.Por Gabriel San Martin.

Não é novidade que boa parte do que se caracterizou como a linguagem da arte moderna consistiu numa caminhada em direção à abstração. Se são os impressionistas que efetuam o rompimento com a perspectiva linear e os cubistas os primeiros a decompor a figura, para muitos, seguiu-se ter sido com os expressionistas abstratos que se apartou toda a ligação da imagem pintada com figuras do mundo concreto. Evidente que esse é um modo simplificado de observar a construção de uma metanarrativa modernista; afinal, vanguardas históricas da ordem do dadaísmo e do surrealismo são ignoradas. Todavia, presumo que simplificações dessa natureza não tenham sido engendradas apenas na esfera do modernismo como conjunto, mas mesmo ao se referir a determinados artistas que compunham esses grupos vanguardistas.

(Willem de Kooning, “Woman and Bicycle” -1952-53)

Willem de Kooning (1904-1997) é um célebre pintor neerlandês que teve grande sucesso mundial principalmente em vista da sua ligação com os expressionistas abstratos norte-americanos. É resoluto que os interesses desse grupo de pintores estiveram fundamentalmente ligados à narrativa modernista construída pelo crítico de arte Clement Greenberg, que acreditava num direcionamento da arte moderna em questionar o seu próprio meio de execução.

Para Greenberg, as diferentes formas de arte (pintura, escultura, etc) estiveram sempre interligadas, de modo a não desenvolverem uma autonomia entre si. Nesse sentido, o objetivo central da arte moderna consistiria no encaminhamento para uma completa autonomia de cada arte. Se, para Greenberg, a pintura estivera, até então, indispensavelmente fundada na primazia do tema (característica da literatura), o modernismo caminharia para o redirecionamento da pintura em uma orientação à primazia da forma e da planaridade. Baseado quase que em um essencialismo fácil, Greenberg norteia de modo fraternal boa parcela da pesquisa formal dos pintores ditos “expressionistas abstratos”.

O grande ícone do grupo norte-americano foi Jackson Pollock (1912-1956). Aclamado por Greenberg como “o melhor pintor da América”, as pinturas de Pollock representariam o apogeu do modernismo greenbergniano. Sendo capaz de compor uma pintura abstrata que se aproxima a um retrato gestual, Greenberg não será o único crítico a ver em Pollock um gênio. O crítico Harold Rosenberg recusará o nome “expressionismo abstrato” para esse tipo de pintura. Parcialmente inspirado em Pollock, Rosenberg dá ao estilo o nome de action painting (comumente, traduzido para “pintura gestual”, “gestualismo” ou “pintura de ação”). E não há duvida do quanto a pintura de Pollock é genuinamente capaz de manifestar o gesto do pintor na tela. Com a sua maneira de pintar ríspida, arremessando tinta sobre as telas no chão (técnica de pintar que ficou conhecida como drip painting), Pollock segue rigorosamente a premissa de Rosenberg referente à transformação da tela em uma “arena na qual se age”.


(Willem de Kooning, “Woman-Ochre” -1955)

De todo modo, parece-me que é em de Kooning que, pela primeira vez, a tela se mostra capaz de ser transformada em uma arena gestual ainda que figurativa, diferente do que pensaram Greenberg e Rosenberg. Como Paulo Pasta já veio a afirmar uma vez, um artista não é abstrato quando pinta olhando para objetos físicos: e, ainda que reconhecido como um dos principais expressionistas abstratos, olhar para objetos ao pintar foi uma atitude recorrente de de Kooning ao pintar.

Em sua famosa série de retratos femininos Woman (“Mulheres”), dos anos cinquenta, o seu traço sintético, bruto e violento revela a espontaneidade e expressividade de seu impulso artístico. A grande peculiaridade definitivamente consiste em, apesar de ter a tela transformada em arena, de Kooning frequentemente ter por motivo a composição de uma figura. O que parece abstrato a um primeiro olhar descuidado, em vista da capacidade do artista em formular uma decomposição lírica não muito distante do nível daquelas geradas pelos cubistas no início do seu período analítico (considero as mulheres de de Kooning até mais figurativas em relação às cubistas), não demora para ser percebida enquanto figura. Se Picasso, em sua “Menina com Bandolim” (1910), decompõe a figura ao modo de exigir alguns segundos para que o espectador tenha todas as partes da menina percebidas integralmente, de Kooning faz o mesmo em sua “Woman-Ochre”(1955).

Na verdade, o que se usualmente chamou abstrato na pintura de de Kooning, parece ser figurativo. Caso contrário, não há motivo para recusar que as pinturas cubistas do período analítico não pudessem ser também aclamadas abstratas. Isto é, tendo por motivo um fenômeno material, não é possível tomar a pintura do artista como abstrata.

Enfim, voltando-me ao argumento inicial do texto, esclareço que, embora reconhecendo a importância de determinadas simplificações, estou convicto de que muitas delas foram excessivas. Chamar de Kooning de abstrato parece-me descabido. Ao entrar no estúdio do artista, uma vez, Pollock questionou de Kooning a respeito da razão pela qual o neerlandês não conseguia se afastar por completo do figurativo. Em outras palavras, Pollock indagava sobre o motivo pelo qual de Kooning não conseguia se tornar completamente abstrato.

Caso o equívoco não resida na simplificação teórica relacionada à fundamentação desses movimentos de vanguarda, o engano há de estar na simplificação do que se tomou por figurativo e abstrato. Se ainda estou lúcido, parece-me evidente a presença de uma figura feminina (ou, no mínimo, humana) em Woman I (1950-52). Mais uma vez, enfatizo que, em seus limites, simplificações são compreensíveis e até importantes. Contudo, se tomássemos o cubismo analítico como um movimento abstrato, seria possível, ainda sim, atribuir a Kandinsky um caráter de precursor da abstração? As consequências de determinados descuidos me parecem tremendas. Comprimir as coisas ao ponto de simplificar demais será sempre perigoso. Apesar de considerado um pioneiro do expressionismo abstrato, não consigo ver de Kooning como um pintor abstrato.

Gabriel de Campos Barrera San Martin – Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador em estética e crítica de arte.