Negacionismo na pandemia: a virulência da ignorância
.Por Luciana Rathsam.
Durante a pandemia do Covid-19, o negacionismo no Brasil tomou proporções alarmantes, manifestando-se na negação ou minimização da gravidade da doença, no boicote às medidas preventivas, na subnotificação dos dados epidemiológicos, na omissão de traçar estratégias nacionais de saúde, no incentivo a tratamentos terapêuticos sem validação científica e na tentativa de descredibilizar a vacina, entre outros exemplos. O negacionismo acentua incertezas, influencia na adesão da população aos protocolos de prevenção, compromete a resposta do país à pandemia e ameaça a democracia.
“O negacionismo vai além de um boato ou fake news pontual. É um sistema de crenças que, sistematicamente, nega o conhecimento objetivo, a crítica pertinente, as evidências empíricas, o argumento lógico, as premissas de um debate público racional, e tem uma rede organizada de desinformação. Essa atitude sistemática e articulada de negação para ocultar interesses político-ideológicos muitas vezes escusos, que tem sua origem nos debates do Holocausto, é inédita no Brasil”, afirma Marcos Napolitano, professor de História do Brasil Independente e docente-orientador no Programa de História Social da Universidade de São Paulo (USP).
Os negacionismos (neonazismo, criacionismo, terraplanismo, entre outros) podem ser motivados por interesses diversos e os grupos de negacionistas são distintos entre si, mas têm características em comum, como o oportunismo político e a incoerência, destaca Yurij Castelfranchi, professor do departamento de sociologia e antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em alguns casos ocorre uma dissociação cognitiva: as evidências e fatos entram em choque com valores ou crenças subjetivas, então o negacionista seleciona uma narrativa alternativa para explicar a realidade. Nesse contexto, a coerência torna-se irrelevante.
Um exemplo disso é o modo como os discursos negacionistas em relação à pandemia foram se a modificando: no começo, os negacionistas diziam que a Covid era uma farsa, uma “gripezinha”. Depois, admitiram a existência da doença, mas negaram a sua gravidade e criaram teorias conspiratórias, atribuindo aos chineses a criação do coronavírus, como uma suposta arma biológica. O mesmo fenômeno foi verificado em relação às formas de prevenção da doença. “Quem nega as evidências, continuará negando e ajustando a história ad hoc a cada momento”, destaca Castelfranchi. “A ignorância não é causa do negacionismo, mas sua consequência, e fabricada propositalmente. É uma construção articulada por pessoas que possuem altíssima informação e meios sofisticados de produzir comunicação e que constroem espaços seletivos, no qual grupos enormes de pessoas são expostas à desinformação”.
Falsas controvérsias e inverdades convenientes
Muitas questões sobre o Covid-19 têm sido alvo de dúvidas e debates entre especialistas, o que é natural no processo de construção do conhecimento científico. O negacionismo, por sua vez, nega evidências e simula controvérsias onde na verdade há consenso. “É preciso distinguir entre o pensamento crítico no campo das ciências e a formulação negacionista no plano da opinião pública”, adverte Napolitano.
O livro Merchants of doubt (Mercadores da dúvida), de Naomi Oreskes e Erik Conway, expõe como a opinião pública pode ser manipulada a partir de falsas controvérsias e é uma referência obrigatória sobre essa questão. A negação dos malefícios do tabagismo e o negacionismo ambiental são alguns exemplos trazidos pelo livro de como a estratégia negacionista pode servir a interesses econômicos e políticos.
“O negacionismo não é mero sinônimo de desinformação nas sociedades. Na verdade, é resultado de disputas de grupos de interesse que procuram exatamente camuflar suas motivações e ganhos, inventando controvérsias científicas e falta de consensos na ciência, mesmo nos casos em que eles inexistem, para atravancar a sua efetivação em políticas, ou para direcioná-las em conformidade aos seus interesses”, esclarece a professora Dominichi Miranda de Sá,do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (DEPES) da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Para Napolitano, o negacionismo está ligado a amplos grupos sociais que não se sentem representados pelos arranjos políticos e econômicos dominantes no mundo globalizado e que julgam que as instituições sociais consolidadas – imprensa, universidades, sistemas políticos, organismos de governança internacional – são controladas por interesses econômicos dos poderosos. “Note que eles partem de uma percepção crítica que em si não é descabida, embora genérica demais – a influência do poder econômico ou político no “sistema” – para negar as bases culturais e institucionais das democracias modernas. São grupos fundamentalmente conservadores, baseados em valores diversos – religiosos, identitários, étnicos, nacionalistas – manejados por líderes políticos oportunistas, mas que oferecem uma sensação de pertencimento e um conjunto de soluções simplórias para “melhorar” o mundo”, pondera o professor.
Ameaça e resistência
Negacionismo, teorias conspiratórias e pseudociência são estratégias típicas de governos autoritários. “O negacionismo destrói a confiança das pessoas nas instituições democráticas e atinge diretamente o debate racional, a argumentação e a escuta, portanto representa uma ameaça à democracia”, defende Castelfranchi. Na Alemanha nazista, o negacionismo levou à rejeição de qualquer ciência produzida por judeus, como a teoria da relatividade de Einstein. No regime stalinista, as ideias evolucionistas foram descartadas por seu “caráter burguês”.
Ainda que as instituições democráticas estejam sob ataque sistemático no Brasil, a visão dos brasileiros em relação à ciência é predominantemente positiva, conforme aponta a pesquisa “Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil”, realizada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) em 2019. O próprio discurso negacionista reconhece o poder da ciência quando utiliza argumentos técnico-científicos ou quando busca atribuir a algum cientista uma determinada ideia, observa Castelfranchi. “Mas claro, o movimento é grande e perigoso, e conta com armas poderosas, como o funcionamento da desinformação na internet”.
A tentativa de deslegitimar a ciência é nociva para a sociedade, especialmente nesse momento de crise sanitária. O Brasil possui vasta experiência no enfrentamento de epidemias e a reconhecida expertise em pesquisas e práticas relacionadas à Saúde Pública. Conforme lembra Miranda de Sá, as epidemias estiveram na origem da criação de algumas importantes instituições, como o Instituto Butantã em São Paulo e do Instituto Soroterápico no Rio, atual Fiocruz, criados para a produção de vacina e soro contra a peste bubônica, que chegou ao Brasil na virada do século 19 para o século 20.
“As instituições se diversificaram muito depois de seus anos iniciais e têm realizado, há 120 anos, contribuições seminais à pesquisa, ao ensino e à produção de imunobiológicos no país, e não apenas nas ocasiões de irrupção de emergências. Atualmente, como acompanhamos todos, é graças à conjunção de sua expertise histórica no enfrentamento de crises sanitárias com suas múltiplas áreas de atuação, da pesquisa médica à produção de medicamentos e vacinas, que temos, com ambas, a nossa única chance de imunização em grande escala contra a Covid-19 no Brasil”, observa a pesquisadora, e acrescenta: “Os cientistas não têm se furtado ao seu compromisso com o país, como temos visto. E a pandemia aumentou muito o interesse social na ciência. O grave é que sofra boicote, inclusive por autoridades públicas no Brasil.”
A crise que atravessamos deve servir como oportunidade para definir um programa de ação. Entre as medidas prioritárias desse programa, defende Miranda de Sá, estão o investimento permanente na ciência e a valorização do sistema público de saúde. As respostas pontuais à emergência sanitária e o debate excludente entre economia e saúde são insuficientes, frisa a pesquisadora: “Vamos ter, como diz o historiador israelense Yuval Harari, de rever fronteiras: entre disciplinas, porque a complexidade do enfrentamento de pandemias requer saberes e colaboração transdisciplinares; entre países, em prol da solidariedade e da cooperação; e entre o mundo humano e o dos animais não humanos, com revisão do próprio antropocentrismo e da proeminência que os humanos acham que exercem no mundo, que afinal não nos é exclusivo”. (publicado originalmente no portal da Unicamp)