(Flag -1954-55- de Jasper Johns – no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque – ia)

.Por Gabriel San Martin.

Poucos artistas foram capazes de discutir com tanta elegância e bom humor as noções mais estruturantes da história da arte como fez Jasper Johns. Giorgio Vasari abordava a necessidade de um apelo à imitação na arte já no século XVI. O curioso é que, se Vasari discute isso vislumbrando mais uma exigência de imitação no sentido de imitar os grandes mestres, o grande responsável pelo desenvolvimento do sentido mais visceral da imposição imitativa foi Leon Battista Alberti. Johns, ainda que um artista norte-americano da segunda metade do século XX, não perdeu a oportunidade de retratar e satirizar as ideias desses grandes teóricos há pouco mais de um século colocadas em escanteio pelos modernistas.

Alberti, em 1435, escreve o seu tratado Da Pintura. Para o arquiteto italiano, a pintura deveria performar como algo da ordem de uma janela. Aquele naturalismo que se apresentava a princípio com timidez no Quattrocento italiano, muito incrustado ainda à arte medieval, parece adquirir a sua plenitude em consonância à enunciação dos imperativos albertianos. Pelo mais que, daí em diante, as artes seriam em boa parcela constrangidas a essa normativa estética no decorrer de vários séculos, Alberti nunca pensou no resultado de seus princípios serem levados a uma acepção literal.

Quando o arquiteto italiano afirmou a necessidade de se pintar a modo que a tela pudesse ser confundida com uma janela, ele pensava na disposição que a arte haveria de ter em seguir as regras técnicas do ilusionismo naturalista. Ordens representativas da categoria do claro-escuro, da anatomia e da ilusão tridimensional em um plano bidimensional eram aquilo que Alberti presumia. Agora, como fazer uma imitação bidimensional de figuras que já são per se bidimensionais? Pensemos num alvo, por exemplo. Qual a diferença entre um alvo real e um alvo retratado numa pintura naturalista? Além do fator utilitário, nenhuma. E no caso de uma bandeira em comparação à pintura de uma bandeira? São a mesma coisa.

Esse caráter paradoxal de a pintura, de uma coisa bidimensional ser também a coisa em si mesma, foi um tema pelo qual Jasper Johns mostrou um interesse notável. Se Marcel Duchamp, trinta anos antes, elaborou O Grande Vidro enquanto um tipo de ironia para a pintura como janela, estou convencido de que Johns o supera com as suas bandeiras e alvos. Ao estabelecer um espaço complexo capaz de formular um jogo lógico que satiriza ao mesmo tempo tanto a janela albertiana quanto a teoria greenbergniana da planaridade, Johns torna evidente a potencialidade de seu trabalho.

Ao pintar uma bandeira, Johns também está fazendo uma bandeira. É claro, a pintura da bandeira de Johns tem as pinceladas evidentes e táteis, um empasto forte com pinceladas robustas, ritmadas e que vão para lados opostos, mas isso não faz o trabalho abdicar de ser uma bandeira para se tornar estritamente a pintura de uma bandeira. Ainda que as pinceladas de Johns violem abruptamente o princípio acadêmico da pincelada não gestual, a pintura é tão naturalista quanto qualquer Rafael ou Michelangelo: é a bandeira em si mesma. Apesar de abandonar a regra modernista da não representação de Greenberg, a bandeira gera uma platitude radical: pois representa um objeto plano.

Se, numa definição aristotélica, um único contraexemplo é suficiente para demolir toda uma tentativa de definição, acredito que essa primeira leva de artistas contemporâneos norte-americanos – Johns, Rauschenberg, Twombly – são os grandes responsáveis pela demolição da teoria modernista de Greenberg. Utilizando dos próprios mecanismos enunciados por Alberti e Greenberg, esse grupo mostra determinadas contradições em que esses textos terminavam caindo ao terem as suas premissas levadas ao extremo ou de modo literal. Disso, vejo boa parte daquela literalidade ou teatralidade da arte contemporânea de que críticos dos mais diversos falaram – normalmente, com uma carga pejorativa. A grande diferença é que Johns lida com essa literalidade com certa ironia.

Se Magritte pensou a dificuldade dos signos ao retratar um cachimbo e afirmar que essa figura de um cachimbo não consistia em um cachimbo, é impossível dizer o mesmo sobre as bandeiras de Johns. Ainda que os trabalhos recusem qualquer dimensão alegórica, eles representam. As pinturas de bandeiras simultaneamente são e representam bandeiras. E, não obstante, bandeiras que, apesar de planas e gestuais, são naturalistas.

(Jasper Johns com o seu trabalho -Alvo e quatro faces- de 1955 – ia)

Gabriel San Martin é estudante da graduação em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador em estética e teoria da arte e escreve sobre artes visuais