.Por Marcelo Auler.
Em abril de 2019, ao assumir o cargo de presidente do Grupo de Educação Fiscal Cidadã, na Secretaria Estadual de Educação e Cultura (SEEC) do Rio Grande do Norte, a auditora do Tesouro Estadual Alyne de Oliveira Bautista encontrou em sua sala seis mil livros de cidadania destinados a alunos das escolas públicas. Uma publicação elaborada pelo governo do Ceará que além dos impressos doou os direitos autorais do conteúdo ao governo potiguar para novas edições, caso necessário.
Com toda esta herança em seu gabinete, quatro meses depois, em agosto, Alyne se surpreendeu ao constatar que a SEEC estava adquirindo uma enorme quantidade de cartilhas também destinadas às escolas públicas, com conteúdos semelhantes às que dispunha em estoque vindas do Ceará. Uma compra no valor de R$ 3.875.370,00, que estava sendo realizada com uma alegada “inexigibilidade de licitação”, apesar do alto valor.
Tudo para ser utilizado na realização do “Setembro Cidadão”, programa cívico criado através de lei estadual promulgada sob desconfiança de atender interesses privados. Para respeitar a lei, a secretaria encampou o Programa Brasileiro de Educação Cidadã (PROBEC), que incluí a “capacitação do corpo docente multiplicador e a aquisição de cartilhas intituladas Cidadania A-Z”. Apesar do nome, o PROBEC é desenvolvido e coordenado por uma empresa privada: o Centro Brasileiro de Educação e Cidadania – CEBEC.
A aquisição do material pela gestão de Fátima Bezerra (PT) foi publicada no Diário Oficial de agosto de 2019. É a terceira “compra” efetuada pelos governos do Rio Grande do Norte junto ao CEBEC. As anteriores, também com inexigibilidade de licitação, foram no governo de Robison Faria (PSD): em 2016 (valor de R$ 1.300.000,00) e 2018 (R$ 450.000,00), desta feita através da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP).
Terremoto na vida pessoal culmina com prisão
O que Alyne sequer imaginava é que a descoberta da possível malversação das verbas públicas naquele agosto (2019) provocaria um terremoto na sua vida pessoal. Culminou, no transcorrer dos 21 meses subsequentes, com um total de sete ações judiciais, um processo administrativo e, inacreditavelmente, sua prisão preventiva, executada na manhã da quarta-feira, 14 de abril. Decorridos sete dias, na noite desta terça-feira (20/04), ela ganhou direito à liberdade através de uma liminar concedida pelo desembargador Gilson Barbosa, do Tribunal de Justiça do Estado. Foram sete dias recolhida à Penitenciária Feminina do Complexo Penal Dr. João Chaves, em um espaço com outras três presas.
Alyne, com 53 anos de idade, dos quais 22 dedicados ao serviço público, não tem nenhuma mácula em sua ficha profissional, como atestou nota oficial emitida por quatro entidades representativas dos auditores fiscais: Sindicato dos Auditores Fiscais do Tesouro Estadual do Rio Grande do Norte (SINDIFERN), Associação dos Auditores Fiscais do RN (ASFARN), Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (FEBRAFITE) e Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO). As entidades afirmam:
“Alyne é servidora pública estadual há 22 anos, tem uma ficha funcional limpa, jamais foi penalizada nem mesmo com uma advertência funcional, não tem ligações com o crime organizado, nunca foi condenada em quaisquer ações judiciais ao longo de sua vida, tem residência e local de trabalho fixos, e sempre pautou sua vida funcional e de cidadã pela civilidade e pelo cumprimento da lei. A sua prisão não está relacionada a qualquer conduta de improbidade administrativa no exercício de sua função de Auditora Fiscal e, ao que tudo indica, é consequência de um desenrolar de fatos a partir de uma denúncia feita por ela em 2019 e acatada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte, que resultou na suspensão de um contrato entre o Governo do Estado e uma empresa fornecedora de serviços”, diz a nota.
Crimes com penas de detenção
A prisão foi decretada pela juíza Ada Maria da Cunha Galvão, da 4ª Vara Criminal de Natal, atendendo ao pedido da delegada Karla Viviane de Souza Rêgo, da Delegacia de Defesa do Patrimônio Público e do Combate à Corrupção – DECCOR, após parecer favorável do Ministério Público. Na decisão judicial não fica explícito os crimes pelos quais a auditora é acusada. A mesma juíza, porém, em 2 de março, acatou denúncia contra a Alyne.
Ela foi apresentada pela promotora Ana Maria Moraes Machado, com base na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019). Uma lei promulgada em resposta ao ativismo acusatório promovido pelas polícias, ministérios públicos e judiciário, em torno de operações policiais realizadas nos últimos anos em todo o país. Agora, em Natal (RN), está sendo usada contra quem apontou possíveis desvios na administração pública.
Curiosamente, os crimes imputados à auditora – abuso de autoridade e desobediência (arts. 27 e 33) – não preveem a pena de reclusão. No máximo detenção, que só poderia ocorrer após sentença transitada em julgado. O processo contra Alyne, entretanto, mal começou.
O abuso de autoridade é descrito no art. 27 como “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.
A desobediência, no caso de Alyne, é atribuída ao suposto descumprimento de ordem da 3ª Vara Cível de Natal. Em maio do ano passado o juízo impediu a auditora de postagens em redes sociais. Consta que as postagens tiveram continuidade assim como mensagens enviadas a variados destinatários, por e-mail e/ou WhatsApp. No pedido encaminhado à juíza em 05 de abril, a delegada Karla Viviane fala ainda de supostas ameaças da auditora ao juiz Silva Ribeiro, sem descrevê-las.
Como alega a defesa da auditora entregue aos advogados José Araújo e seu filho, Joseph Araújo da Silva Filho, a desobediência teria ocorrido com relação à ordem do juízo da 3ª Vara Cível. Logo, deveria ter sido comunicada ao próprio juízo cível, para que tomasse as providências e as sanções que entendesse devidas. Como aplicar as multas previstas na decisão. Mas o juiz Silva Bezerra preferiu ingressar com representação criminal na Delegacia. para forçar a prisão da mesma, que acabou decretada pela 4º Vara Criminal de Natal.
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Esse imbróglio jurídico em torno dos contratos da CEBEC com os governos do Rio Grande do Norte surgiram como respostas às denúncias encaminhadas pela auditora Alyne não apenas a órgãos de controle. Elas também foram postadas em suas redes sociais e encaminhadas a políticos de uma maneira em geral.
Por sua vez, o juiz Silva Bezerra ingressou com diversas ações judiciais entre as quais os processos citados acima. Promove, na verdade, um verdadeiro “assédio judicial” contra a auditora. Ele e sua sócia na CEBEC, entendendo-se vítimas de perseguição, são os responsáveis pelas sete ações judiciais – apresentadas em três varas diferentes – e a administrativa. Ou seja, uma típica tentativa de intimidá-la
Promover ações em sua defesa é direito de todo e qualquer cidadão. Inusitado é a quantidade de processos criados. Mais ainda inusual é o fato dele distribuir ações criminais em torno da mesma disputa em juízos diferentes. Como se estivesse buscando decisões mais favoráveis.
As ações tiveram início a partir do momento em que o magistrado conseguiu identificar o e-mail da auditora nas denúncias que foram formuladas sob segredo, um direito do denunciante previsto na legislação. Isso faz com que Alyne e seus defensores o acusem de, com a ajuda da polícia e do judiciário, burlarem a proteção da identidade dos denunciantes de ilícitos e de irregularidades praticados contra a administração pública. Esta proteção está prevista na legislação e visa exatamente garantir a identidade de quem denuncia.
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