.Por Reginaldo Cruz.

“Homem da plebe, em geral, não tem história no Brasil” (Edmar Morel)

Anos atrás, especulando despretensiosamente em um Sebo no centro de Campinas, um título me chamou a atenção: “Vendaval da Liberdade – a luta do povo pela abolição”, de Edmar Morel (1912- 1989).

(foto de tela)

Peguei o livro para ver qual era a história. Na contracapa constava o seguinte: “Neste livro, Edmar Morel reconstitui o papel desempenhado pelo jangadeiro Francisco José do Nascimento, cognominado Dragão do Mar, no contexto da luta pela abolição da escravatura no Brasil”.

Pronto, estava barato, quase de graça, daqueles preços que só se encontram em Sebos. Levei o livro para casa. Como tinha outras leituras na fila que julgava mais importante, este foi ficando na estante. Ficou um bom tempo até que um dia peguei para ler. O texto é sensacional e de grande importância para a história do Brasil. Não digo que foi surpresa, pois sempre que o via na estante me cobrava a leitura.

Como é bem observado por Francisco de Assis Barbosa (1914-1991) no prefácio da 3ª Edição, a que tenho em mãos, Morel inicia a história com a seguinte frase: “Homem da plebe, em geral, não tem história no Brasil”.

Assim a história do jangadeiro Francisco José do Nascimento, negro liberto e analfabeto, passa quase esquecida nos livros oficiais de história sobre a abolição da escravidão em 1888.

Heróis brancos aristocratas, o dito incômodo do Imperador com a escravidão, a benevolência da Princesa que assinou a abolição, enfim, a narrativa construída ao longo do século XX não resiste a uma investigação histórica.

Neste livro, Edmar Morel (que também é autor de “A revolta da chibata”, que conta a história de João Cândido, o “Almirante Negro) nos leva ao Ceará da segunda metade do século XIX e mostra a luta pioneira que levou a então província a ser a primeira a abolir a infame escravidão negra no Brasil, em 25 de março de 1884, quatro anos antes, portanto, da chamada “Lei Áurea”.

O livro traz, com base em farta documentação, relatos da grande seca e da peste de cólera e varíola que assolaram a região nordeste do país (naquela época era chamada de região norte) e como a ruína econômica baixou o preço da mão-de-obra escrava e a transformou em fornecedora de escravizados negros para o sul do país, notadamente São Paulo, e como isso acabou sendo um dos fatores que levaram ao forte movimento abolicionista liderado pelos jangadeiros.

Abaixo, destaco alguns trechos:  

“Só num ano, em Fortaleza, ‘são sepultados 56.791 pessoas, mortalidade espantosa para uma população de 124 mil almas’. A peste não escolhe classe social; todavia, pelas miseráveis condições sanitárias da escravaria, a maioria dos mortos procede do cativeiro” (p.96).

“São Paulo é considerada a Virgínia do Brasil, cheia de cativos procedentes do Norte, vendidos por preços baixos e onde os escravocratas, bem organizados, neutralizavam a campanha abolicionista (p.131).

O papel desempenhado pelos jangadeiros do porto de Fortaleza, transformado então em um dos principais pontos de embarque de escravos, foi ponto fundamental da luta abolicionista. Muitos deles negros libertos, indignavam com tratamento bárbaro dispensado à carga humana.

Liderados por Francisco José do Nascimento, experiente jangadeiro que ganhou a alcunha de Dragão do Mar, passaram a se recusar a fazer o transporte até os navios. Não embarcavam ninguém, organizavam as fugas e davam abrigo aos cativos que libertavam.

A resistência dos jangadeiros cearenses iniciou um forte movimento local que levou à abolição da escravatura na região em 1884 e se espraiou para outros estados, levando finalmente à assinatura da lei áurea em 1888.

“Vendaval da liberdade” conta a epopeia de homens brutalizados pela opressão de uma sociedade escravista e que tinham na liberdade seu grande objetivo de vida.

Uma história que, como de tantos outros heróis e heroínas do povo brasileiro, é esquecida pela narrativa oficial, que criou seus heróis no seio da classe dominante e que apresentam as duras conquistas como atos de benevolência.

Assim, mesmo a Lei Áurea, que em dois artigos aboliu a escravidão mas não integrou os negros à sociedade, foi fruto de uma longa luta de homens e mulheres por liberdade. Custou a vida e a liberdade de muitos.

O livro, “Vendaval da liberdade – a luta do povo pela abolição”, de Edmar Morel (Editora Planeta) tem 232 páginas. É desses tesouros que encontramos em visitas despretensiosas à Sebos. Com sorte pode ser encontrado em sites de venda de livros online.

Leitura altamente recomendável para conhecer um episódio memorável de luta do povo brasileiro.

Reginaldo Cruz é jornalista e mestre em Economia Social e do Trabalho (Unicamp).