Do Jornal da USP, por Luiz Prado
Em São Paulo – A partir do dia 6 de novembro, o Centro Universitário Maria Antonia da USP abriga a exposição MemoriAntonia: por Uma Memória Ativa dos Direitos Humanos. A mostra reúne obras de artistas veteranos e jovens impactados, marcados, instigados e horrorizados pela ditadura civil-militar brasileira. A curadoria é de Márcio Seligmann Silva, tradutor, crítico literário e professor da Universidade de Campinas (Unicamp), e de Diego Matos, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
O Centro Universitário Maria Antonia da USP, espaço que organiza a exposição, é ao mesmo tempo testemunha e memória do período abordado pela mostra. Foi arena da famosa “Batalha da Maria Antonia”, na qual integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), alojados na hoje chamada Universidade Presbiteriana Mackenzie, localizada em frente ao centro universitário, atacaram estudantes da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, nos dias 2 e 3 de outubro de 1968. O confronto envolveu policiais militares e resultou na morte de um estudante secundarista, além de vários feridos e da depredação do edifício da USP.
“A curadoria foi norteada por um projeto de provocação mnemônica”, conta Seligmann Silva. “Fala-se que o Brasil é um País sem memória. Não é verdade. O que acontece é que, quando se trata das marcas da memória daqueles que são subalternizados, dos que se opõem às políticas das elites e lutam por uma sociedade mais justa, são essas as memórias que são recalcadas e tendencialmente apagadas em nossa sociedade.”
É por isso, afirma o professor, que é preciso aprender a valorizar as marcas do período da escravização e do genocídio das populações originárias, dentre outras histórias soterradas. “Nossas cidades, ruas e estradas comemoram presidentes, generais, industriais, grandes terratenentes e torturadores. Existe aqui uma comemoração da colonialidade, uma monumentalização da barbárie que é apresentada como se fossem signos do progresso, do Iluminismo e da razão. Então é fundamental que entremos nessa luta para reverter esse cenário.”
Nesse sentido, o trabalho curatorial de Seligmann Silva e Matos procurou artistas cujas obram apresentam dispositivos de resistência à ditadura ou de inscrição do período ainda hoje. “Convocamos membros da geração heroica dos que resistiram à ditadura e lutaram contra ela com suas obras, suas ideias e corpos”, explica o professor. É o caso de Claudio Tozzi, Carlos Zilio, Cildo Meireles e Fúlvia Molina, esta última ex-estudante da FFCL e participante da resistência à ditadura no final dos anos 1960.
Ao lado dos veteranos, os curadores incluíram o que Seligmann Silva chama de “luminares das novas gerações”, que produzem obras atuais remetendo ao “presente do passado” da ditadura, como Giselle Beiguelman, Leila Danziger, o argentino Marcelo Brodsky, Gilvan Barreto, Jaime Lauriano, Lais Myrrha e Rafael Pagatini. Integram ainda a exposição trabalhos documentais como as fotografias de Hiroto Yoshioka, ex-estudante da FAU responsável pelo registro da “Batalha da Maria Antonia”, Evandro Teixeira e Orlando Brito, que capturaram de maneira aguda a ditadura. Também está presente o documentário Grin, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali e Roney Freitas, sobre práticas associadas ao genocídio indígena durante o período, e o documentário de Renato Tapajós A Batalha da Maria Antonia.
Panorama tétrico
De acordo com Seligmann Silva, a exposição é uma lufada de ar em um panorama tétrico no qual se sobrepõem, nas palavras do curador, “a praga de um desgoverno de extrema-direita, uma pandemia que ameaça a humanidade em sua existência, o caos político-econômico e a prática descarada da falsificação do passado e do presente”.
“Ela mostra que podemos, sim, sonhar novamente”, continua. “Devemos reativar as nossas utopias, devemos acreditar que os direitos humanos não devem ser patrimônio das elites e que a memória crítica da história deste País pode servir de esteio para a construção de uma autêntica democracia. Sendo que não existe democracia autêntica sem o fim de nossa absurda desigualdade social.”
Lucia Maciel Barbosa de Oliveira, diretora do Centro Universitário Maria Antonia, considera a exposição urgente e necessária diante dos tempos atuais. “Trata-se, de um lado, da defesa de valores democráticos, da manutenção de direitos e conquistas duramente alcançadas, ainda muito longe da resolução de problemas estruturais da sociedade brasileira, mas que se circunscrevem em um terreno defensável; por outro lado, a perspectiva assumida pelo governo e seus defensores é de uma ação que busca desestabilizar a democracia, assumir a barbárie como forma de ação, desacreditar a ciência, o conhecimento e outras tantas esferas sem as quais uma sociedade democrática não se sustenta”, afirma a diretora.
“Esses políticos que estão no poder hoje, como na época da ditadura, perseguem universidades, professores, intelectuais, artistas, indígenas e negros e exercitam diariamente sua misoginia e homofobia”, afirma Seligmann Silva. “Tenho a convicção de que apoiar espaços culturais e produzir contramemórias resistentes são momentos fundamentais na luta para sairmos do buraco em que nos metemos. Não podemos esquecer que toda política é antes de mais nada uma política de imagens.”
A “Batalha da Maria Antônia”
Para a diretora Lucia Oliveira, um elemento fundamental da exposição é o destaque dado ao Centro Universitário Maria Antonia como espaço de memória, de defesa de valores democráticos e de liberdade. “A perspectiva crítica assumida pela exposição reflete sobre os acontecimentos de outubro de 1968 para além da ideia corrente de que foi uma batalha que opôs estudantes da USP e do Mackenzie, compreendendo-a como um ataque planejado que visava a acabar com a existência da FFCL na região central da cidade, apagar seu potencial questionador, sua ação crítica e política, dispersar professores e alunos, desmobilizá-los”, explica Lucia.
Seligmann Silva também considera importante entender o conflito na Maria Antonia não como mero embate entre estudantes da USP e do Mackenzie, mas como um ataque organizado e articulado paramilitarmente por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas. “Nesse evento não se tratou de uma guerra entre iguais, mas, antes, de um ataque feito pelo CCC com apoio dos órgãos de segurança pública”, conta o professor. “O contexto era o das ditaduras latino-americanas durante a Guerra Fria. Nos mesmos dias 2 e 3 de outubro de 1968, na capital do México, ocorreu o massacre de Tlatelolco, no qual o Exército mexicano assassinou centenas de manifestantes que se reuniram para protestar contra a realização no país dos Jogos Olímpicos.”
Por isso Selligman Silva acha fundamental desconstruir a ideia de “batalha” e pensar no conceito de ataque planejado. “Isso desfaz um mal-entendido e permite olharmos as práticas neofascistas de nosso presente, com a descarada política genocida da população mais carente durante a pandemia, com suas intervenções em processos de eleição de reitores nas universidades federais, com as políticas de sucateamento da Cinemateca, a destruição do Museu Nacional, com o fim das leis de incentivo à produção artística, entre outros ataques.”
“Em um momento em que o autoritarismo e a defesa de valores antidemocráticos voltam à cena sem cerimônia, é preciso reativar a memória de tempos duros, quando a ditadura civil-militar se instalou no Brasil e ainda sofremos seus efeitos”, alerta Lucia. “Trabalhar a memória em perspectiva crítica permite esclarecer o acontecido, fundamental para pensarmos a consolidação democrática no País, desafio mais do que urgente. É pensar condições de possibilidade para outra perspectiva futura, que esclarece o passado para compreender o presente e modificar o futuro.”
Seligmann Silva também considera que uma memória crítica e clara do período da ditadura é fundamental para a construção de uma sociedade menos afeita a políticos populistas reacionários. “Como Robert Antelme, que lutou na Resistência francesa e depois sobreviveu a Buchenwald, escreveu: ‘Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS’. Isso aconteceu em 1933, em 1964 e em 2018. E pode voltar a acontecer. Se não podemos contar com a Justiça nessa luta pela reparação dos crimes cometidos entre 1964-1985, já que nosso STF resolveu em 2010 bloquear processos contra os verdugos, que façamos políticas da memória como antídoto a esse terrível ciclo político”, finaliza o professor.
A abertura da exposição MemoriAntonia: por Uma Memória Ativa dos Direitos Humanos acontece no dia 3 de novembro, às 19 horas, com visitação a partir do dia 6, de segunda a sexta-feira, das 9 às 20 horas, e aos sábados, das 10 às 18 horas. A entrada é gratuita. O endereço é Rua Maria Antônia, 294, na Vila Buarque, em São Paulo. É obrigatório o uso de máscara de proteção individual e a apresentação de carteira de vacinação contra covid-19, com ao menos uma dose.
(Carta Campinas com informações de divulgação)