(foto thomas de luze – ul)

.Por Ricardo Alexandre Corrêa.

O revolucionário Steve Biko nos ensinou que o poder não concede nada, a não ser que seja exigido. Quando estudamos a história da abolição da escravatura − oficializada no dia 13 de maio de 1888 − confirmamos a reflexão de Biko. A insurgência dos negros escravizados foi um dos fatores determinantes para a destruição do sistema escravagista, que perdurava há quase quatro séculos. No entanto, de acordo com a propaganda oficial, os escravizados foram libertados por causa da generosidade da Princesa Isabel, sensibilizada com as condições em que se encontravam. Mas isso não é verdade. Tem que ser ingênuo para acreditar nesse argumento. Na realidade, os escravocratas não estavam conseguindo controlar os corpos negros.

Esse argumento, construído pelas classes dominantes, esconde a história de Zumbi dos Palmares, dos quilombos como espaços de resistência e sobrevivência, e ignora os métodos utilizados pelos escravizados para escaparem das fazendas − desde suicídios até incêndios. Sem contar o silêncio dos discursos oficiais, sobre a ausência de reparação econômica aos ex-escravizados quando se oficializou a abolição. Depois de séculos explorados, os negros foram entregues à própria sorte. Aliás, tal questão possibilita que compreendamos a gênese da pobreza e miséria que atinge, esmagadoramente, essa população. Cabe ressaltar, que as classes dominantes seguem insaciáveis no acúmulo de riquezas, e, nesse sentido, aproveito as palavras de Albert Memmi (2007) “não é escandaloso enriquecer, contanto que não seja esmagando outrem”. (p. 27)

Decerto, as lutas dos negros, no período colonial, causam arrepios nas classes dominantes. Há o temor de que os negros assumam as lições dos ancestrais, radicalizando nas práticas e, consequentemente, destruindo o sistema excludente que estrutura a sociedade. Por isso a razão desse sentimento covarde e racista. E como disse Abdias do Nascimento (1998)

(…) a propaganda oficial fez desse evento histórico um de seus maiores argumentos em defesa da suposta tolerância dos portugueses e dos brasileiros brancos em relação aos negros, apresentando a Abolição da Escravatura como fruto da bondade e do humanitarismo de uma princesa. Como se a história se fizesse por desígnios individuais, e não pelas ambições coletivas dos detentores do poder ou pela força inexorável das necessidades e aspirações de um povo.

A escola é um espaço racista

Eu tenho péssimas recordações do dia 13 de maio. Lembro-me do tempo em que frequentava o ensino fundamental. Naquela época, a escola não era um espaço acolhedor e seguro às crianças negras. Nas aulas sobre a abolição da escravidão, a narrativa sobre a generosidade da Princesa Isabel ganhava força. Mas, o meu maior problema era o constrangimento com os olhares de sarcasmo, e a zombaria dos alunos brancos, durante as aulas. Eles me colocavam no centro das atenções e disparavam ofensas. Da boca deles, eu ouvia que deveria ser mandado à África. Que iriam apagar a assinatura da Princesa Isabel. Que o meu lugar era na senzala. O ódio me consumia naquelas aulas! Teve uma ocasião que a minha mãe foi chamada na escola. A professora disse que o meu comportamento estava inadequado, e se não mudasse daria muito “trabalho” no futuro. Ou seja, os estereótipos racistas estavam ao fundo do pensamento da professora. E mais, a reunião só aconteceu porque reclamei das ofensas dos alunos.

Para se ter uma ideia, na década de 1980, as ofensas racistas eram tratadas como brincadeiras de mau gosto; nas novelas, nos programas de entretenimento, nas capas de revistas quase sempre apresentavam algo nesse sentido. Mas, o debate racial ganhou importância. Não é tolerado. É discutido na imprensa, nas redes sociais, no ambiente corporativo, nas salas de aulas etc. As instituições públicas e privadas não passam mais despercebidas com o racismo institucional que as caracterizam, existem cobranças para mudanças estruturais. Portanto, a comemoração da abolição da escravidão tornou-se, apenas, mero simbolismo que massageia o ego dos descendentes de escravocratas, e daqueles que se embriagam nos privilégios. Para os negros, é mais um momento de protesto contra as desigualdades raciais e da violência que transforma os nossos corpos em descartáveis.

Ademais, encerro dizendo que os movimentos negros continuarão lutando, até que a liberdade e a cidadania não continuem dissociadas; Jean-Paul Sartre (1965) entendeu um pouco o nosso espírito “O que é que vocês esperavam quando tiraram a mordaça que fechava essas bocas negras? Que elas entoassem hinos de louvor? Que a cabeça que os nossos pais curvaram até o chão, quando se erguessem, revelassem adoração nos olhos?”. (p. 93)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Senado Federal. Discurso de Abdias Nascimento (PDT-RJ). 13 maio1998.

Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto
/226669>. Acesso em: 10 mai. 2021.

MEMMI, Albert. Retrato do descolonizado: árabe-muçulmano e de alguns outros.
Tradução: Marcelo Jacques de Moraes. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

PORTAL ESQUERDA.NET. Biko: A Consciência Negra e a Busca de uma Verdadeira Humanidade. Disponível em: <https://www.esquerda.net/artigo/biko-consciencia-negra-e-busca-de-uma-verdadeira-humanidade/46031>. Acesso em: 10 mai. 2021

SARTRE, Jean-Paul. “Orfeu Negro” In: Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão européia do livro, 1965.