasceu e se desenvolveu em festas e reuniões nos palacetes de William R. Hearst durante o apogeu das ideias de Edward Bernays, um dos teóricos que fundamentaram a máquina de propaganda nazista. O ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, resumiu com maestria sua essência: “repita uma mentira mil vezes e ela se tornará verdade”. Após 70 anos, a imprensa hegemônica ocidental levou à perfeição a técnica, já agora acrescida de engenhosa lapidação neurolinguística com as técnicas de “operações psicológicas” em redes sociais. Está tudo bem descrito em trabalhos acadêmicos das universidades do império, nos manuais da RAND Corporation e nas ordens circulares do exército norte americano. São conhecidas como “psychological operations” ou “PsyOps”, sendo estas um dos capítulos da guerra híbrida2.
PsyOps foram utilizadas no Brasil, por exemplo, na preparação das jornadas de 2013, passando pelo impedimento de Dilma Rousseff até a prisão de Luís Inácio da Silva e a eleição de Jair Bolsonaro. O mesmo aconteceu na Ucrânia, com o golpe de estado que apeou de forma violenta Víctor Yanukovich e guindou extremistas de direita ao poder. Nestes eventos do Brasil, incluindo as eleições de 2018, o guia foi um funcionário da empresa Cambridge Analytica especialista em redes sociais, Steve Bannon. As operações são tracionadas com generosas doações de dólares a ONGs e instituições nativas responsáveis por levar a cabo a agitação social e a polarização política. Poderia citar aqui dezenas de outras situações, desde o incremento de históricas rivalidades étnicas na Iugoslávia, que precederam a intervenção da OTAN, até as primaveras árabes e as revoluções coloridas.
Lembro-me de ter assistido há alguns anos o vídeo de uma reunião de alto nível entre John Kerry, então secretário de relações exteriores de Barack Obama, de um lado, e Vladimir Putin e Sergei Lavrov, de outro, sendo que o presidente Russo, naquela ocasião ocupava o cargo de primeiro ministro. Se não me falha a memória corria o ano de 2006, 2 anos após a primeira tentativa frustrada de golpe na Ucrânia. O líder russo iniciou a reunião zoando com o fato do representante norte americano ter aportado ao país com uma grande mala preta, da qual não se soltara desde que descera do avião, fato publicamente percebido. Putin disse mais ou menos assim: “Estou curioso, sr. secretário, o que será que o sr. traz de tão valioso nessa mala? Ficamos preocupados, porque geralmente estas malas pretas estão recheadas de dólares para pagar seus colaboradores estrangeiros…”. Kerry iria, na sequência, à Ucrânia. Para bom entendedor, meia palavra basta.
O leitor deve se lembrar do comercial do uísque Johnnie Walker, naqueles idos de 2012-13, no qual uma montanha se levanta e começa a caminhar pela baía de Guanabara, junto à frase “o gigante acordou”. Aparentemente, um apelo nacionalista agradável, um estímulo (a ouvidos despreparados), cujas intenções estavam longe disto. Coincidentemente a outros dispositivos de propaganda à época, começaram a espoucar aqui e ali frases de efeito e críticas ferozes à 1.o gestão de Rousseff. A absoluta maioria com distorções e mentiras flagrantes, quando não vazias, do tipo “queremos hospitais padrão FIFA!” ou “o PT quebrou o Brasil!”. Vieram as primeiras manifestações de protesto, com adesão massiva da “oposição de esquerda”, depois as eleições de 2014, com a vitória de Rousseff, e, na sequência, as palavras patéticas e amarguradas do derrotado, o senador Aécio Neves, anunciando a guerra que viria. Naquela eleição, o Brasil teria se mexicanizado com a vitória do PSDB. Ele perdeu e o projeto atrasou para 2016-18.
E a guerra se fez, na forma de propaganda anti petista massiva na imprensa dominante e nas redes sociais, no engessamento político e institucional causado pela cooptação do parlamento e do STF, na guerra jurídica escancarada (lawfare) contra os dirigentes-chave do governo e contra Lula, etc. Nas palavras de Romero Jucá: “com STF, com tudo”. Digno de nota, o símbolo máximo, o ápice dessa bem elaborada operação psicológica se deu com o filme “O Mecanismo”, de 2018, onde o diretor José Padilha – àquela altura aclamado pelas classes abastadas do país com o filme de viés fascista “Tropa de Elite” – coloca, fraudulenta e despudoradamente, a frase de Jucá na boca de Lula, o então líder absoluto nas pesquisas de intenção de voto. Uma mentira escandalosa e criminosa.
Esta pequena introdução é necessária para demonstrarmos a guerra de narrativas na crise ucraniana, que corteja o escárnio ao apresentar a imagem de um videogame como se fosse de alguma batalha que lá se travasse. Contudo, nem todo o material exposto é tão pueril, alguns são bem urdidos, embora não passasse ao crivo de uma mente aguçada e crítica.
Refiro-me, por exemplo, à imagem de um suposto tanque russo patrolando um automóvel civil, em Kiev, embora o exército russo estivesse a centenas de quilômetros de distância naquele momento, e às notícias do suposto ataque russo a uma maternidade em Mariupol, com alegadas “dezenas de vítimas, dentre elas crianças e gestantes”, nas quais as imagens mostram tão somente uma mulher grávida sobre uma maca.
Neste último caso, o comando militar russo negou tal informação3. Para quem está acompanhando de perto o desenrolar das ações em campo, sabe que Mariupol já está sob controle das forças do Donbass/Rússia há duas semanas4. Um ataque deste porte, portanto, seria um contrassenso. O que se mostrava estranho nas imagens da grávida sobre a padiola era sua aparência “limpa” para alguém que sobrevivesse aos entulhos de um bombardeio. Com efeito, logo a seguir, começaram a espoucar notícias de que se tratava de uma encenação realizada 3 semanas antes com a modelo ucraniana Marianna Podgurskaya5. A notícia dessa encenação foi cuidadosamente suprimida na imprensa hegemônica.
De outra banda, a omissão patética. A República de Donetsk, um enclave rebelde russófono dentro de uma Ucrânia tomada por extremistas anti eslavos, foi duramente castigada ao longo destes últimos 8 anos, com bombardeios quase que diários contra prédios públicos, hospitais, escolas e bairros residenciais. Pereceram mais de 15 mil almas nestes ataques criminosos, 9 mil delas eram crianças e adolescentes (extra oficialmente, os governos do Donbass reclamam uma cifra próxima de 50 mil baixas).
No cemitério público de Donetsk, há o Memorial dos Anjos, uma homenagem a estes inocentes abatidos, invisíveis aos “preocupados e piedosos” corações ocidentais.
Estes ataques jamais foram mostrados na mídia hegemônica, sequer imagens dos civis mortos e da destruição generalizada de vilas inteiras. Igualmente, esqueceram-se eles de informar que os ataques foram realizados livremente pelos batalhões Azov e Aydar, os quais, na verdade, são milícias de caráter e estandarte neonazistas, criadas e engordadas pela OTAN e oficialmente incorporados ao Ministério de Defesa da Ucrânia. Seu modo de operar assemelha-se em muito às das SS durante a II GM. Com a mesma orientação, os sofríveis jornalistas da TV aberta brasileira correram a dizer que não há nazistas na Ucrânia, que tudo não passa de fakenews e que o presidente ucraniano seria ascendência judaica! Seria cômico, não fosse a tragédia, esta sim verdadeira, que o povo ucraniano sofre e tem sofrido desde 20146. E, também o povo palestino na mão dos sionistas israelenses, há mais de 50 anos.
Se fôssemos atentar para o que a mídia engajada ao império expõe, teríamos a impressão de que os russos estão perdendo a guerra, na qual, em meio a incontáveis civis mortos, jamais mostrados, o bravo exército ucraniano estaria heroica e patrioticamente resistindo. Igualmente, dizem eles, tratar-se-ia de uma guerra movida por um tirano oligarca e messiânico que quer destruir a pobre Ucrânia e dominar o mundo. Narrativa muito próxima das histórias infantis levadas às telas por Hollywood ou os desenhos animados da Hanna Barbera. Fico a pensar com meus botões que, se Putin é o Cérebro, quem seria o Pink o Kim Jon Un?
Neste jaez, é interessante notar que há anos a indústria da russofobia tem criado alguns estereótipos bem clássicos. Enquanto os empresários do império são tratados como “homens de negócios”, os empresários russos seriam “oligarcas”. Entram nesta conta também os empresários chineses, iranianos, sírios ou quaisquer outros não alinhados. Também, enquanto a América do Norte e a Europa seriam o paraíso da democracia, da retidão, da honestidade e do bom caráter, todo o resto seria um inferno de totalitarismos, de corrupção desenfreada e da mais pura incompetência. Aliás, o resto possui “regimes”, o ocidente possui governos. E é visível como boa parte da esquerda brasileira – e não só a brasileira – compra estas ideias, pois fazem as mesmas referências conceituais.
A ideia dominante no universo político progressista é mais ou menos essa: a OTAN seria um agregado de países visando a autodefesa, que usou a Ucrânia de forma errada para atingir o “regime” russo. Os russos, por sua vez, conduzidos a uma aventura pelo seu “ditador malevolente”, acabaram presos numa armadilha, iniciando uma guerra “imperialista” pela posse da Ucrânia, que está resultando em milhares de civis mortos e num atoleiro do qual não poderá vencer, com o que Putin acabará apeado do poder pela cúpula de “oligarcas” que o cerca. O leitor há de acrescentar o restante, se esqueci. No Twitter, por exemplo, há comentários indignados com preocupações razoáveis acerca da tragédia humanitária, acompanhados os perfis da bandeirinha da Ucrânia.
Nada a contestar com relação à tragédia das guerras, mas a esta altura, obrigo-me a pontuar que as mesmas figuras tão preocupadas com as vítimas da Ucrânia são as que se calaram ante os massacres realizados pelo império no Iraque, na Líbia, na Síria e mundo afora nestes últimos 30 anos. São os mesmos que se calaram ao longo dos 8 anos de massacres no Donbass, que é parte da mesma sofrida Ucrânia. E são os mesmos que se calam agora ante o absurdo massacre que o povo do Iêmen tem sofrido há 4 anos, numa guerra de devastação total levada a cabo por procuração pela Arábia Saudita. Uma guerra que já destruiu 60% da infraestrutura básica do país e lançou 40% da população à inanição7. Para estas vítimas não há compaixão. Será que é porque não tem olhos azuis, como reclama o pai iemenita? Ou seria porque o povo de lá resolveu traçar um caminho próprio e independente? Ou, ainda, não seria porque a indústria armamentista está lucrando como nunca?
De mesmo jaez manipulador da informação, a retirada dos canais russos no Youtube, que nos traziam uma realidade diferente do palco de guerra, bem mais próxima da realidade, concomitantemente a uma série de risíveis medidas antirrussas mundo afora, como a proibição de um curso sobre Dostoiewski na Itália, muito além de mostrar a hipocrisia e o racismo ocidentais, revelam o que poucos conseguem ver. A operação especial russa na Ucrânia está progredindo exatamente como o planejado e as sanções aplicadas estão tendo um efeito bumerangue8, com o aumento brutal do custo de vida na Europa. Como dissemos em nosso artigo anterior, vão começar as greves por lá9. O desespero e a confusão se instalaram nas elites ocidentais, com seus líderes manifestando-se como se em estado catatônico. Em uma de suas últimas intervenções em coletiva de imprensa, a senilidade e impotência de Biden ficou patente quando este confundiu a Ucrânia com o Irã!
A “verdade verdadeira”, digamos assim, para diferenciarmos das “fakenews verdadeiras” desse mundo líquido pós-verdade, é que a operação especial russa é uma aula de estratégia militar e rigor operacional. A Ucrânia está sendo lenta e cuidadosamente desmilitarizada e desnazificada, com baixíssimas perdas civis10. Os raríssimos civis ucranianos mortos, não noticiados na imprensa hegemônica, foram vítimas de seu próprio exército, um exército criado e alimentado pelos líderes da OTAN, para os quais o povo não passa de ser a bucha de canhão para seus objetivos escusos. No caso da Ucrânia, destruir a Rússia. Parece que o plano flopou.
No seu revelador livro “Manufacturing Militarism – US Government Propaganda In The War On Terror”, Stanford University Press, Christofer Coyne e Abigail Hall traçam o caminho pelo qual o estado profundo norte-americano trabalhou intensamente para incutir em seus cidadãos a cultura do medo e a necessidade do militarismo após os eventos do 11/9. Através do uso sistemático de informações tendenciosas, da omissão de informações e, até mesmo, da mentira mais desavergonhada, os autores defendem que o plano deu certo, pois contou com a aquiescência de cada cidadão, alienado da verdade há décadas. A brilhante conclusão dos autores é que o pior inimigo das elites não é um qualquer terrorista doido, tampouco uma mente diabólica debruçada sobre o mapa múndi. O pior inimigo das elites é um cidadão bem informado, que não se deixa enganar por uma imprensa comprometida.
Como referiu recentemente Tulsi Gabbard, uma das poucas vozes dissonantes e racionais nesse mar da lama do império: “A elite no poder teme ser desmascarada, mesmo por uma única voz que os desafie ou que apresente outro ponto de vista, porque sabe que seus argumentos são tão fracos que não se mantêm à luz da verdade. Dar vazão à propaganda de Biden não é o suficiente, ter o Google e as BigTechs trabalhando para ela não é o suficiente, ela precisa silenciar youtubers e tiktokers para obrigar o cidadão a ver ou não ver o que ela quer”11.
Portanto, caro leitor, a tarefa imprescindível de cada jornalista progressista na busca da notícia por um mundo melhor, realmente democrático e de cidadãos livres, é informar a verdade, a única possível, e questionar implacavelmente as mentiras dos poderosos. E a tarefa de cada cidadão, neste mesmo rumo, é ler, estudar, pesquisar, ira a fundo e questionar tudo, duvidar de tudo, até chegar à “verdade verdadeira”.
Referências
2. (https://www.rand.org/topics/psyop.html) (https://www.soc.mil/SWCS/_pdf/SWCS_FY19_AcademicHandbook_web.pdf)
(https://canadianpatriot.org/2021/11/19/mindspace-psyops-and-cognitive-warfare-winning-the-battle-for-the-mind/) (https://www.youtube.com/watch?v=ci_n6jQf97I&t=418s) No canal “Fio do tempo” no Youtube há uma série de vídeos acerca do tema. Recomendo ao leitor que explore-o;
3. (https://www.youtube.com/watch?v=lA5U9pqLD1Y);
4. (https://rumble.com/vxshwv-russian-military-offensive-in-ukraine-day-23.html?mref=6zof&mc=dgip3&utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=RT&ep=2) (https://rumble.com/vxx9k3-lpr-has-taken-control-of-more-than-90-of-its-territory-russian-mod.html?mref=6zof&mc=dgip3&utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=RT&ep=2) (https://rumble.com/vxuhkx-russian-mod-releases-footage-of-ukrainian-arms-depot-being-destroyed-by-str.html?mref=6zof&mc=dgip3&utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=RT&ep=2);
(https://vk.com/wall-65741531_49365?lang=pt);
(https://www.mintpressnews.com/history-nato-nazis-ukraine-asa-winstanley/279972/).
(https://www.mintpressnews.com/tears-ukraine-russia-yawns-yemen-saudia-arabia-double-standard/279837/) (https://consortiumnews.com/2022/03/21/the-brutal-war-on-yemen/)
8. (https://rumble.com/vxy461-sanctions-war-against-russia-is-failing.-china-and-india-harden-their-stanc.html?mref=6zof&mc=dgip3&utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=The+Duran&ep=2);
9. (https://rumble.com/vxvs9f-trucks-roar-in-rally-against-high-fuel-prices-in-germanys-hamburg.html?mref=6zof&mc=dgip3&utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=RT&ep=2);